quarta-feira, 30 de maio de 2012

a segunda pele



Quando um artista rompe
com a matéria de que é feito
equivale para o mundo
à descoberta da própria textura

Mais do que um público
a verdadeira arte abriga
usuários ambientes e conexões
cada obra se descobre participação e diálogo

Coexistem no objeto estético
realidades seres flutuantes inevitáveis
múltiplas arquiteturas simbólicas
o cortejo da infinita reprodutibilidade

A arte intervém como dobra
criação delirante libertação
por hipertrofia elemento aberrante
no jorro da vida

O habitat da poesia é a topografia
instável e transformadora do delírio
sonho tangível arte
não é resultado é resto

E o que resta é um esforço
para repotencializar a realidade
aumentá-la com metáforas deformar
saturar (ou subtrair) sentidos

A arte não transforma o mundo,
nem o artista mas revela percursos
imprevisíveis desconcertantes mentiras
aço e alabastro eterno simulacro

O artista ergue sua paisagem
de ocultas revelações geologia
de superfície cujo desabamento
contínuo soterra nosso frágil cotidiano

domingo, 27 de maio de 2012

Manuela, Barbara, Barbarella (parte 2)



O monsignore está muito preocupado. Apesar de ser o terceiro homem mais poderoso da Igreja Católica Romana, abaixo apenas do Papa e do Secretário de Estado do Vaticano, ele tem motivos de sobra para acreditar que suas três décadas de crescente poder na hierarquia eclesiástica se encaminham para um ocaso vergonhoso. Isto se conseguir escapar da prisão. Da janela da sua sala, situada no quarto e último andar do bloco central do Palácio do Governo, observa os jardins defronte onde o brasão de armas da Santa Sé está desenhado nos canteiros de grama milimetricamente aparada. Anela possuir aquelas chaves cruzadas de ouro e prata que representam as chaves do reino dos céus prometidas a São Pedro.
O arcebispo Casimir Markevicius precisa mover as peças com extrema prudência no tabuleiro da intrincada trama de política religiosa, finanças e poder mundano que ele mesmo ajudou tecer. Aos sessenta e um anos, ainda exala saúde e ostenta a compleição atlética que lhe valeu o apelido de “Gorila”; é um homem rico e influente, mas descobriu dolorosamente que não é inatingível. Anda freneticamente em todas as direções no seu gabinete, estrala os dedos das mãos, franze os ombros, sem conseguir achar saída ou sossego. Febril, acredita ter atingido a perturbadora lucidez dos patibulários: já ouvira falar dessa clareza mental que acomete os que sabem que vão morrer.
Percebe que a essência do seu ministério está fadada à incompreensão, seus modos, suas ações e seus métodos não se coadunam com a santimônia afetada dos seus pares. Se o futuro certamente o condenará, trata agora de evitar que o presente também o faça.
― Pode-se viver neste mundo sem se preocupar com o dinheiro? ― vocifera para as paredes ― Não se pode dirigir a Igreja com ave-marias!
A madrugada do dia 23 de junho de 1983 avança, mas, aquele que chegou a ser chamado de “banqueiro de Deus” e “guarda-costas do Papa” não se deixa vencer pelo sono. Relembra a infância pobre em Cicero, periferia sem lei da Chicago de Al Capone, relembra o decisivo apoio do cardeal de Nova York e capelão militar dos Estados Unidos, Francis Spellman, nos seus primeiros passos em Roma. Outros tempos, mas a mesma santa cruzada: o bom combate. Spellman cuidara pessoalmente dos financiamentos para evitar a infiltração comunista nos países da América do Sul e da OTAN, como quando enviou milhões de dólares para a Democracia Cristã de Alcide de Gasperi vencer as eleições italianas no pós-guerra imediato.
E qual reconhecimento obteve este clérigo admirável? Ficar marcado pela apropriação do dinheiro que os nazistas refugiados na América haviam roubado aos judeus. Em nada importava o bom uso destes recursos? Não era verdade, como se lê na primeira epístola de Pedro, que “a caridade cobre uma multidão de pecados”? Markevicius era o vértice oculto de uma encruzilhada histórica: ajudara Montini, o protegido de Pio XII, a se sagrar Papa depois do excessivamente liberal João XXIII, evitara, após a morte de Paulo VI, que o intransigente Luciani iniciasse um expurgo no Banco do Vaticano; Benelli, secretário de Montini e cúmplice no affair Luciani, não logrou o pontificado, mas a solução de compromisso Wojtila mostrou-se acertada no tocante à luta anticomunista.
Porém, a recente falência do Banco Ambrosiano de Milão tinha o potencial explosivo de todas as ogivas nucleares da Guerra Fria. Trapaceiros de variado calibre, políticos corruptos, capi da Cosa Nostra, empresários inescrupulosos, nobres, maçons, prelados complacentes e Cavaleiros do Santo Sepulcro viam-se assim sugados pelo buraco negro das finanças nada santas da Igreja.
Há mais de dez anos no comando do I.O.R. (Istituto per le Opere di Religione, o banco da Santa Sé), na prática, Casimir Markevicius gerenciava um banco off shore em pleno centro de Roma, cujas operações financeiras ficam fora dos acordos jurídicos e dos filtros antilavagem interbancários e internacionais. Um paraíso fiscal que negociava com altos depósitos e retiradas em espécie, títulos do governo italiano, ações norte-americanas falsificadas, contas numeradas ou em nome de “laranjas”, fundações religiosas de fachada e... dinheiro da Máfia. O rombo de quase dois bilhões de dólares do Ambrosiano expunha as entranhas de uma engrenagem que servira, entre tantos propósitos abstrusos, para financiar o sindicato Solidariedade na Polônia e iniciar a derrocada da Cortina de Ferro.
É necessário fechar rapidamente o contencioso com o Ambrosiano de modo a minimizar os danos de imagem e Casaroli, Secretário de Estado do Vaticano, estipula, junto a uma comissão mista com o Estado italiano, uma indenização de 100 milhões de dólares aos clientes do banco. Mas o poderoso cardeal se recusa a ressarcir a Máfia. O arcebispo sabe que as famiglias têm esse costume de mandar recados através de suas ações violentas. Dois envolvidos no escândalo morrem em “suicídios” mal esclarecidos, então, vem o atentado contra o Papa. O círculo de fogo se fecha; pela primeira vez, Markevicius não consegue evitar um atentado contra a vida de Sua Santidade.
E agora, o desaparecimento da menina.

