domingo, 25 de setembro de 2011

Elegia a um amigo



Palavras
só restam as palavras
nesse vazio
horrendo

Palavras
so restam as palavras
nessa solidão
imensa

Palavras
só restam as palavras
nessa dor
tamanha

Palavras
só restam as palavras
e me faltam palavras.

sábado, 24 de setembro de 2011

Síndrome de Muichkine (parte final)

15.
            ― Como é que pode... o ponto? ― ela se aprumou, enleada-assustada com o achego dele.

            ― Pode o quê?, meu docim de girimu, e que raio de ponto que é esse? ― falava manso e ao mesmo tempo fazia avanços de polvo, encompridando sobre a menina olhares langorosos e amebentas mãos bobas.

            ― Peste! Se aquiete, seu!... É assim: uma linha a gente vê no horizonte, às vezes, aparece um triângulo desenhado na forquilha de uma árvore, mas o ponto... tipo assim, é o oposto de uma coisa, está lá, mas precisamos deixar de enxergar para ver .

            ― Mas tu gasta a cachimônia com besteira demais... olhe, a imaginação às vezes tem de pôr, às vezes de tirar, o ponto é como... humm, o buraquinho deste seu piercinzinho aqui... ― insinuou a língua marota no ouvido dela; fazia-se de professor acompanhando-lhe os estudos, embora se concentrasse em matérias para lá de extracurriculares.

            ― Com bilhões, trilhões, sei lá quantos, de pontos dá pra construir uma casa, um palácio, uma pirâmide, mas com um apenas... nada! O todo existe, as partes não... por que você e mamãe se separaram? ― voltou-se de frente para aqueles dois olhos negros em que pontos de luz brilhavam como uma noite de estrelas; aqueles olhos prometiam a glória. E também a dor.

            ― Sua mãe não entendia as responsabilidades que assumi... o caso é que foi ela quem deixou esta casa ― procurou desviar, não queria enveredar por ali ―, já eu, continuo aqui, fazendo de tudo para a sua festa de debutante ser inesquecível...

            ― Mas falam tão mal de você, da nossa família, nos jornais...

            ― Ah, que cansaço da humanidade... não dê trela pra bocas-de-maria, tudo inveja, interesses escusos, lindinha, não gaste seu tempo com a mídia golpista, este país é muito ingrato com os que se dedicam a ele ― e trabalhava por erguer-lhe a barra do vestido.

            ― Li na internet que a minha festa o senhor vai pagar com o dinheiro que falta nos hospitais e escolas... por que fazem isso com a gente? ― abaixou as pálpebras como se estivesse lisonjeada, catava fios imaginários na saia.

            ― Me deixe sugar o furinho do seu brinco, deixa, vai; você ainda é virgem, anjo meu? ― sopesou em pensamento os seios que despontavam na adolescente, tetinhas implorando para ser mordiscadas e lambidas.

            ― Oxe, logo quem devia saber mais é que pergunta... eu sou é louca de lhe dar essas confianças... ― deixou que ele enterrasse o nariz nos seus cabelos, cruzou as mãos sob as coxas, balançando os pés de nervoso.

            ― Pedir mais o quê da vida?, ficar aqui do seu ladim, beijando este queixinho de, de... Jesus amado, se Deus me dera a sua belezura, ia viver nua numa praia deserta só me beijando por todo o corpo...

            ― Páim, como que tantas pessoas lhe obedecem? ― bem quieta, um sorriso deslumbrado de dentes certinhos; de repente, agarrou-lhe a mão, a dela suada.

            ― Que boca de anjo, rostinho mais que adorado ― arremeteu aos beijos, delirando pescoço acima ― ... não é segredo nenhum, embora as pessoas esqueçam disso a toda hora, é como naquela sua história de ponto: enxergue sempre o jumento batizado por baixo da roupa, sob o adulto, vive a criança assustada e carente; por uma medalhinha, um desembargador te entrega a alma da mãe, um ministério chinfrim compra o banqueiro, todos, todos, viram índio querendo cachaça...

            ― Andei pensando, sabe, com o tempo acontece a mesma coisa: o ponto do tempo é o instante, mas ele escapole de pinote, e nada permanece, e ninguém pega uma coisa quando ela é, porque já aquele instante dela passou, e passou de novo, e de novo...

            ― Pois então, carpe diem, porque a noite é certa... ― viu que ela se contorcia na cadeira e descruzava as pernas, enlouquecido, imaginava a cena tantalizante: o fio da calcinha deslizando por aquele rego calidamente umedecido.

