tag:blogger.com,1999:blog-68445637374638903992024-03-13T01:57:26.508-03:00REVISTA LOWCULTURAfilipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.comBlogger469125tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-66466202170417175282017-03-15T18:13:00.002-03:002017-03-15T18:13:49.156-03:00a missão do papagaio<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://2.bp.blogspot.com/-MdzEFzQyKbQ/WMmtndzXZvI/AAAAAAAAEnU/eneim53jaAYPkt-HYEyMc5k4FownB69WACLcB/s1600/IMG_0066.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://2.bp.blogspot.com/-MdzEFzQyKbQ/WMmtndzXZvI/AAAAAAAAEnU/eneim53jaAYPkt-HYEyMc5k4FownB69WACLcB/s400/IMG_0066.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Conta-se que o rei dos pássaros deixou cair no centro da China uma pluma
esplêndida. A radiância das suas cores irisadas atraiu cem mil pássaros dos
quatro cantos do mundo, eram tão numerosos que encobriam a lua e o peixe, as
nuvens e o sol. Sabiam que a fortaleza de seu rei estava no Káf, a montanha
circular que rodeia a Terra. Empreenderam a quase infinita aventura, superaram
sete vales, outros tantos mares; o nome do penúltimo era vertigem, o ultimo se
chamava aniquilação. Muitos peregrinos desertaram, alguns pereceram. Trinta
purificados pelos trabalhos chegaram à montanha real e pisaram a soleira do
palácio de cristal polido.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Enfim, contemplaram.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Aquele sobre o qual recai um encontro afortunado adquire imediatamente a
posse de cem segredos, o sentido misterioso das coisas. No mesmo instante,
aqueles bem-aventurados aprenderam a linguagem dos pássaros e foram cumulados
de todos os bens. Asseguram as tradições que tal ciência possibilita conhecer a
si mesmo, ao mundo e às criaturas na proporção que mantêm entre si, e também
com sua essência ou origem. Foram informados que deveriam instruir a humanidade
nesta língua tão antiga que mais parece canto, música, dança, e a sua expressão
mais pura: o número.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Estavam em êxtase quando o monarca retirou os noventa e nove véus do seu
rosto deslumbrante como o sol, produzindo incontáveis sombras sobre a terra.
Depois, lançando um olhar sobre cada uma dessas puras sombras, desprendeu-se
delas, deixando-as no mundo, e cada uma deu nascimento a um pássaro: poupa,
lavadeira, papagaio, falcão, codorna, pavão, faisão, rola, pomba, rouxinol,
pintassilgo, pato... Puderam compreender como as diferentes espécies de pássaros
que vivem no mundo não são mais que a sombra desta presença, descobriram assim que
se deve admirar com inteligência o mistério, mas divulgá-lo com mais sutileza
ainda. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">A poupa, líder e guia dos viajantes, foi quem primeiro percebeu que não
há olho susceptível de admirar esta beleza, nem mente para compreendê-la, pois
ela não se deixa aproximar como às belezas temporais. Porém, tamanha é a
bondade do rei dos pássaros, que ele fez um espelho para refleti-la: o espelho
é o coração. E por isto o coração deve ser um espelho resplendente e profundo,
bastará olhar e ver aí sua imagem. E também por isto é que a linguagem dos
anjos é mais facilmente aprendida pelos bebês, os loucos, os amantes e os
poetas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Então chegou a hora da poupa incumbir o papagaio da sua missão junto aos
homens e mulheres habitantes das cidades. O papagaio vestia um traje verde como
pistache e usava um colar de reluzente ouro em seu pescoço, comparado a seu fascínio,
o gavião não era mais que um mosquito, por toda a parte o manto verde das
florestas refletia o brilho de suas plumas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ó poupa, os homens têm a alma vil e o coração de aço. Vão trancar-me
numa gaiola de ferro, amarrar-me a correntes, cortar minhas asas e serrar meu
bico. Tão gracioso sou, livre de suas perseguições!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― O cativeiro é duro com todos, principalmente com os espíritos
verdadeiramente livres, mas não te enganes: quem deve aprender é o mais forte.
Só poderás quebrar as cadeias do teu senhor quando ele estiver livre da
escravidão que te impôs.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― As cidades dos homens são como desertos para quem se acostumou com a
doçura dos frutos, a brandura da sombra das árvores, a felicidade de migrar em
bando junto aos seus irmãos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Busca, papagaio, a água da vida e não percas a alegria dos caminhos.
Põe-te em marcha, porque não terás a amêndoa, terás somente a casca. Age como o
amante, renuncia à tua alma para procurar o coração do amado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E como farei eu, triste e cativo, para derrubar os muros de almas tão
empedernidas que prendem os nascidos para voar e embelezar os céus?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Repetirás as palavras que eles mesmos dizem, mas das quais são incapazes
de escutar o verdadeiro sentido. Considera o todo, busca o todo, escolhe o
todo, vê o todo.</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-40129012391867767432016-12-11T16:32:00.001-02:002016-12-11T16:32:25.064-02:00Super K (5)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://3.bp.blogspot.com/-r7C0KMQrDVo/WE2a-xdK-AI/AAAAAAAAEmw/y0-QGMXBruYsrln-OX7ANssI-zYEq3RgwCLcB/s1600/IMG_2568.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://3.bp.blogspot.com/-r7C0KMQrDVo/WE2a-xdK-AI/AAAAAAAAEmw/y0-QGMXBruYsrln-OX7ANssI-zYEq3RgwCLcB/s400/IMG_2568.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Boa tarde,
sou a Dra. Ana Cecília Schwank, estou aqui para...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Sei quem você
é, e o que faz. Sou o Orlando, tenho tanto medo de você que mal consigo
respirar.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Nossa, não
precisa temer nada, por favor, fique confortável. Esta é uma entrevista de
recrutamento para uma pesquisa totalmente voluntária e...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Há tanta
diferença assim entre um interrogatório médico e um policial? Tenho minhas
dúvidas, doutora.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Bem, Orlando
Silva Luís, você foi condenado à pena de morte e aguarda na fila de execução.
Confessou o crime, não se defendeu, nem pediu nenhum tipo de recurso, tentou o
suicídio diversas vezes sob custódia. Recusa alimentação e visitas, seu
relatório admissional do presídio indica depressão severa.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Cometi o
crime mais indesculpável de todos, matei meus próprios pais. Sabe, tinha grana
pra transformar a condenação à morte em prisão perpétua. Tente adivinhar por
que não fiz isso.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Realmente
você me pegou, não faço a mínima idéia.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Pra poder
deixar alguma coisa aos meus irmãos, eles perderam numa noite só, o pai, a mãe,
e o irmão mais velho. Dinheiro pode comprar algum conforto nesse mundo de merda
em que eles ficaram largados.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Já que
estamos falando nisso, é uma coisa incompreensível a sua atitude: você era um
analista de sistemas brilhante, sem antecedentes de violência, tinha uma
carreira promissora, estava em vias de se tornar um... de nós. Por que jogou
tudo fora, o que os seus pais lhe fizeram de tão ruim?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Doutora, pela
sua aparência, deduzo que já nasceu na casta dos privilegiados, mas você não é
uma riquinha qualquer: na sua carreira colaboraram o berço e o mérito. Assim
como meu eu antigo, você tem fé no sistema, afinal, há um funil estreito de
progressão social baseado no esforço e no talento individuais. Correto?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Certo. Veja,
pobres e ricos recebem a mesma educação gratuita e de boa qualidade, os
melhores se destacam e obtêm vantagens. O que há de errado nisso?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Pois é, o
problema é que o diabo mora nos detalhes, nos pequenos detalhes que demorei
tanto a entender. Como você, engoli a balela de que me bastaria crescer na
profissão e cavar meu lugar ao sol, mas havia o lado sombrio da engrenagem: o
preço do ingresso era bem mais caro. E sórdido.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Como assim?