sábado, 26 de maio de 2012

vida amor poesia verdade


quando uma verdade se torna a verdade
de todos
já não é de nenhum

a poesia tece a miragem
dos mundos
que o mundo não soube ser

o ente doa ao amor a presença
o mundo,
a falta

a vida é a obra de um sonho
em acontecimento

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Manuela, Barbara, Barbarella (parte 1)




            A chuva dura pouco, novamente o calor estival volta a fustigar os habitantes do menor país do mundo. A menina sai para caminhar tão logo termina o aguaceiro. Ela está chorando. Não é incomum acontecer; mas hoje isso não a preocupa por dois motivos: os óculos, que detesta usar, escondem as lágrimas curtas e, também, porque chora de felicidade. Descobriu que pode ser, que vai ser, aliás, já é feliz; a felicidade pode ser assim como uma tarde de sol que começou nublada. Caminha a passos largos, de quando em quando, entremeados por pulinhos de contentamento impaciente. Acabou de completar quinze anos e sente uma felicidade vital e desanuviada que só nessa idade se pode sentir. Tem uma vida maravilhosa pela frente.
            São as férias escolares de final de ano letivo, Manuela terminou o segundo ano do colegial no Liceo Scientifico com notas excelentes. É o orgulho dos pais e dos quatro irmãos. A família Morandi é de poucas posses, não há viagem de férias, nem acampamentos de jovens, como para muitos dos colegas de escola das crianças ― zelosos, Babo Emanuele e Mamma Marina são bastante estritos quanto a privilégios: se não houver regalias para todos, não as há para nenhum. Ninguém reclama.
A quarta filha dos Morandi, no entanto, demonstra uma extraordinária aptidão para a música; Manuela tem aulas de flauta transversal três vezes por semana e canta no coro da igreja de Santa Ana, dentro do Vaticano, onde vive desde que nasceu. Mesmo durante as férias grandes, continua a freqüentar as aulas da renomada Scuola Tommaso Ludovico da Victoria, conservatório ligado ao não menos importante Instituto Pontifício de Música Sacra. Contrariando seus hábitos, naquele dia toma a saída da Sala de Audiências, virando na Piazza dei Sant’Uffizio e seguindo a pé pela Via di Porta Cavallegeri até à barulhenta Gregório VII.
Balançando o estojo do seu instrumento no compasso de um rondó mental, ela se baladeia pelas ruas a perguntar: “Sou bela?, sou feia?, ou, pior que tudo: serei apenas... comum?!” Não, não pode mais duvidar, o mundo descobriu que ela possui algo de muito especial sob aluviões de timidez, inibição e medo. Às vezes tem a impressão de que as coisas se passam dentro de um filme; sofre como as heroínas dos romances, sim, sofre terrivelmente por causa de um assunto secreto que não tem coragem de contar a ninguém. Nem mesmo a um diário.
Só que agora, enquanto sai à direita na Via Aurelia, percebe que a alegria é um pássaro que perdeu o medo de se aninhar entre as suas mãos. O verão é uma estação louca, pensa, os jovens precisam sair das suas casas e andar, andar perdidamente, só para aspirar o odor pungente que sobe das ruas molhadas de chuva. “Manuela, quão leve é o ar que agora flui para teus pulmões”. A avenida contorna caprichosamente um imenso quarteirão à esquerda, onde uma mansão decrépita mal se entrevê atrás de um espesso bosque; é um lugar ermo que costuma evitar descendo do ônibus mais adiante, próximo à Via Paolo III. Um caçador de talentos, representante de uma companhia de cosméticos, um homem muito bem vestido, perfumado como uma senhora, disse que ela era quem ele estava procurando.