            ― O senhor... é feliz com a nova esposa? ― ela sabia de cor cada um dos passos da coreografia preestabelecida que viria a seguir e que sempre terminava com: chupar a estrovenga do véi babão. Até então, pode-se dizer que ele a “respeitara”, circunscrevendo seus avanços a estes rituais de “passar a lição”, mas não se iludia sobre o que a esperava daqui para a frente, afinal, aos quinze completos, já era “mulher feita”.

            Arriou as calças, descobrindo o membro caprino ― Aqui meu bem, assim... haa, assim... hmmm... cadelinha mais fofa, você é o meu anjo, perdição.

domingo, 18 de setembro de 2011

Eleição de Super-Heróis na Mídia

http://blogs.estadao.com.br/jt-politica/o-garoto-que-ainda-acredita-em-politica/

Ainda Que...



 Ainda que a pequena flor
tenha fenecido
seu perfume esvaído

Ainda que nossos olhos
tenham perdido o brilho
e o sorriso entristecido

Ainda que em nosso coração
a tristeza e o mal estar
tenham feito sua morada

Não consigo esquecer
a beleza da flor

Síndrome de Muichkine (parte 2)

5.
― Respondendo à sua pergunta: sim e não; sim, ela vai se desenvolver normalmente do ponto vista físico e, no aspecto mental, até mesmo evoluirá num patamar superior às outras crianças; e, não, ela nunca vai atingir um rendimento psicológico comparável, no longo prazo, aos demais colegas. Precisa ficar claro que, sem a aquisição completa da linguagem, o indivíduo não consegue competir com os outros no que se refere à habilidade de integrar múltiplas competências, aí incluído o desembaraço social...

― (Suspiro) Doutor, esqueça quem está na sua frente e fale na bucha, o senhor arrodeia, arrodeia, pra me dizer que a minha filha tem um retardo, uma espécie de autismo, como é mesmo o nome?...

― De alta performance, autismo de alto funcionamento. Veja bem, hoje em dia, procuramos relativizar essa nomenclatura do “retardo” e da “deficiência”, até porque se trata de uma população de pessoas realizadoras e criativas: dedicam-se geralmente à pesquisa, à música e...

― Sei bem... gente que depende da caridade dos outros... mas não, não me interprete mal, afinal de contas, sei o que é isso: estive em cargo público a vida toda, não é mesmo? Pra lhe ser muito sincero doutor, vou no popular, cago montanhas para o que falam de mim, se o estado que governo é atrasado, a culpa é do povinho mofino que lá padece e vive. Não sou de latomias nem relambórios, doutor, sou homem de ensinar lei pra juiz, mas Deus me guarda de ensinar a medicina ao esculápio e a missa ao vigário. O causo é que punha tento de fazer da menina a continuadora da minha obra política...

― Ha-ham, no entanto, repito, ela é capaz de fazer contato pleno com mundo como ele é, capaz inclusive de uma leitura emocional das situações bastante sofisticada, embora seja, e vá ser pela vida afora, uma analfabeta funcional quanto ao manejo da metalinguagem...

― Tenha a bondade de me traduzir o latinório...

― Bem, quer dizer que há essa coisa na fala... quando ela se volta sobre si mesma, entende?, é... imagine um elevador com espelhos paralelos: de um lado, as regras lógicas e gramaticais, do outro, a combinatória infinita do código lingüístico. Pacientes com a forma mais grave da síndrome não desenvolvem esta reflexividade, o que, se não os impede de compreender, os impossibilita de usar trocadilhos, ironia, duplo sentido, persuasão, etc.,...

― A bichinha é incapaz... de mentir?!

― Isso mesmo. É a característica dominante, que inclusive serviu para batizar a condição. O príncipe Muichkine, de Dostoievski, não conseguia mentir em nenhuma situação. Sua criança tem cinco anos... bem, o senhor me procurou porque a conduta dela já começa a gerar conflito no ambiente escolar. Hãm, também não quer dizer que ela é dona da verdade, digo, da “verdadeira verdade”, afinal, a verdade das minhas proposições é o teste do meu entendimento destas proposições...

― Hehehe... doutor, o senhor não tem jeito não, me tira mesmo por tanso, vai dando as más notícias a conta-gotas... esse príncipe era idiota, né não? Sinceridade em política é veneno, veja o caso dos acessos de Ciro Gomes, o estrago que lhe fizeram... Traduzindo, o senhor está me dizendo: olhe que inteligente ela é, e como pai sabe disso, mas sua herdeira política é que nunca será! Tô certo?