Aonde você quer chegar?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Há uma
pequena taxa de adesão que as famílias pobres devem pagar à comunidade para
seus filhos entrarem no rol dos afluentes. Uma ninharia. Procure se informar
sobre o serviço das vans laranja, se ainda não o conhece, verá que andou
perdendo tempo em termos de diversão. É verdade, os pobres são educados porque
as inovações surgem dos lugares mais inesperados, mas eles pagam um imposto bem
maior que o seu talento para se tornarem abastados.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Estamos nos
desviando do objetivo desta entrevista. Devo concluir que não está interessado
em participar do teste de uma molécula que poderia aliviar seu sofrimento
psíquico?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Pelo
contrário, estou muito interessado em tomar uns shots de uma droga que tem a
virtude de dar um bom barato e a vantagem colateral de retirar das mãos do Estado
o prazer de acabar com a minha vida.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Mas não é
nada disso, asseguro-lhe que os testes são em ambiente controlado e dispomos de
toda a infraestrutura pra...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Poupe a
conversa mole, doutora, tá na boca do povo: esse tal de Super K que vocês estão
estudando mata mais do que cura. Aqui na cadeia, descobri o que é a vida de
vocês, a prisão perpétua é como a eternidade biológica: um suceder de dias
tristes e sem milagres. Alguns, como você, agarram-se a uma carreira, uma
espécie de missão, a maioria se distrai mesmo é abusando dos mais fracos.
Percebo que realmente ignora o que estou falando, então, faça aquilo que a sua
qualificação indica. Pesquise, procure saber.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Você precisa
preencher estes questionários e registrar sua aceitação voluntária na câmera.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Não se
preocupe, vou assinar tudinho, e vou fazer isso pra morrer despercebido nas
suas estatísticas, ocultar-me no silêncio que transforma as pessoas em coisas,
porque agora que me tornei um de vocês, estou sozinho no meio da estrada, sou
uma matilha de sentimentos ferozes e contrários, uma casa à espera de ser
esvaziada.”</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-60844113186121548622016-12-04T18:04:00.001-02:002016-12-04T18:04:37.719-02:00Super K (4)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-CgJ-_1zrSKY/WER2MRJScnI/AAAAAAAAEmE/hzyjDozI4cARuhchQNGKjUD3PswSh45AwCLcB/s1600/IMG_2581.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://4.bp.blogspot.com/-CgJ-_1zrSKY/WER2MRJScnI/AAAAAAAAEmE/hzyjDozI4cARuhchQNGKjUD3PswSh45AwCLcB/s400/IMG_2581.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Por um curto período quando comecei a enricar,
fui assediado por pensamentos intrusivos que quase me escapavam da boca ― eram
as idéias-berro ―, quando descia no ponto final do trem e voltava para casa pelos
becos da favela, a cabeça punha-se a gritar de forma tão veemente que chegava a
temer que as palavras saíssem pelos olhos. ‘Vocês estão vendo, imbecis? Sabem
como se vira rico? É só aprender a extrair o ouro escondido na burrice do
pobre. Vocês entenderam? Estão vendo eu aqui, andando no meio de vocês?, pois
bem, daqui a pouco vou vir de helicóptero cagar em cima da cabeça dos otários.
Seus otários!’ Era horripilante ouvir-me culpando as vítimas, desprezando-as,
mesmo que em pensamento.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Entretanto, nunca me atrevi a dar livre
curso aos rompantes de fúria, sou antes de tudo um rapaz cordato e educado. Tinha
fé no sistema. Eu, Orlando, vim ao mundo com uma habilidade inata para decifrar
códigos, nada mais natural que ascendesse socialmente para a casta dos eleitos,
com sorte, ainda conseguiria trazer a família junto. Não que fosse cego para as
injustiças, percebi de imediato a grande massa de excluídos amontoados <st1:personname productid="em extensas Trenchtowns" w:st="on">em extensas Trenchtowns</st1:personname>
com cara de cenário Mad Max que circunda os resorts dos ricos. Nestes, o seleto
grupo dos imortais curte a sua aisance em sofisticados bairros-conceito cujo
urbanismo fluido combina os ambientes de floresta, jardim, clube e shopping
center. A chave do paraíso era (ao menos assim acreditava) o mérito pessoal, a
desigualdade então parecia-me feia, mas não injustificável.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Tudo ia bem, não fosse aquela conversa
esquisita com o meu amigo Carlinhos. Dali em diante não pude mais sossegar até
descobrir o segredo das vans laranja; com o acesso que a minha posição me
franqueava, foi relativamente fácil solucionar o mistério. Na verdade, se
mistério havia, talvez eu fosse um os poucos a estar por fora: era moeda
corrente, tanto do lado de fora, como dentro da redoma dos endinheirados. Um
segredinho sujo que mantinha aquela ordem de coisas <st1:personname productid="em p←. Os" w:st="on">em pé. Os</st1:personname> metidos a bacanas
surgiram pra mim numa insuportável luz negra: a vida eterna deles era uma
gaiola de ouro, um pântano infinito de tédio e depressão no qual se afundariam,
não fosse o requinte de exploração que ainda tinham a cara de pau de redobrar
pra cima do povão.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Comprei a arma do Carlinhos. Havia contas
urgentes a acertar.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Parei no bar da esquina, o dono me estranhou
por ali tomando pinga e pagando rodada pra bebum. Não havia mais volta. Cambaleei
na direção de casa, meus irmãos e irmãs menores não estavam, festa-de-sei-lá-o-quê.
Só os velhos, dormindo. Diante da porta, perplexo: não consigo enfiar a chave
na fechadura. Ganho impulso, derrubo o madeirite que faz as vezes de porta.
Caio de pé no tapete da soleira. Ao cruzar a cozinha derrubo o maldito tacho
fazendo um barulho dos diabos. Que se dane, melhor que acordem. Paro pra
escutar, ninguém se mexe no quarto. Vou até eles, a dupla de monstros que me
botou no mundo. Abro a porta, minha mãe se remexe na cama. Um, dois, três tiros
no meu pai. Nem acorda, geme por alguns segundos. A cama se tingindo de sangue.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Meu filho, que horror, por quê?”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Por quê, mãe, você tem a coragem de me
perguntar por quê?”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Seus olhos, você bebeu? Como pode me olhar
com tanto ódio?”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“E você, mãe? Como pode me olhar depois do
que você e... ele fizeram? Acharam que eu nunca ia descobrir? Ou talvez tenham
pensado que ia aceitar, afinal a vida é assim mesmo, né?”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Abaixe essa arma, filho, me escute. Você
está pondo tudo a perder, nós fizemos tantos sacrifícios por você, pra que
pudesse...”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Sim, vocês fizeram muito sacrifícios, mas
esse sacrifícios eu chamo de barbaridade, de crime. Vocês ofereceram meus
irmãos para aqueles... aqueles monstros da cidade rica! Mãe, onde estava com a
cabeça? Achou que eu ia aceitar isso e simplesmente seguir em frente?!”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Filho, essa é uma coisa que acontece já
muito antes de você nascer! A gente não tinha escolha, ou acha que pra virar
rico basta ter um talento? Eles pedem mais.”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Muito bem, a senhora disse que não tinha
escolha. Mas eu tinha! Devia ter me perguntado se eu aceitava os termos do
negócio. Tenho cara de quem gosta de saber que aqueles malditos abusam dos meus
irmãos?”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“A vida nem sempre é como a gente espera.”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“A morte também não, mãe!”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Dois tiros na cabeça dela. Na hora de
estourar meus próprios miolos, a arma travou.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-11887469930602435952016-11-27T18:05:00.001-02:002016-11-27T18:05:50.995-02:00Super K (3)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-M59dgjUOzSI/WDs718v9uJI/AAAAAAAAEl0/X1jb6sVkxAEIr91Qh4044NUWXf3hWOjjgCLcB/s1600/IMG_2570.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://4.bp.blogspot.com/-M59dgjUOzSI/WDs718v9uJI/AAAAAAAAEl0/X1jb6sVkxAEIr91Qh4044NUWXf3hWOjjgCLcB/s400/IMG_2570.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Candy deu uma
tragada no cigarro eletrônico desprendendo uma fumaça inodora, ajustou o equipo
do soro no braço da paciente e regulou a infusão do anestésico e do relaxante
muscular. A mulher deitada na cama hospitalar rapidamente perdeu a consciência.
