Está na febre
de andar. O café forte lhe caiu bem, certamente melhor do que cairia a água
sanitária. Sente correr o sangue do corpo e da alma, a euforia dos condenados
libertos na hora fatal por uma clemência do rei. Em todo caso teria de sair: na
despensa faltavam ovos, farinha de trigo e fermento para o bolo. Resolve evitar
a mercearia próxima, a da bruaca, mas neste dia nevoento não se importa muito
de dar uma volta maior; tem horas de solidão a preencher antes da hora de ir
buscar o menino. Vá alguém saber a quantas da noite o marido volta, a filha,
esquece, não vem nem para visitar o próprio filho; mudou de mala e cuia para o
muquifo do seu futuro ex, o produtor-funkeiro-DJ. Recebe um SMS no celular, o caçula,
pedindo dinheiro. Avisa que vem amanhã pegar ― menos um que lembrou. Só o Neno lhe
ligou de manhãzinha.
O
dia até que estaria lindo, se não estivesse tão fechado. Vai cantar um parabéns
sozinha com o neto, deixá-lo soprar as velinhas e dormir antes do marido
chegar. É uma vida simples e bela, a sua. Rosa só precisa aprender a gostar
dela. Só tem que aprender a gostar das ruas de terra deste bairro que se
espraia num mar de morros a perder de vista, com as mesmas casas sem reboco, os
mesmos moleques empinando pipa, as mesmas ladeiras crivadas de bares,
borracheiros, templos e salões de beleza; talvez necessite apenas de um esforço
extra para achar graça nesta gambiarra de lugar cortado por uma estradinha de
mão dupla onde circulam os ônibus de linha.
Uma
van passa no pinote doido assustando os passantes; um galo canta nos arredores,
e ela não consegue se impedir de imaginar uma solução limpa: atropelamento e
fuga, os parentes sendo avisados pelo hospital, enterro em caixão fechado ―
evitaria assim passar adiante o estigma da sua dor, a família não ficaria
marcada. Golpe de fineza e habilidade supremas: imitar as artes inimitáveis do
acaso. Uma pancada seca, e pronto!, já não vai mais acordar todos os dias com o
peito pesando feito chumbo, movendo-se feito um fantoche, tateando no vazio insípido
da sua vida incolor.
No
momento, porém, esse vazio recobra um ligeiro tom de cinza, como o do dia. Rosa
caminha de um passo vivo e acelerado, ainda quer alcançar a liberdade, conserva
intacta a audácia do jogo, mas logo se dá conta de que o filho precisa muito
dela, ainda mais que o marido, e que esta, sim, é uma verdadeira razão para
continuar vivendo e para dizer a si mesma que continuaria viva, muito viva. Se
ainda houver quem precise dela, ela dirá ao povo que fica.
Reparou
em um homem que cambaleava poucos passos à sua frente; apesar de ter parado de
chover, ele continuava com a cabeça embuçada pelo capuz da gandola e as mãos
enterradas nos bolsos. A uma hora dessas e já tomou tinguá pra uma semana,
pensou. De repente o homem executou uma trôpega meia volta e veio na direção
dela. Então o reconheceu e se tranqüilizou, era um pau-d´água da quebrada, já o
havia visto muitas vezes; vivia zanzando pelo bairro, falando sozinho e
chorando pelos cantos dos bares.
―
Boa noite ― disse o homem, com graciosa e surpreendente amabilidade.
―
Quer dizer, bom dia ― ela respondeu.
―
E quem Deus me manda avisar? Logo a senhora que sabe muito bem que só existe a
noite, a escuridão. Durante o dia, só acontece uma única história debaixo do
sol. E todos a repetem. Acha que eu sou um bêbado, mas também precisa se
afastar de uma garrafa lá na sua cozinha, não é? Tome, basta um gole se quiser
morrer de uma vez e para sempre ― sem mais palavra, ele sacou do bolso uma garrafada
de pinga curtida em cobra com rolha de lacre, e a colocou no bolso do casaco da
atônita aniversariante. Em seguida, embiocou por uma ruazinha lateral, sumindo
depois de atravessar a pinguela sobre o córrego de esgoto.
Voltou
para casa sem comprar os ingredientes. Nem tentou seguir o vagabundo, estava por
demais atarantada com o episódio todo, com os estranhos modos e os termos com
que se dirigiu a ela. Sentou-se novamente à mesa da cozinha. Tirou a botelha
com o líquido amarelento do bolso e a examinou; o cheiro era de cana, a cobra
lá dentro, uma coral. Logo a alegria de estar sozinha passou e deu lugar na
indecisa Rosa ao sentimento contrário, um profundo abatimento por aquela
terrível solidão que a casa oferecia. A flauta encantadora tocando ao longe.
O
céu estava esbranquiçado, invadido por um verniz opaco, assim como em sua
memória uma brancura opaca ia apagando a lembrança das sensações vividas na
conversa de há pouco com o boêmio. Decide testar a sorte: se for só pinga,
talvez clareie as idéias, como dizem que o álcool faz com os produtos da
cabeça; se for veneno, vai viajar para aquele outro mundo, longínquo e sedutor,
no qual vivem o filho do carteiro e o pintor suicida, que é apaixonado por ela.
Um comentário:
Oh meu! Triste demais.
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