            ― Eu sei mana, mas escuta, pensar mal é pecado, mas às vezes se adivinha. Não digo que não seja possível... é que, bem, você nunca tinha se atrasado, a senhora Costanza telefonou.
― Você é a irmã mais velha, e eu respeito, mas é que você não viu: um cavalheiro tão distinto, me mostrou o cartão dele, os portfólios da campanha... depois, é uma grande companhia, eles querem um rosto de uma moça moderna, simples, não querem mais o jeito de boneca das modelos profissionais...
― Manuela, o papai sempre diz...
― Ah, você sabe que papai e mamãe têm medo de fantasmas, sempre são contra as nossas amizades, nunca nos deixam sair. O emprego do papai, as responsabilidades do cargo do papai. É só o que sabem dizer.
― De qualquer maneira, você não devia tomar nenhuma decisão antes de falar com eles. Prometa pra mim.
― Sabe o que ele me disse? Que eu poderia usar um nome artístico: Barbara Gregori. Não é demais?

domingo, 20 de maio de 2012

O MEU MUNDO É DIFERENTE



Subversão do programa:

o trabalho do sonho pressupõe toda outra

gama

de interconexões possíveis
 



Ievguêni Pietróvich

procurador do tribunal

percebe a ineficácia do discurso

lembra que o bom senso da vida

lhe veio não de sermões e leis

mas de fábulas, romances

poesias...
 



Queremos que a arte seja voluptuosa

e a vida estética

(melhor seria o contrário)

o universo fabulado satisfaz

a humana necessidade de humanizar

tudo
 



Assim a arte surge

como uma nova dimensão

a partir do som azul de Chagall

assim como a delicada expressão de Mozart

evoca doçuras

da voz
 



Há no universo a possibilidade

i-reconhecer o mundo

e com isto re-conhecer

a própria condição


Este universo é regido pela perigosa harmonia

das sombras

magia lúcida e atávica

a primitiva claridade

do mito


domingo, 13 de maio de 2012

a idade das coisas



Talvez não seja

lobo de manhã

leão ao meio dia

cão à noite;

a vida não tem um sentido

a serpente-tempo

todos





Talvez eu seja

o sonho de um sonho

ponto

ínfimo e tangente

de um infinito de sonhos

e de vidas



quinta-feira, 10 de maio de 2012



Querer ser escritor num mundo encharcado de textos não é fácil. O Grupo B-Eco de Escritores quis falar sobre isso na Feira de Literatura de Votuporanga (FLIV) agora no dia 05 de maio de 2012, com a mesa "Os descaminhos da literatura". Foi demais.
Na foto (em pé, da esq para a dir), os integrantes do grupo: Patrícia Cardoso, eu, Angela Senra, Dany Tavares, Danita Cotrim, Adriana Orabona e Sandro Tangirino. Dos 9 autores que compõem o coletivo, não estavam presentes Lídia Izecson e Giovanna Vilela. As fotos são da fotógrafa Paula Marina.
Falar da nossa experiência de escritor (pouca, mas intensa) e de nossa vivência no grupo foi bom demais. Um público de umas 60 pessoas nos prestigiou com atenção, perguntas inteligentes e até com lágrimas emocionadas por compartilhar conosco o sentido do sonho. Fazem eco no meu coração as palavras de Ferreira Gullar: "A literatura existe porque a vida não basta". Viva!!!