Fez uma mesura exagerada na direção de Ana Cecília, que acabara de entrar na
sala de eletroconvulsoterapia.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Ora, minha
querida, retire esse meio sorriso desaprovador do seu rosto lindo e junte-se
aos que batalham pela saúde mental da humanidade sofrente.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Não seria eu
a tirar de você o prazer de um eletrochoque. Mas vim para lembrá-lo da reunião
com a Anvisa, acho que vamos ter uma boa batalha hoje pela continuidade da
nossa pesquisa em prol da ‘humanidade sofrente’.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Ora,
bobagens! Os aparelhos antigos produziam pulsos longos, sinusoidais, agora veja
esta belezinha: um eletrodo só na têmpora direita da dona Maria, um estímulo
elétrico ultrabreve de 0,25 milissegundos e... voilà, tratamento antidepressivo
rápido, menos efeitos colaterais, e remissão prolongada”, um pequeno
estremecimento perpassou o corpo da paciente, cujo rosto se contraiu adquirindo
uma coloração azulada evanescente, no canto da boca entreaberta escorria um
filete espesso de saliva.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Você acha
mesmo que os benefícios dessa técnica compensam a perda de funções cognitivas
que ela acarreta?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Minha cara,
se ignorance is bliss, por que não o seria o esquecimento? No palácio da
memória há muitas masmorras de suplício. Em primeiro lugar vem o dever, sendo
assim, vamos.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Candy tirou o
jaleco e as luvas, deu uma rápida ajeitada no terno e carregou no celular os
arquivos da sua fala para os técnicos do governo e os investidores privados.
Sabia que os questionamentos quanto aos riscos da pesquisa que conduzia no
laboratório colocavam em risco o fluxo dos financiamentos e doações, mas na sua
auto-suficiência não havia espaço para hesitações. A mídia acompanhava com lupa
os resultados do testes em cobaias humanas recrutadas nas prisões ― havia um
óbvio interesse público na promessa contida no Super K, cura rápida e
permanente da maior epidemia do século XXI, mas o número crescente de vítimas
fatais do experimento clínico começava a despertar a crítica especializada.
Alguns analistas falavam abertamente em rever os protocolos de segurança, mesmo
quando se tratasse de condenados à morte ou prisão perpétua. Ana Cecília
observava cada um dos seus gestos, numa atitude oscilante entre a dúvida e a
admiração.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Senhores e
senhoras, antes de entrarmos no assunto específico desta reunião, permitam-me
um pequeno excurso. Todos aqui sabem que as novas biotecnologias possibilitaram
o que antes era assunto da ficção científica: superar o envelhecimento
biológico e a morte. A idéia de que todos os organismos, e até mesmo a vida,
sejam algoritmos dentro de um processamento de dados levou a avanços dramáticos
em nossa estrutura política e social. O surgimento da computação quântica, o
domínio do processo de envelhecimento celular, tecnicamente conhecida como
apoptose, e o desenvolvimento das enzimas reparadoras de defeitos genômicos,
que corrigem a degeneração causada pela radiação, levou ao advento de uma
inédita geração de humanos imortais. Evidentemente, tais avanços trouxeram
novos desafios: o custo das despesas médicas disparou, e, na prática, o que
vemos hoje é uma sociedade dividida entre os que podem e os que não podem arcar
com o preço destas tecnologias, entre os poucos bem-aventurados e os muitos
mortais. Aprendemos a reformatar a realidade física e ecológica fora de nós,
mas não entendemos bem como o sistema da economia dos afetos funciona. Isto
resultou na ruptura deste sistema: vemos hoje uma população de privilegiados
tombar sob o peso de distúrbios mentais resistentes aos tratamentos disponíveis...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Doutor
Candido, sem querer interrompê-lo, mas já interrompendo, gostaria de deixar
claro que esta reunião tem o objetivo de elaborar um discurso crível para a
opinião pública”, a diretora-chefe iniciou a sabatina, secundada pelos membros
do conselho.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“O fato, nu e
cru, é que a sua pesquisa com os derivados da quetamina está simplesmente
produzindo uma pilha de cadáveres.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Já há quem
diga que as pesquisas médicas se tornaram um programa de extermínio em massa de
pobres, que o Ministério da Saúde virou o Ministério da Morte!”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Quando se
tratava simplesmente de experimentar drogas perigosas em bandidos condenados, a
população tolerava bem. No máximo dizia-se: um problema a menos. Mas a coisa
saiu de controle.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“O que o
senhor teria a propor como estratégia de controle de danos à nossa imagem de
promotores do bem-estar público?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Penso que
deveríamos controlar o acesso aos dados preliminares da pesquisa”, Candy suava,
demonstrando inabitual desconforto, “restringir a divulgação aos veículos mais,
digamos, alinhados com as diretrizes governamentais, focar numa agenda
positiva, afinal, há resultados animadores para mostrar. Duvido que uma
pesquisa científica possa servir de estopim para revoltas populares”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Candido e Ana
Cecília voltaram em silêncio, ela insistiu para que fossem descansar o resto do
dia depois do massacre da reunião com as agências de fomento à pesquisa. Mas o
colega e chefe não se mostrava inclinado a alterar a rotina de trabalho.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Vou
supervisionar uma cirurgia estereotáxica agora Ana, e depois, trabalhar é o que
realmente me descansa.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Pára com
isso, Candy, amanhã você pode fritar cérebros com à vontade. Tenho um Chatêau
Lafitte em casa, e te prometo uma massagem relaxante. Até workaholics como você
podem tirar uma tarde de descanso. By the way, gostei muito do que ocê falou
sobre os sentimentos”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Você sabe o
que penso sobre o assunto: subterfúgios do egoísmo. Eu te amo para que você me
ame. Vistos de perto, os sentimentos são quase sempre sinistros.”</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-38668927757519835882016-11-20T17:43:00.001-02:002016-11-20T17:43:16.854-02:00Super K (2)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://3.bp.blogspot.com/-BOP5mC7bLg0/WDH8DJ1BOpI/AAAAAAAAElk/HXoMk7gY6lgN7jxv0nJbC4Uvo2Vk9ItVQCLcB/s1600/IMG_2562.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://3.bp.blogspot.com/-BOP5mC7bLg0/WDH8DJ1BOpI/AAAAAAAAElk/HXoMk7gY6lgN7jxv0nJbC4Uvo2Vk9ItVQCLcB/s400/IMG_2562.JPG" width="300" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Até começar a conviver com os ricos, nunca
soube o que realmente os diferenciava de nós, os pobres. Quer dizer, sabia o
básico: eles mandam e conduzem, nós obedecemos e somos conduzidos ― debaixo de
vara. Freqüentemente esta vara é bem visível, no mais das vezes ela parece vir
de dentro, como um destino impresso nas más estrelas que presidem aos
nascimentos, ou codificada em genes defeituosos que levam ao crime, ao desespero,
às escolhas erradas. Sei que não é muito bonito dividir as pessoas em “nós” e
“eles”, mas não fui eu que inventei esse jogo, apenas estou tentando jogá-lo da
melhor maneira possível. Em todo caso, trata-se de aceitar os dados do mundo
tal como o encontrei, a única mudança que parece viável é a da minha posição
relativa no tabuleiro onde acontece a jogatina. Hoje estou na situação
privilegiada de poder mudar de lado, falta pouco, dizem-me repetidamente.
Possuo talentos inegáveis como autodidata na área de tecnologia da informação,
ascendi por méritos próprios a consultor de riscos financeiros ― traduzindo,
sou um dos melhores caçadores de fraudes econômicas da minha geração. Os
setores onde moram e trabalham os bem-aventurados são incríveis: seguros,
limpos, arborizados, (não há drones no policiamento ostensivo!), a sensação é
de que ali nunca ninguém precisa levantar a voz para ser ouvido e/ou respeitado.