― Quer dizer, talvez... sim. É uma ilusão rousseauísta pensar que, se pudéssemos dizer tudo o que pensamos o tempo todo, a sociedade seria menos hipócrita e as relações mais verdadeiras. O que se observa na família destes pacientes é o contrário: a interação torna-se tensa e o clima afetivo, irrespirável. A mentira tem o dom de “amaciar” a comunicação, de aparar as arestas do convívio social; quando “tudo” é dito na lata, podemos ficar sem ter mais nada a dizer uns aos outros.

            ― O senhor faz o mesmo que eu faço: doura a pílula. Em política também é assim: criamos fatos, versões, inventamos personagens, para, logo em seguida, deixar tudo pelo caminho. A língua do homem público é um jogo imprevisível, ou seja, sem convenções, pressupostos ou regras explícitas; não é racional nem irracional, apenas está lá. Como a nossa vida.

sábado, 17 de setembro de 2011

Síndrome de Muichkine (parte 1)

25.
Durante as últimas semanas observara o pai, corroído pela doença, se desfazer em demorados e oscilantes restos mortais. No espaço de oito meses havia testemunhado o antes robusto patriarca envelhecer trinta anos e perder outros tantos quilos.

Por coincidência, ela era a única pessoa presente quando a velha raposa política finalmente expirou. Presenciou a raiva muda e impotente, a gana do maldito viciado em viver ― vindicando ainda mais, quem já obtivera tanto!

            Alguns minutos mais tarde, quando os irmãos chegaram e todos ficaram mudos à beira da cama, ela se pegou recapitulando a última conversa que tiveram; coincidentemente também, a última que ele conseguiu manter entre um acesso de dor e outro.

            Fisicamente encontrava-se no mesmo quarto com a sua família, por outro lado, estava claro, para ela e para todos ali, que aquele seria um breve interlúdio antes de retomarem a batalha judicial, iniciada tão logo aquela alma começou a desencarnar.

            Não, pensou ela, há mortos que não merecem a esmola da nossa tristeza; assim como há um corpo simbólico, do qual usufrui até o mais ínfimo cidadão, cuja decomposição leva muito mais tempo que a do corpo material. Sabia que precisava agir rápido.

            ― A minha mãe manteve um diário íntimo, onde ele está?

            ― Queimei...

            ― Com que direito? Ah, esqueci, com o mesmo direito que o senhor usa do país como se fosse a sua fazenda, e da porra deste estado, um dos lugares mais atrasados do mundo, como se fosse o seu curral!

            ― Você veio só... para insultar seu pai, com ele nas vascas da morte? ― o velho aparentava cem anos; parecia ligeiramente um macaco, um arrasado macaco-japonês que nem por isso abaixava a grimpa e deixava de encarar a filha olho no olho.

            ― Não, não vim só pra isso não, tem uma coisa que me contaram, olhe bem na minha cara, você falou com mamãe antes daquele acidente; o carro voando por cima da ponte, uma fatalidade, não é?, vocês estavam bebendo e discutiram, ela saiu e... e, com isso, o nome da família foi salvo... Foi ou não foi?

            A respiração do pai aumentou, e agora assobiava ao passar pelas narinas entupidas, enchendo o aposento com um fedor que se agarrava às roupas, móveis e paredes. ― Hmm, quer dizer que até disso eu fui culpado? Sua mãe, foi ela que largou este lar por causa de outra mulher, uma hora não suportou a vergonha e saiu pra dirigir bêbada... e foi o que foi.

            ― Mentiroso! Você não se conformava de ver minha mãe feliz, ninguém pode ser feliz à sua volta, só existe a merda da política, esse matadouro onde tudo berra e onde tudo é boi! Mas foi Aniceto quem me disse, viu?, ele tava lá não tava?, enquanto meu pai punha calmante no copo de minha mãe...

            ― Vou... mandar comer esse cabra de pau... arrombado do carai! ― lágrimas brotaram dos olhos do moribundo e lhe escorreram pelas faces, lágrimas de fúria; com um estalido de catarro, ele irrompeu num áspero gargarejo que fazia a voz sair afogada, submersa.

            ― Não, não vai, porque nem seus jagunços controla mais, seu assassino... Por quê, hem?, por quê, depois de tudo isso, ainda me vai e pega um embrião congelado e me põe aqui neste mundo numa barriga de aluguel? Quis remoer o que já tinha moído? ― então, tudo foi externado; com um solavanco de dor que atingiu a ambos, passaram para a luta franca, a sinceridade brutal.

