sábado, 17 de setembro de 2011

Síndrome de Muichkine (parte 1)

25.
Durante as últimas semanas observara o pai, corroído pela doença, se desfazer em demorados e oscilantes restos mortais. No espaço de oito meses havia testemunhado o antes robusto patriarca envelhecer trinta anos e perder outros tantos quilos.

Por coincidência, ela era a única pessoa presente quando a velha raposa política finalmente expirou. Presenciou a raiva muda e impotente, a gana do maldito viciado em viver ― vindicando ainda mais, quem já obtivera tanto!

            Alguns minutos mais tarde, quando os irmãos chegaram e todos ficaram mudos à beira da cama, ela se pegou recapitulando a última conversa que tiveram; coincidentemente também, a última que ele conseguiu manter entre um acesso de dor e outro.

            Fisicamente encontrava-se no mesmo quarto com a sua família, por outro lado, estava claro, para ela e para todos ali, que aquele seria um breve interlúdio antes de retomarem a batalha judicial, iniciada tão logo aquela alma começou a desencarnar.

            Não, pensou ela, há mortos que não merecem a esmola da nossa tristeza; assim como há um corpo simbólico, do qual usufrui até o mais ínfimo cidadão, cuja decomposição leva muito mais tempo que a do corpo material. Sabia que precisava agir rápido.

            ― A minha mãe manteve um diário íntimo, onde ele está?

            ― Queimei...

            ― Com que direito? Ah, esqueci, com o mesmo direito que o senhor usa do país como se fosse a sua fazenda, e da porra deste estado, um dos lugares mais atrasados do mundo, como se fosse o seu curral!

            ― Você veio só... para insultar seu pai, com ele nas vascas da morte? ― o velho aparentava cem anos; parecia ligeiramente um macaco, um arrasado macaco-japonês que nem por isso abaixava a grimpa e deixava de encarar a filha olho no olho.

            ― Não, não vim só pra isso não, tem uma coisa que me contaram, olhe bem na minha cara, você falou com mamãe antes daquele acidente; o carro voando por cima da ponte, uma fatalidade, não é?, vocês estavam bebendo e discutiram, ela saiu e... e, com isso, o nome da família foi salvo... Foi ou não foi?

            A respiração do pai aumentou, e agora assobiava ao passar pelas narinas entupidas, enchendo o aposento com um fedor que se agarrava às roupas, móveis e paredes. ― Hmm, quer dizer que até disso eu fui culpado? Sua mãe, foi ela que largou este lar por causa de outra mulher, uma hora não suportou a vergonha e saiu pra dirigir bêbada... e foi o que foi.

            ― Mentiroso! Você não se conformava de ver minha mãe feliz, ninguém pode ser feliz à sua volta, só existe a merda da política, esse matadouro onde tudo berra e onde tudo é boi! Mas foi Aniceto quem me disse, viu?, ele tava lá não tava?, enquanto meu pai punha calmante no copo de minha mãe...

            ― Vou... mandar comer esse cabra de pau... arrombado do carai! ― lágrimas brotaram dos olhos do moribundo e lhe escorreram pelas faces, lágrimas de fúria; com um estalido de catarro, ele irrompeu num áspero gargarejo que fazia a voz sair afogada, submersa.

            ― Não, não vai, porque nem seus jagunços controla mais, seu assassino... Por quê, hem?, por quê, depois de tudo isso, ainda me vai e pega um embrião congelado e me põe aqui neste mundo numa barriga de aluguel? Quis remoer o que já tinha moído? ― então, tudo foi externado; com um solavanco de dor que atingiu a ambos, passaram para a luta franca, a sinceridade brutal.

            ― Isso... mesmo. Você, o grande erro da minha vida. Quando vi que meus dois filhos varões eram os inúteis que aí estão, e as outras filhas umas peruas de miolo-mole, apostei em recomeçar do zero... mas errei de novo, como bem se vê ― falava aos arrancos, a respiração sumia e voltava, quase se podia ouvir o estalar dos ossos toda a vez que ia recomeçar.

            ― Mas aí não bastou, já que tava pagando, não é?, você plantou e comeu: a filha que só você escolheu pôr no mundo... O que pode lhe fazer parar, morrer?

            ― Nunca entendeu, não foi? Comi mesmo. Você não vale é nada, nunca serviu... a débil mental da família, tudo que diz e faz não aproveita a ninguém. E sempre foi assim. Se enxergue, rapariga: vinte e cinco anos nas costas... e nada que preste.

Um comentário:

angela disse...

Um velho "Coronel" de causar arrepios e muitos são os que estão por aí.
Azar do poderoso não ter conseguido uma Roseana....rsrs
Pelo menos na ficção podemos fazer alguma justiça.
Aguardo a continuidade do vigoroso conto.
beijos