No entanto, o meu ganha-pão me lembra constantemente o quanto os ricos são
obcecados pelos desfalques, como se, depois de espoliar os mortais, não lhes
restasse outra diversão que não roubar uns aos outros. Bem, esta é outra grande
diferença entre o andar de cima e o de baixo: eles são imortais, nós não. A
tecnologia que permite viver indefinidamente é cara e inacessível à grande
maioria da população. Natural. Seria impossível alocar recursos para que todos
pudessem consumir sem limites num sistema, que, afinal de contas, é finito. Uns
vivem, outros apenas existem. Todos os dias testemunho esse contraste. Saio da
casa dos meus pais e me desloco para a parte boa da cidade, o passe especial de
trabalho permite adentrar a Green Zone sem necessidade de quarentena, apenas um
scaneamento corporal completo. Nós pobres parecemos estar sempre sujos de uma
sujeira que não está na pele, nem nas roupas, diria que é uma mancha
estrutural, afetiva até, nossas alegrias ou tristezas são sempre exageradas, amazônicas,
ao passo que os ricos são mais controlados nas manifestações exteriores, parecem
dominar tudo à sua volta, principalmente a eles mesmos. Por tudo isso, e mais
outras observações adicionais, é que cheguei a perceber a estranheza reinante
no meu lar: há uma melancolia da minha família que nunca consegui explicar, uma
espécie de nota triste, um ritmo de fundo, contínuo, lento como as doenças
crônicas. Como se meus pais e irmãos fossem ainda mais miseráveis que a miséria
reinante naquele lugar. Apesar da imensa quantidade de dados nas minhas mãos,
aquela informação continuava a e escapar.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Fala Orlando, tá indo pro trampo, irmão?”,
um amigo de infância, Carlinhos, um daqueles moleques do bairro que nunca
parece ter nada para fazer.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“É, vou pegar o trem daqui a pouco. Estranho
isso, não...?”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“O que é estranho pra você, meu broder?”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“As unidades de transporte especial, sempre
vejo essas vans laranja no pedaço e não entendo por quê. Pra levar as crianças
pra escola é que não é.”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Hehehe, tu passou tempo demais estudando
pra entender certas coisas da vida”, levantou-se da pedra onde estava sentado e
caminhou na minha direção. “Tem um tempinho?”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Se vai me contar sobre as tais ‘certas
coisas da vida’, tô dentro. Deixa só eu avisar que vou chegar um pouco
atrasado.”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Acho que vai gostar, pelo menos cê é dos
que tem grana pra comprar a belezinha que vou te mostrar”, saímos andando, ele
na frente, por um labirinto de vielas em Bidonville com os drones de vigilância
nos filmando lá do alto. Finalmente ele parou, digitou um código na porta de um
casebre abandonado e entramos.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Cara, não vamos fazer nada ilegal, você
sabe que eu...”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Piano, bro, nós só vamos dar uma olhadinha.
Olhar não tira pedaço, e depois, no mapa deles, isto aqui é só um centro
comunitário pros zoiões lá de cima. Não pega nada.”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Fomos atravessando uma série de cômodos
vazios no muquifo, subindo e descendo escadas na construção irregular, que, aparentemente,
servia de esconderijo aos jovens do pedaço para fazer suas festas clandestinas.
As paredes estavam grafitadas com slogans anarquistas, declarações de amor,
tags, bombings. Num dos quartos havia um cofre, Carlinhos se ajoelhou e inseriu
o segredo na tela, a porta se abriu. Puxou lá de dentro uma caixa de papelão.
Fez uma pausa dramática antes de destampá-la.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Muito bem, Orlando, te disseram um monte,
falaram que isso não existia mais, mas agora cê vai conhecer o que é... o poder”,
os olhos dele brilhavam no quarto semi-obscuro, as mãos tremiam levemente
segurando a embalagem ainda fechada.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Caramba, mano, parece que vai sair daí o
gênio da lâmpada...”, tomei um susto quando ele mostrou a arma dentro da caixa.
“Puta merda, cê tá louco? Isso é crime da pesada!”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Pois é, mas tá aqui, funciona, e vem com
munição. Quer pegar ela? Só pelo prazer da experiência, sente o peso, a
sensação de poder que a bichinha te dá...”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">Saímos em silêncio, eu não conseguia definir
a maçaroca de emoções que me ocorriam naquele momento. Temia ser cúmplice de
alguma coisa que não compreendia bem o alcance. Por outro lado, aquilo era o
reverso de uma medalha que conhecia bem demais: quem não nascia em berço de
ouro precisava se virar no contrabando, no escambo, bem ou mal, a ilegalidade
não era exclusiva de nenhuma classe social específica. Carlinhos não tirava os
olhos de mim, parecia escolher as palavras adequadas para comunicar algo muito
importante ou íntimo.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Então, mano, tu não é o nerdão do rolê?
Mexe teus pauzinhos lá no sistema dos bacanas, não deve ser difícil pra tu
saber o que são as vans laranjas.”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Carlinhos, e por que você não me conta logo
a fita toda de uma vez? Tá na cara que sabe.”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Tem coisas, irmão, que a gente só acredita
vendo com os próprios olhos. Tu nunca foi atrás disso porque tinha medo da
resposta. Vai de boa, na paz de Jah.”<o:p></o:p></span></i></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-84876915162829172732016-11-14T17:26:00.001-02:002016-11-14T17:26:37.464-02:00Super K (1)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-f7b-fSQrr_4/WCoPOf2LI2I/AAAAAAAAElM/5CJStMfskwU8GagAugXOF8r7c3PHyUJ_ACLcB/s1600/IMG_2558.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://4.bp.blogspot.com/-f7b-fSQrr_4/WCoPOf2LI2I/AAAAAAAAElM/5CJStMfskwU8GagAugXOF8r7c3PHyUJ_ACLcB/s400/IMG_2558.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Um brinde ao
amor e, portanto, ao ódio, Liebe und Haß, como diriam nossos amigos de Manheim”,
tentava manter a calma, mas estavam perdendo o paciente.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Não está
respondendo ao betabloqueador, a pressão subiu muito”, de olho nos monitores, a
médica assistente fazia os procedimentos de urgência o melhor que podia.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Está muito
taquicárdico, 250 por minuto e não baixa. Você lembra dessa época, Aninha,
Manheim?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Lembro dessa
época com carinho, Candy, nós éramos doutorandos cheios de energia e sonhos, e,
se bem me lembro, você ainda não tinha se transformado nessa pessoa tão cheia
de si, tão... Você não percebe o que está acontecendo? Ele está indo, como os
outros.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Ora, poupe-me
do sermão, você sabe o quanto é comum que duas noções suficientemente díspares
ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida,
várias combinações são possíveis. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais
preocupante, nascimento e morte.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Entrou em
fibrilação, me ajuda com o cardioversor e deixa de falar besteira.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Voltou. Mas
ainda temos más notícias: a gasometria indica uma acidose metabólica, o rim
dele parou”, ele limpou o suor da testa com as costas da mão num gesto
desanimado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Iniciamos xilocaína
e amiodarona?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Melhor não,
custos desnecessários. Daqui em diante nossos esforços não poderiam ser mais
irrelevantes, já vimos essa reação. Os mortos não respondem a mais ninguém, a mais
nada. Assim que isto estiver terminado, podemos tentar escrever um artigo. O
mundo clama por novos empiristas.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Não sei se
tenho a sua, hã, disposição para o trabalho especulativo, você sabe muito bem
que sou a devoradora de dados, a rainha das meta-análises. Empiristas, você
disse? Nós sacrificamos tudo no altar das evidências disponíveis, e as
evidências sugerem fortemente que esta droga não é segura. Não. Definitivamente