            ― Isso... mesmo. Você, o grande erro da minha vida. Quando vi que meus dois filhos varões eram os inúteis que aí estão, e as outras filhas umas peruas de miolo-mole, apostei em recomeçar do zero... mas errei de novo, como bem se vê ― falava aos arrancos, a respiração sumia e voltava, quase se podia ouvir o estalar dos ossos toda a vez que ia recomeçar.

            ― Mas aí não bastou, já que tava pagando, não é?, você plantou e comeu: a filha que só você escolheu pôr no mundo... O que pode lhe fazer parar, morrer?

            ― Nunca entendeu, não foi? Comi mesmo. Você não vale é nada, nunca serviu... a débil mental da família, tudo que diz e faz não aproveita a ninguém. E sempre foi assim. Se enxergue, rapariga: vinte e cinco anos nas costas... e nada que preste.

Camilo, o Excessivo


Devolvo acertos, compro erros inaptos
dou passagem à gratidão

Quero matisses roubados
acorrentadas, nulas, solidões

Encomendo tradição ao acaso
injetando brevidades no adeus

Facilito a força dos prazeres
mas intenciono garantias alveoladas

Comemoro o absoluto invisível
sem comunicar a opinião da memória

Enjeito o poder dos poderosos
cancelo porquês com pecados

Flutuo no íntimo, coagulo,
ideológico, o azul cooptante

E sofro,
sofro à porta da tristeza crua

A desgraça do próprio destino
antecipado

Removo a montanha dos apesares
atinjo o que sente e não pensa

Contenho toda a distância, acaricio
a promessa e os profetas

E agora, alfinetado à vida
mariposa, dor e raiva

Tenho o caminho fechado para
ela ― Ah,

Não ser inocente, insensível, nem mesmo
um velho fantasma dos mortos perenes

domingo, 11 de setembro de 2011

À Maneira Adolescente


é preciso reconhecer
a vida
não resiste

a uma pergunta
séria
e que é difícil

mesmo impossível
atribuir
sentido ao que não

tem
o brilho do nada
que

há em tudo que
vive
em tudo

quanto busca
o transcendente
pela

recusa do seu
falso
rosto máscara do

corpo
esse traidor em
potencial

virtuosamente
adestrado
hipocondríaco

higiênico
instagram
do universo

contemporâneo
cujos caminhos e leis
oferecem

sinais de inédito
ouro
invernal

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Sumérios, egípcios, Gutenberg, Amazon e nós!




Imagine!

Eu estava lendo o Estadão de domindo (4/9/11) e pensei: Imagine os sumérios tendo que parar de desenhar sua impecável caligrafia nos tablets (de argila, claro!). E os escribas egípcios, tendo que largar mão de escrever no papiro?

Segundo o jornal, uma pesquisa realizada no Colégio Humboldt com 241 estudantes e mais alunos do Dante e de outras escolas concluiu que quase todos os adolescentes têm tablets (não de argila, claro!) e lêem e-books, mas ainda preferem livros de papel. Júlia, de 15 anos, completa: “tenho prazer em ver a prateleira cheia de livros”.

Entendo, Júlia, me identifico totalmente. Mas acho que somos a excessão. Hoje e no futuro esse desejo de “estante” se tornará completamente extinto, tão difícil de entender quanto o desejo de Cleópatra que era guardar “O Livro dos Mortos” em rolos de papiro, imagino.

Sou escritora. Gosto de pensar que produzo literatura e não livros, assim como um músico produz música e não CDs ou discos de vinil.

Mas a evolução/revolução na tecnologia do lápis e papel já começou e é inevitável. Ou continua. Johannes Gutenberg, por volta de 1439, inventou a prensa móvel (um protótipo da tecnologia moderna de impressão de livros). Imagine o escarcéu que causou entre os monges que passavam as suas vidas enclausurados nos mosteiros copiando livros! Eles imprimiam com sua letra rebuscada uma personalidade única aos escritos. Isso sim cai bem no conceito de fim do livro objeto.

Mas o passado deve ser conhecido para trazer luz ao presente e para diminuir o nosso saudosismo e sensação de iminência do apocalipse: o fim do livro, o fim dos leitores “de qualidade” e todas sorte de aberrações medievais que circulam na modernidade.

A verdade é simples e crua: a tecnologia vai resolver a questão da deterioração do livro eletrônico, da documentalização, da acomodação do aparelho visual `a tela durante a leitura... Tudo.