por Nina Maniçoba Ferraz, em carne viva no blog: www.ensaiosobreleitura.blogspot.com


domingo, 6 de maio de 2012

Os BFFs (parte final)



Mansueto estava certo, se os dois ainda se esforçavam para manter o decoro quanto a manifestações de riqueza ― traço raro no novorriquismo ―, as mulheres deles se esbaldavam no consumo conspícuo. As respectivas Donas Encrencas haviam sido tragadas por uma orgia febril de gastanças, seus delírios bovaristas eram de deixar Becky Bloom arrastando o chinelo na 25 de março: shoppings de grife, joalherias, lojas de decoração, boutiques exclusivas e fechadíssimas, nada lhes diminuía o facho; Miami, de repente, tornara-se pequena para a fúria sagrada que as habitava. Amavam, sobretudo, comprar roupas juntas; a mulher de Walfrido, confessou certa vez à amiga, dentro do provador da Tânia Bulhões, a estranha sensação que o ruge-ruge de alguns tecidos lhe causava.
― Amiga, não sei nem te explicar, acontece principalmente com a seda pura, é o frufru passando no corpo, acho, tipo um roçamento, sabe?, e aí escuto esse sussurro brando: o grito da seda.
― Dá o dedinho aqui, isso, agora somos BFFs: best friends forever!

Na prefeitura ganharam o apelido de Chitãozinho e Chororó, muito embora não tivessem qualquer semelhança com os cantores. Circulavam boatos, aquela coisa de rádio-pião: ora era Mansueto que mordia a fronha, ora Walfrido que beliscava o azulejo; que isso e que aquilo, mas também jurar, ninguém jurava. O fato é que navegavam em mar de almirante e céu de brigadeiro, o prefeito caminhava tranqüilo para a reeleição, e WM se faziam mais e mais indispensáveis para o chefe. Na peculiar lógica que rege a política, eram considerados honestos, corretíssimos, dois varões de Plutarco; uma vez feito o desvio, não desviavam o já desviado: faziam chegar a todos o justo e devido na azeitada engrenagem que haviam montado.
― Mansueto, sei não cara... uma hora a nossa casa cai, sabe o como é: imprensa, oposição... esses caras podem levantar coisas, e aí quem dança somos nós, os bagrinhos. Olha que Deus não dorme nunca. A justiça dos homens...
― Pára já, pára com isso, meu irmãozinho! Bicho, é o seguinte: a gente sempre tem que molhar a mão de alguém pra governar, entendeu? Os caras não fazem no amor, tem que dar um café pros caras. A imprensa daqui é compreensiva (esfrega o polegar e o indicador) e a oposição... a oposição táqui, ó (bate a mão no bolso).
Tinham seus arrufos, como em toda a relação, mas a amizade sempre era maior ― amizade pura, ao contrário do que maldavam as línguas bifurcadas. Walfrido não era inteiramente cínico, pruria-lhe o gilvaz, acometiam-no as comichões do órgão moral, tinha pontadas de sinceros escrúpulos; já Mansueto, perdia o emprego mas não perdia a piada, era um gozador em período integral.
― Wal, entrei para uma nova seita...
― Como assim? Que seita?
― É a “aceita cheque”... Hahaha!
― Blasfemo. Só lhe perdôo porque sei que você tem a inconsciência das crianças...
― Hehe, para nós, chequistas, deu, é amor!
Compraram terrenos contíguos em Mongaguá onde construíram suas casas de praia, como bons filhos da ascendente classe média paulista que eram. Providenciaram uma comunicação interna entre as casas pelo jardim ― no litoral, finalmente, tornaram-se vizinhos de porta. Sempre aberta, aliás, para a livre circulação de filhos, cachorros e empregados.
A inauguração simultânea foi nababesca e discreta, como convinha, embora por força de uma megalicitação municipal, ambos tiveram de interromper o feriado, pois havia reunião na casa do presidente do partido. Deixaram mulheres e filhos curtindo a piscina e as comodidades das mansões de veraneio; as patroas não cabiam em si de contentamento.
Foi de supetão. Presos os cães, deitadas as crianças, ligados os alarmes, e com os criados dormindo na edícula, elas se divertiam experimentando novíssimos peignoirs da Victoria’s Secret sobre os lençóis acetinados da cama king size. Quando perceberam, estavam aos beijos e abraços, rolando no macio e tirando a lingerie uma da outra.
― Uau, é... nem sei o que dizer, nunca tinha feito isso... com uma mulher!
― Então não sabia o que estava perdendo...
― Hmm, menina, nunca tinha sido tocada assim...
― Boba. Foi o casamento que te acostumou mal, sabe?, o sexo no casamento é que nem a coca-cola...
― Já sei, com o tempo perde o gás...
― Sim, quer dizer, no começo é normal, depois é light, daí é zero.