não possuo essa sua veia poética e, por que não dizer, midiática.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Bom, bom, no
ponto em que estamos ainda não é chegada a hora da exposição pública, mas
acredito que estamos muito perto de algo grande. Não acha?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Quer saber
mesmo o que eu acho? Acho que estamos brincando com fogo, isso sim. Este pode
ser o melhor antidepressivo da história, mas é simplesmente tóxico demais. Olha
pra ele, o rapaz mal tem 20 anos.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“De novo, é um
par de opostos saindo do lance de dados: veneno e remédio, tudo ou nada. Você
viu os resultados preliminares dele, nós estamos na pista certa, Ana, sabemos
que sim. Alguns sacrifícios são necessários pra que...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Houve um
tempo em que acreditei nisso, Candy, achei mesmo que estávamos destinados a
grandes descobertas, a penetrar os segredos mais bem guardados do cérebro. Uma
tolinha romântica eu era, apaixonada pela sua maneira elástica de andar, pelas
suas gravatas sofisticadas, por essa habilidade sibilina de sempre encontrar as
palavras certas. Você sempre dominou a grande arte da retórica: fazer as coisas
coincidirem com as palavras, dar a impressão de que o quebra-cabeças estava a
poucos passos de ser resolvido. De uma vez e para sempre.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Além do mais,
você sabe, esse daí não era boa bisca.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Ana Cecília
debruçou-se sobre o corpo na cama hospitalar e fechou-lhe os olhos, depois,
subiu o lençol cuidadosamente cobrindo o rapaz por inteiro. Orlando da Silva
Luís, paciente 23. Desligou todos os aparelhos de monitoramento dos sinais
vitais. A linha do eletrocardiograma era uma reta monótona e ininterrupta. Na
sua mente, clara como uma lâmpada de desenho animado, aparecia a imagem da sua
cachorra de estimação imóvel sobre a mesa de metal do veterinário. Morto em
poucas horas após administração endovenosa. Pico hipertensivo não respondente
às drogas convencionais, somado a uma falência completa do sistema urinário:
necrose renal bilateral extensa e lesões irreversíveis na bexiga. A química sem
piedade, propósito ou remorsos. Estamos sujeitos às mesmas regras obscuras que
infernizam nossos animais queridos, a grande coleira do não ser também está no
nosso pescoço.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Candido
Frota-Pessoa, psiquiatra-chefe do laboratório se fechara na sua sala e
preenchia os relatórios de pesquisa detalhando cada uma das reações que o
paciente apresentara antes de vir a óbito. Não era a mesma coisa de antes, ao
menos, não para ela. Os novíssimos protocolos de pesquisa farmacêutica
autorizavam testes fase 3 em humanos “selecionados” muito antes da segurança das
drogas estar plenamente atestada <st1:personname productid="em cobaias. A" w:st="on">em cobaias. A</st1:personname> reanimação cardio-respiratória nem
mesmo era obrigatória: os voluntários eram recrutados no presídio entre os
condenados à morte. Era o novo Zeitgeist. Alguns humanos mereciam menos
compaixão do que os bichos. Direitos humanos, dizia-se agora abertamente, só
para os humanos direitos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Ela e o chefe
estavam imbuídos da missão mais intrigante do século, debelar a epidemia
depressiva que varrera o planeta havia se tornado o Santo Graal das mentes
científicas mais brilhantes e ambiciosas. Bilhões de dólares eram despejados
nos laboratórios ao redor do globo, mas as descobertas não seguiam o ritmo
desejado. A maioria das drogas antidepressivas disponíveis mal superavam a
melhora obtida com placebos, e pior, demoravam meses para surtir efeitos
parciais, além de serem pouco eficazes na prevenção de recaídas. O Super K e
seus derivados, apesar de não serem propriamente moléculas novas, apareciam nas
pesquisas mais recentes como a esperança de cura rápida ― e definitiva. Os
cadáveres no caminho do progresso não contavam para as agências oficiais, a
corrida estava apenas começando.</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-92019981113562741832016-10-30T23:05:00.001-02:002016-10-30T23:05:52.015-02:00Cristiania (final)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-5hiqS-NT81w/WBaYbKMTlUI/AAAAAAAAEk4/efF4OIXdk9U8ZilTamqqn7I8Iy610GugwCLcB/s1600/IMG_2520.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://4.bp.blogspot.com/-5hiqS-NT81w/WBaYbKMTlUI/AAAAAAAAEk4/efF4OIXdk9U8ZilTamqqn7I8Iy610GugwCLcB/s400/IMG_2520.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">(24 horas
antes)</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">O elevador
esvaziava vagarosamente sua pequena multidão como se fosse a rainha de um
cupinzeiro expelindo ovos nas paradas antes de chegar ao décimo quinto, e
último, andar. Lojas de produtos eletrônicos, casas de câmbio, detetives
particulares, puteiros privê, seguradoras, manicures, comércios de ouro,
receptadores de jóias e celulares, assistências técnicas variadas, escritórios
contábeis, empresas de representação e de fachada, advogados-porta-de-cadeia,
cada uma das boutiques do edifício Cristiania engolia e regurgitava sua
quantidade costumeira de fregueses assíduos e freqüentadores eventuais. Iam e
voltavam, a carga humana subindo e descendo continuamente. Entre os passageiros
daquela manhã uma mulher chamou a sua atenção, ela postou-se no canto de trás à
sua esquerda, o mais oblíquo em relação a ele que ficava de frente para a
entrada, alinhado ao mostrador onde operava os botões e manivelas do ascensor. Vestia-se
como as garotas de muitos anos atrás, embora não escondesse ter vivido cada
década desde então, um jeito mimoso envolto na atmosfera nevoenta de tempos
mais inocentes. Ela não havia indicado o andar, e não se incomodava com nenhuma
das paradas da geringonça barulhenta e brusca. Parecia vaidosa, bem maquiada e
cuidada em cada detalhe; uma ponta de cabelo, a insinuar um cacho, saía
propositalmente de um chapéu preto enfiado na cabeça. Do sapatinho de tira
sobressaía a delicadeza dos pés miúdos, os braços escorriam ao longo do torso
segurando uma carteira com fecho de pressão, o sorriso manso fazia pensar numa
certa satisfação consigo mesma, apesar do enigmático mutismo que a impedia de
declinar aonde ia.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― A senhora
não vai descer? Já chegamos ao último andar, daqui pra diante só tem voltar ―
não havia passageiros para entrar, nem chamadas de outros andares. O silêncio
cortado apenas pelo burburinho da rua.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― De todo esse
mundão de gente dessa cidade, achei que você seria o último que não ia me
conhecer...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E eu lhe
conheço de onde, pode me dizer?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Melhor ainda
era perguntar: eu lhe conheço de quando?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Bom, se é
assim, então, de quando eu conheço a senhora?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Preferia que
não me chamasse de senhora, aumenta a idade, e as mulheres não gostam de nada
que lhes aumente a idade. Nem que sejam palavras.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ainda assim,
continuo sem entender onde quer chegar com essa parolagem...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Já cheguei
onde queria, acredite, não foi fácil encontrar você depois de tanto tempo. Não
tinha muitas indicações, e também as pessoas não são de falar com quem não
conhecem por estas bandas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― É que num
lugar deste tamanho ninguém conhece ninguém, aqui só o cachorro não esquece do
dono.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Será que eu
mudei tanto assim? Enfeiei, arruinei demais, foi? ― tirou o chapeuzinho preto
da cabeça timidamente, como se se desnudasse diante dele.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Meu Padim
Ciço! Será? Cris, é tu mesmo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Eu mesma, em
carne, osso e medo. Já tava ficando arrependida de ter vindo e... bem, na
verdade nem sei bem por que vim, só sabia que precisava lhe encontrar, lhe
falar. É como se esses anos todos tivesse ficado uma conta aberta, uma ferida
sem casca.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ferida, né?