Certeza.

Nós, uma das últimas “gerações de papel” morreremos e as pessoas vão esquecer os livros como esqueceram os compact disks, as fitas K7, as tábuas de argila e os papiros. Inexorável.


Esse post está no meu blog, e tem mais. Visite: ensaiosobreleitura.blogspot.com

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

os zerossexuais (parte final)


Do lado de fora do banheiro, a moça procurava acalmá-la, insistindo que parasse de gritar para que pudesse explicar a situação. Passou-lhe roupas pela porta assim que se convenceu de que não havia perigo. Chorava muito.
Até que tomou coragem e saiu.
Uma olhadela rápida desfez a hipótese maluca que se formara na sua cabeça: não tinha feito sexo com um travesti ou algo do gênero, diante dela, inteiramente nua, estava uma pessoa que positiva e definitivamente pertencia ao sexo feminino.
Na certa essa zinha daí havia se infiltrado na casa dela, enquanto o comparsa fazia a “limpa”. Detalhe incômodo que não encaixava: o que faziam as roupas do cara de ontem espalhadas pelo chão do quarto?
― Não tenho dinheiro vivo em casa, as poucas jóias você vai encontrar naquela gaveta...
― Você pode ficar descansada, não vim aqui atrás disso; este é um assunto delicado e que diz respeito a nós dois... digo, nós duas...
― Cadê o cara das flores, que veio ontem? Por quê vocês precisavam me enganar desse jeito? ― a Mulher soluçava desconsolada, só queria que tudo aquilo acabasse logo.
― Aí que tá, o Alfredo sou eu.
― Hahahaha, fala sério! Essa é boa, me diga... então você tava usando um consolo ontem à noite?... mas, e os peitos, e esse cabelão, como é que você disfarçou tudo enquanto me passava a cantada?
― Em primeiro lugar, não foi uma cantada; segundo, ontem eu ainda não tinha sido transformado por você...
― Como assim, transformado? É trans-for-ma-da, você é uma mulher!, ou está querendo me dizer que você é uma espécie, assim, de camaleão do sexo?
― Do sexo não, do amor. E você também é.
A Mulher deixou-se cair na cama queen size, era muita informação demais. O incrível é que agora, reparando bem, a fulana realmente parecia uma versão feminina do homem que lhe proporcionara uma noite inesquecível.
― Sei que não é fácil para você, como não foi para mim quando descobri... somos assim, adquirimos a forma daqueles a quem amamos.
― Somos?... somos? Fale apenas por si! Quem é você para me dizer o que eu sou ou deixo de ser?
― A maioria das pessoas tem, vamos supor, uma alma sexuada: homo, hetero, trans, bi... nós não, depende por quem nos apaixonamos; não é uma identidade definida à partida, mas que acontece enquanto o jogo é jogado.
― Sei, sei... quer dizer que você virou a casaca porque se apaixonou por mim, mas... e se eu não achar graça nenhuma em me relacionar com outra mulher? Como é que fica, você vai ter mudado à toa?
― Às vezes acontece; eu posso ter encontrado o que estava procurando, mas você não. Dependendo da ferida que isso me causar, posso continuar como estou ou voltar para a forma anterior. Não dá pra saber...
― Que maravilha de cenário: se te abandono, você volta a ser aquilo que eu queria que fosse...
Emprestou-lhe umas roupas suas meio fora de uso, já que as de Alfredo não lhe serviam mais ― pelada é que não ia deixá-la ficar. Passaram para a cozinha, um café bem forte seria a melhor maneira de tentar recomeçar aquela manhã esquisita.
― ... imagine que o gênero feminino e o masculino fiquem num continuum que vai de +1 a -1, são infinitas as variações... mas no meio haverá sempre o zero, que não é um número, mas um buraco na linha, um vazio cheio de possibilidades...
― Pode até ser, mas nesse seu layout atual, vai ficar ruim de encarar você de novo... ao menos como aconteceu ontem...
O sol da manhã batia no peitoril da janela, da cozinha ouviam a rua se encher dos ruídos do dia; encolhidos nos seus pensamentos, dois animais humanos, famintos e canibais, contabilizavam suas feridas avaliando o próximo passo.
A Mulher rumina, indecisa.
Na balança da vida pesam mais as dores e perdas; e só haverá redenção se obtivermos qualquer porção, grande ou pequena, efêmera ou duradoura, de conhecimento ou beleza ou amor.
Mas a verdadeira graça está no amor.