quarta-feira, 2 de maio de 2012

Os BFFs (parte 1)





            O acaso também há de ter a sua tecnologia; um maquinismo complexo e arbitrário capaz de fazer reagir a espessura do mundo, capaz de tecer os destinos mais improváveis, de cruzar os caminhos mais díspares ― até mesmo o aleatório teria as suas razões?
            Claro, porque, depois das duplas Pelé-Coutinho, Holmes e Watson, Johnson & Johnson, Laurel e Hardy, Washington-Assis, Tom e Jerry e do ZZ Top, todo mundo conhecia a dobradinha WM na prefeitura de São Bernardo; para amigos e conhecidos, Mansueto Carrascoza e Walfrido Pantaleão formavam a mesma, una e única, substância. Corda e caçamba, tranca e tramela; dois minutos antes do Big Bang já estavam juntos, brincavam.
Eram amigos de mijar cruzado, mas não que se conhecessem desde sempre, muito ao contrário. Ambos haviam cumprido carreiras paralelas no serviço público e na estrutura burocrática do mesmo partido político; Mansueto era gestor de recursos humanos em Itaquaquecetuba, enquanto Walfrido se destacava como assessor da área financeira em Mauá. Chegaram à cidade fundada pelo aventureiro João Ramalho a bordo dos famigerados cargos comissionados, os DAS (Direção e Assessoramento Superior).
Quando o partido ganhou as eleições para prefeito de São Bernardo do Campo depois de longo período na oposição, houve demanda por “quadros” qualificados para realizar uma administração modelo, que funcionasse como cartão de visitas na região. E assim, requisitados aos respectivos diretórios, é que foram se encontrar na secretaria que gerenciava os editais e as licitações da cidade com o 13º maior PIB municipal do Brasil.
WM realizavam uma tarefa importante e delicada, crítica mesmo, tanto no âmbito do governo como dentro da hierarquia partidária: direcionavam as compras de obras, equipamentos e serviços da municipalidade de modo a que os financiadores de campanha e parceiros econômicos recebessem suas merecidas contrapartidas em contratos públicos. Pode-se dizer que eles compreendiam o verdadeiro espírito do princípio de checks and balances.
Vista do alto, a coisa toda tinha a precisão dos relógios suíços que adornavam os pulsos dos nobres dirigentes do ABC paulista: por meio de aditamentos de contrato, suplementações orçamentárias e verbas extras, gerava-se um sobrepreço nos gastos públicos que deveria custear os participantes do esquema, o silêncio da câmara de vereadores, além dos recursos para a cúpula do partido e a formação do caixa “não contabilizado” das futuras campanhas.
Walfrido era pastor evangélico, carismático, grande obreiro. Tanto fez que trouxe o colega e a mulher para a sua congregação; as famílias estreitavam a cada dia o convívio, tinham filhos quase com a mesma idade que eram colegas de classe na escola. Mansueto, empreendedor nato, montou com o amigo uma empresa de aluguel de carros blindados para transportar as quantias em espécie que circulavam farta e descuidadamente à sua volta em bolsas, jaquetas, meias, sutiãs e cuecas. Usaram as esposas como ‘laranjas” para registrar a transportadora.
― Manso, meu irmão, tô ficando com medo disso tudo... não sei, esse enrosco todo que a gente (suspiro), você sabe, desagrada a Deus, dinheiro não traz a felicidade...
― Sai dessa, Waldo, é claro que o dinheiro não traz a felicidade. Ele só acalma os nervos. Você tem mais é que aquietar os seus... veja o lado bom: não foi você que me disse que as brigas com a patroa diminuíram, acha que foi por quê?