É, feridas ficaram muitas, sim. Espero que não tenha se abalado lá das lonjuras
do norte só por causa de...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Eu vim só
por causa de nós dois ― pausou o tempo necessário para se certificar do
desconcerto dele ―, chega uma hora que a gente começa a pensar que é melhor
acertar todos os ponteiros. Não vai ter outra vida, acho que envelhecer é isso:
descobrir que acabou o depois.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Perdeu seu
tempo. Não vejo como acertar nada agora... nem depois. Veio só?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Sim.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Nem sei por que
perguntei, não muda nada. Nada mesmo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Você tá
certo, não há nada pra mudar. Mas talvez inda haja o que acertar, afinal, você
sumiu no mundo. Nunca mais soube do seu paradeiro.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E pra quê
saberia? Você fez a sua escolha, casou com o comerciante rico, que ainda por
cima era meu primo. Teve uma vida fácil naquele cafundó onde era difícil pra
todos, pegou o bilhete premiado. Quer mais o quê? Veio aqui pra olhar na minha
cara e poder dizer: nossa, acertei mesmo, podia estar casada com esse
zé-ninguém de ascensorista!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― As coisas
que esse homem... meu Deus... Sabe muito bem que não foi desse jeito que falou:
havia aquela menina que tu embarrigou, tu me disse na época que ia assumir a
criança.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ia assumir a
criança, mas não ia casar com ela! Daí a senhora catou o cara bem de vida, o
que me sobrava? Aquela menina hoje é a minha esposa, a gente tem três filhos,
pra seu governo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Veja como
são as coisas: não tive filhos, Deus não quis assim. Ninguém recebe só as
graças desta vida, da miséria todos têm seu quinhão.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Quer que eu
chore?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Já chorei
muito, demais até. Meu marido morreu o ano passado, fiquei esse tempo guardando
luto. Então, enquanto pensava no que fazer comigo mesma, resolvi te procurar.
Você fugiu de mim, achei que era...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Nunca
consegui fugir de você, não lá dentro, onde as coisas acontecem de verdade. Pode
ver o lugar onde trabalho, Cristiane: edifício Cristiania, não é gozado? Bruta
piada. Todos esses anos, eu, enterrado no serviço, subindo e descendo sem sair
do lugar. Todo esse tempo eu estava colado nesse nome, nesse trabalho de merda,
nessa vida de merda. Tá satisfeita de ver o estrago que causou?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ninguém sabe
o que é viver de fato, o que as pessoas fazem é fugir, mas nunca conseguimos
fugir realmente. Eu vim te dizer que sempre pensei em você, sempre imaginei que
tudo poderia ter sido diferente. Mas agora, te vendo, entendi que não há
alternativa, uma outra vida só ia me trazer outros sofrimentos. A gente não ia
ser feliz juntos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">O elevador
desceu, chamado pelo térreo por uma nova leva de visitantes. Ela saiu do prédio
apressada e sem se despedir, ele ainda não sabia que nunca mais a veria.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-60939746781927091802016-10-26T18:21:00.001-02:002016-10-26T18:21:16.306-02:00Cristiania (2)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-cd7X4u8n4HQ/WBEPsQ93BCI/AAAAAAAAEko/zOtrErIwVOw9cDqpPReTEECdLGJaEMxCQCLcB/s1600/IMG_2517.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://4.bp.blogspot.com/-cd7X4u8n4HQ/WBEPsQ93BCI/AAAAAAAAEko/zOtrErIwVOw9cDqpPReTEECdLGJaEMxCQCLcB/s400/IMG_2517.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Pensou
em como seria bom mudar pro centro da cidade. E então um intenso cansaço lhe
desceu pelos órgãos do corpo e da alma, talvez não soubesse viver junto aos
prédios descascados, andar por ruas onde o descaso varreu a mentira das cores,
sentir no fim de tarde raiva ou desejo sexual misturados à buzina dos carros e
aos gritos dos loucos e dos camelôs, passar fome e náusea com os churrasquinhos
gregos, olhar as sacadas com varais improvisados, assistir aos truques dos
saltimbancos nas esquinas, ouvir os autofalantes das liquidações, espiar através
de janelas sem cortinas a beleza de corpos nus, o desterro de corpos vestidos.
E depois ainda relembrar tudo isso diante do café coado e do pão com manteiga
na chapa.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Quase
sem se dar conta, estava em frente à Pinacoteca. Folheou a carteira e constatou
que não tinha dinheiro para a entrada, mesmo assim, seguiu a fila de pessoas e
entrou no museu também quase sem se dar conta. Era o tipo de lugar onde
habitualmente nunca punha os pés, mas aquele já não era um dia habitual sob
nenhum aspecto. Surpreendeu-o a leveza e a monumentalidade do interior, o chão
alternava cerâmicas delicadas nas áreas externas e parquet em madeira de lei
nas salas, passarelas e corredores suspensos aproveitavam a iluminação natural,
reforçando a sensação geral de arejamento da construção.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Havia
uma grande retrospectiva de um pintor do qual nunca ouvira falar. Os quadros da
exposição eram grandes, todos muito semelhantes, recobriam as paredes de uma série
de salas contíguas com pinturas a óleo como se repetissem uma ambição única ao
infinito. Estava ali, bem na frente do seu nariz, a prova provada de uma outra
temporalidade, uma duração que ia e voltava sem antes nem depois definidos. Sempre
havia uma pessoa, nua, e quase mais nada ao redor, em geral um quarto vazio, uma
poltrona, um canto de janela, ou corredor. Essas pessoas não eram belas, nem
tinham corpos bonitos e malhados como na televisão e nos outdoors, corpos de
pessoas ordinárias como ele, mas ostentando um desassombro incomum ― eles apenas
estavam lá, por inteiro, mais à vontade do que ele jamais estivera em toda a
sua vida.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Sentiu
vontade de tocar as telas, tinha a sensação de que estavam <i>quentes</i>.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Constatou
que os títulos das obras não surpreendiam nunca, regra geral simplesmente
descreviam a cena representada: Homem, Mulher sentada, Mão sobre o peito, Mãos
pousadas sobre o colo, etc.. O mais inquietante, porém, é que no centro da
sala, expostas em vitrines envidraçadas, havia fotos do ateliê do artista com
os modelos correspondentes aos quadros da parede. Como tantos, ele pensava que esses
retratos seguiam regras pré-estabelecidas: o pintor e suas tintas atrás do
cavalete, os modelos na sua pose. No entanto as fotos mostravam algo diferente,
nelas, retratista e retratado davam a impressão de esperar, cada um do seu lado
parecia aguardar alguma coisa que não estava no quadro. Como se ambos, artista
e modelo, tivessem todo o tempo do mundo até se depositar no fundo de um grande
vaso de vidro.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Quase
sem se dar conta, já não estava mais na Pinacoteca, mas sentado num banco do
parque da Luz. Ao seu lado encontrava-se a modelo de um dos quadros da
exposição, uma mulher pequena, de feições angulosas, com orelhas pequenas de
criança e sorriso muito alvo ― a nudez dela, escandalosa à plena luz do dia,
não parecia ser o efeito da ausência de roupas, antes uma espécie de condição
original, anterior a qualquer sentimento de vergonha. Então a modelo se
transformou na imagem da sua falecida mãe, ele chorava sem freios, encharcando
a camisa branca que vestia. No momento seguinte a mãe levantou vôo, se encarapitou
no alto de um abacateiro, e pôs-se a assobiar uma música antiga que ela lhe
cantava para ninar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> <i>Saudade é canto magoado<o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span style="font-size: large;"> no coração de quem
sente,<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span style="font-size: large;"> é como a voz do
passado<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span style="font-size: large;"> ecoando no presente...<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Não,
nada daquilo estava acontecendo de verdade, as transformações de mulher em
pássaro, a sua mãe, nada era real. Devia estar sonhando em algum outro lugar
que não ali, em algum outro dia que não aquele. Imediatamente a mulher-modelo
do retrato desceu da árvore e retomou a forma humana, falando-lhe como se
tivesse ouvido seus pensamentos. E só então ele a reconheceu: justo ela, a
mulher que fizera tanta força para esquecer nesses anos todos. Reconheceu enfim
mais uma das artimanhas do destino, mudando a memória na mesma medida em que
mudamos no tempo. Nada está parado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Por que você tá querendo ir embora?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Porque isto
é um sonho ruim, porque eu não quero mais chorar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Acontece que
se você acordar agora, nunca vai saber se estava sonhando que sabia que estava
sonhando.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não preciso
disso pra saber que você é falsa.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Tudo parecia
com mais um dia normal de serviço: acordar, tomar café, pegar o lotação na
Cidade Ademar, depois o trem em Jurubatuba, 2 conexões de metrô, descer na
estação São Bento, andar 3 quadras a pé, entrar no edifício Cristiania, trocar
de roupa no almoxarifado, e assumir seu posto de trabalho.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-29744658201307058902016-10-22T17:25:00.002-02:002016-10-22T17:25:30.280-02:00Cristiania (1)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-TtTo3Cci8aY/WAu8r4KFTBI/AAAAAAAAEkY/pjJ5d9IZTSorZQ52m38N0XlM0xRrTG6ZQCLcB/s1600/IMG_2512.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://4.bp.blogspot.com/-TtTo3Cci8aY/WAu8r4KFTBI/AAAAAAAAEkY/pjJ5d9IZTSorZQ52m38N0XlM0xRrTG6ZQCLcB/s400/IMG_2512.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Enquanto
caminha pelos corredores atafulhados de gente da estação Sé na interligação
trem-metrô ― um caminho que mal escolhe, apenas se deixa levar pelo fluxo ―,
tem a súbita sensação de que nada daquilo faz o menor sentido. Tudo parecia com
mais um dia normal de serviço: acordar, tomar café, pegar o lotação na Cidade
Ademar, depois o trem em Jurubatuba, 2 conexões de metrô, descer na estação São
Bento, andar 3 quadras a pé, entrar no edifício Cristiania, trocar de roupa no
almoxarifado, e assumir seu posto de trabalho. De repente, no meio da rua
Varnhagen, não conseguiu seguir <st1:personname productid="em frente. Em" w:st="on">em frente. Em</st1:personname> vez disso, parou numa lanchonete e
pediu emprestada uma caneta e sacou papel do porta-guardanapos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Muitas
vezes essa idéia havia aflorado seus pensamentos, mas nunca com tamanha
limpidez e urgência. Experimentou diversas versões rascunhadas até escolher a
mensagem mais simples para explicar a sua decisão daquela manhã. Afixou o papel
no quadro de avisos ao lado do elevador e deixou o emprego de ascensorista que
ocupou por tantos anos sem atrasos nem licenças médicas. Seus colegas mal
podiam acreditar no recado breve com o qual se despedia definitivamente: “Não
posso continuar no mesmo lugar. Deixei o uniforme dentro do armário. Tá
destrancado. Adeus.” E assinava.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Andou
pelas ruas do centro velho sem rumo durante horas, cada esquina, cada fachada,
as lojas, bancos, até mesmo os vendedores ambulantes, lhe apareciam de uma
forma nova, transformada pela quebra repentina do hábito. Como fora possível
não ter reparado nas pequenas maravilhas decrépitas que o cercavam diariamente
sem pedir afago ou atenção? Por que nunca se dera ao trabalho de assistir a uma
missa cantada no mosteiro? Ou mesmo uma parada breve no Largo do Café? Concluiu
algo mortificado que andara por aquelas ruas estreitas e sem carros de olhos
baixos, deixara de reparar nos becos de geometria irregular, no pavimento
enigmático, distraído de alguma verdade agora revelada, fulgurante e sem álibis.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Era
como se todas as coisas falassem com ele. O toque do celular arrancou-o daquele
devaneio que, entretanto, tinha muito de um despertar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Fala Josias.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Rapaz, que
bicho te mordeu? Endoidou de vez, foi?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Nada, não. Só
cansei da porra toda.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ah, cansou
da porra toda?! Esqueceu que tu tá quase pra aposentar? Deixa de besteira e vem
pra cá.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Vou não. Tô
de saco cheio, isso não é vida.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Que foi que
te deu, homem de Deus? Vem já que eu peguei teu lugar, e dei uma desculpa pro
encarregado. Arranquei o bilhete maluco que tu deixou lá, só uns dois ou
três...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Dá mais não,
Josias. Sabe quando você tá dormindo no meio da noite, e de repente a geladeira
pára de fazer barulho? Então, é como isso: nessa hora o que te desperta não é o
barulho, mas o silêncio que fica.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― ...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Você tá me
ouvindo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Virgem
Santíssima, o homem endoidou foi de pedra mesmo! Moço, tu deu pra beber logo de
manhazinha, é?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Bebi nada,
não. Tô mais são que nunca. Escuta, você podia me fazer um último favor?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Último
favor? Homem, não me diga que vai...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Assossegue
que não vou fazer bobagem nenhuma. Sabe aquele chapeuzinho que caiu da fachada?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">―
Chapeuzinho?Barulho de geladeira? Você não tem mais idade pra fumar erva
danada, meu irmão.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Então, é o
chapeuzinho do “A”, do primeiro “A”. O verdadeiro nome do edifício é
Cristiânia, o chapéu caiu faz um tempo e nunca consegui botar de novo. Você
faria isso pra mim?</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-49351357195660623842016-10-05T15:03:00.001-03:002016-10-05T15:03:08.026-03:00Afterlights (final)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-66LfHZ2GJaw/V_U_7uGgJUI/AAAAAAAAEkE/HwftPGXU-n8UTM8_iJ2zRIa0UazX5r-iwCLcB/s1600/IMG_2492.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-66LfHZ2GJaw/V_U_7uGgJUI/AAAAAAAAEkE/HwftPGXU-n8UTM8_iJ2zRIa0UazX5r-iwCLcB/s400/IMG_2492.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Acho que
aqui está tudo que precisa saber sobre mim. Mas talvez você ainda tenha de me
explicar como é que isso vai funcionar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ah é? Pensei
que o pessoal da empresa já tivesse lhe contado os detalhes do procedimento. Na
verdade essa não é a minha função no... bem, no processo. Mas, ok, vamos lá...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Entenda, eu
não estava muito com a cabeça no lugar quando contratei a Afterlights, acho que
ninguém está numa hora dessas. Tudo que consigo me lembrar da conversa com o
pessoal do suporte é que não ia sentir dor. Depois disso, recebi a papelada que
me enviaram e assinei tudo reconhecido em cartório.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Veja, ainda
dá tempo de desistir. Pra falar a verdade, desistências têm sido bastante comuns
na minha experiência com este negócio.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não vou
desistir. Apenas quero entender um pouco mais, um sentimento bastante humano,
não? Quando vieram buscar Sócrates para tomar o veneno que o mataria,
encontraram-no aprendendo uma música na sua flauta. Os discípulos lhe
perguntaram por que se ocupava disso em seus derradeiros momentos, e ele
respondeu: porque assim terei aprendido uma coisa nova.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Muito justo.
Imagino que não se fazem mais sábios como antigamente. É bastante simples:
primeiro, tem este aparelho que parece um secador de cabelos de salão de
cabeleireiro antigo, ele faz um scanning completo do seu cérebro. Fica tudo
salvo neste HD externo. Daí, nós passamos para a segunda fase, eu ligo este
equipo de soro que injeta separadamente tionembutal, pancurônio e cloreto de
potássio, e, em menos de vinte minutos, estará tudo terminado. A primeira droga
anestesia e põe pra dormir, a segunda, relaxa seus músculos e pára a
respiração, a terceira substância trava seu coração na hora em que ele se
contrai. Raramente falha, e nesses casos, ainda assim, a empresa oferece um
shot de morfina em doses cavalares para garantir. Limpo, indolor, e 100 %
garantido.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Tá certo,
mas essa é a parte operacional da brincadeira, o que eu gostaria de entender é
a parte negocial.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Negocial?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ora, meu
caro, trata-se de uma empresa, não é mesmo?, e no fim do dia as empresas têm de
realizar lucro. Se estão pagando, a mim e a você, por isto, essa parafernália
tem que ser lucrativa em algum ponto. No meu caso, a grana servirá pra pagar o
enterro.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Até onde
consegui entender, senhor Ogawa, a parte importante é transferida para o HD. As
suas memórias, é isso o que eles querem.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Se fosse
assim como diz, bastaria que viessem aqui fotografar este salão. Ao menos no
meu caso, seria bastante fácil, além de economizar pessoal e aparelhagem. Não
vejo como escarafunchar as lembranças de um velho solitário, esquisito e pobre
possa se transformar <st1:personname productid="em dinheiro. As" w:st="on">em
dinheiro. As</st1:personname> crianças e os suicidas falam uma língua antiga,
eu os outros já esqueceram. Quem decodifica?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Bom, essa
parte fica a cargo da equipe técnica, um bando de geeks que passa o dia
vasculhando as informações coletadas. Hoje em dia, o que as empresas mais
precisam é de informação sobre os consumidores.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Informação?
Olhe em volta, o que você enxerga? Acha mesmo que aqui se pode encontrar o
perfil de algum ávido consumidor de bugigangas?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Outra coisa
que o patrão me contou é que qualquer pessoa, por mais inútil que pareça, em
algum momento da vida, teve uma boa idéia.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Essa é a
melhor de todas, uma idéia que preste! Nunca imaginei que se pudesse vender
idéias, que eu saiba, o que de verdade interessa são projetos ― ele tirou a
boina, descobrindo as orelhas ínfimas ―, ou seja, a maneira de transformar
sonhos em realidade.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― É que
vivemos uma espécie de apagão de idéias razoáveis, e os especialistas não têm
ajudado muito para o progresso geral dos povos...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Instalei o
soro na veia tão logo o scaneamento terminou, ele adormeceu rapidamente. O
celular tocou, era da Afterlights, queriam saber se tudo corria bem.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Tá tudo
certo, o pulso já parou. Er... posso levar uma lembrança daqui?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Lembrança?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― É. Eu
gostaria de ficar com as orelhas dele ― o cara desligou com um palavrão.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Pela janela,
vi um passarinho cruzar o céu alto. Tirei meu relógio do pulso e depositei-o
sobre uma tábua de passar roupa. As recordações continuavam todas quietas ao
nosso redor.</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-68393505378387227922016-10-01T17:04:00.001-03:002016-10-01T17:04:11.245-03:00Afterlights (3)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-MpE0zjXdNRQ/V_AWPPXA0FI/AAAAAAAAEj0/MWBarZ17Yo43jfThdd_j06JVaYaQkdJMwCLcB/s1600/IMG_2490.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-MpE0zjXdNRQ/V_AWPPXA0FI/AAAAAAAAEj0/MWBarZ17Yo43jfThdd_j06JVaYaQkdJMwCLcB/s400/IMG_2490.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">A sala que ele
chamou de acervo era uma antiga lavanderia adaptada na extremidade oeste do
porão, que, na verdade, consistia no piso térreo da casa. No instante em que a
porta se abriu, senti o cheiro de tecido mofado, ou de plantas murchas, enfim,
o cheiro que as coisas exalam quando apodrecem. Era um espaço amplo, mas sujo e
muito bagunçado. Objetos os mais diversos (talvez as peças da coleção?) estavam
espalhados aqui e ali, sobre armários bambos e sem porta, largados nas cômodas
e mesas, dispostos desordenadamente. Nada parecia estar no lugar certo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Mas o que
estava me incomodando não era a situação caótica da sala, era outra coisa.
Demorei algum tempo para compreender o quê.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Andamos até o
centro da sala. Era preciso prestar atenção a cada passo para não esbarrar <st1:personname productid="em nada. Eu" w:st="on">em nada. Eu</st1:personname> não queria nem
imaginar como o sisudo senhor Ogawa esbravejaria se por acaso derrubasse ou
quebrasse alguma coisa. O chão tinha o design moderno de muitos anos atrás, com
ladrilhos hidráulicos em padrão mourisco sobre o cimento queimado. Graças às
janelas estreitas no alto das paredes, pelas quais se via o céu e as plantas do
jardim, a iluminação era boa, apesar de estarmos ligeiramente abaixo do nível
do solo. Havia varais pendurados no teto, ferros de passar e antigas máquinas
de torcer roupa caídas pela sala, vestígios do tempo em que ali funcionava uma
lavanderia de verdade.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">As salas de
acervo, de qualquer natureza, costumam ser ambientes de aconchego familiar para
mim, sempre gostei de passar o tempo encarando arquivos, fechado nesses
claustros absolutamente silenciosos onde os visitantes não podem entrar. Mas
aquela era diferente de qualquer sala de acervo que eu conhecesse. Era como se
cada objeto se impusesse sem reservas, segundo seus próprios caprichos, criando
uma dissonância insuportável. Mesmo em depósitos muito desorganizados sempre
paira no ar um senso de solidariedade entre todas as peças reunidas por um
mesmo museu. Mas ali não havia nenhum vínculo, nenhuma união, aqueles itens
disparatados não tinham consideração suficiente nem para voltar o olhar para
seus companheiros.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Isso me
deixava aflito.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Um carretel,
um dente de ouro, luvas, um pincel, botas de alpinismo, um batedor de ovos,
gesso ortopédico, novelos de lã, um berço... Experimentei olhar com cuidado
para cada uma das coisas próximas a mim, mas não adiantou. Só fiquei mais
desorientado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― São recordações
dos conhecidos ― disse ele ―, dos meus conhecidos, uma peça de cada pessoa ou
bicho de estimação que passou pela minha vida. Foi a maneira que encontrei de
não perder, não me separar de ninguém. Como vivi muito, a maioria deles já
morreu.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Sua voz ecoou estentórea
e clara, apesar do cômodo se encontrar atulhado. Nesse momento finalmente
percebi o motivo do meu desconforto. Ogawa-san usava uma boina enterrada quase
à altura das sobrancelhas. Por entre o cabelo ralo e branco que ainda lhe restava,
espiavam duas orelhas minúsculas, pequenas demais mesmo levando-se em conta a
sua baixa estatura. Eram como duas rolhas secas carcomidas presas às laterais
da cabeça. Tinham perdido completamente a forma de orelhas, eram apenas
cicatrizes ao redor do buraco dos ouvidos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Nossa, são
muitas... ― comentei hesitante, tentando desviar a atenção das orelhas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Comecei a
reunir objetos pessoais quando fiz onze anos. Essa coleção tem uma história
longa demais pra ser narrada. Mas vai ficar incompleta.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E por quê?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não vou
poder guardar nada de você.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">À minha volta,
naquele porão coberto de pó e teias de aranha, estava o resumo dos encontros e
desencontros que era também o resumo da trajetória afetiva daquele homem. No
dia em que completou onze anos, seu cachorro Koto morreu, e ele descobriu que
também morreria. A insólita coleção testemunhava a aceitação e a revolta de uma
criança contra esse fato irremediável de toda matéria que se torna viva. Talvez
não tivesse sido fácil carregar muitas daquelas tralhas, principalmente para
uma criança, mas, mesmo assim, ele conseguiu fazê-lo por muitas décadas.
Contou-me que não lhe interessavam os souvenires banais, mas as coisas que
guardassem, da forma mais vívida e fiel possível, a prova de que aqueles corpos
realmente existiram. Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida
desmoronariam desde a base, algo que pudesse impedir a morte e o tempo de completarem
sua sentença.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Vitória e
derrota, permanência e perda. Não, não eram lembranças sentimentais, não tinha
nada a ver com isso.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-59431379457977689132016-09-28T17:42:00.001-03:002016-09-28T17:42:52.655-03:00Afterlights (2)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-xJW2tYELZMs/V-wq0WFkGYI/AAAAAAAAEjk/IXKn1JQfV3Ie4b2ClTqZvrlYsux2evklQCLcB/s1600/IMG_2476.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://4.bp.blogspot.com/-xJW2tYELZMs/V-wq0WFkGYI/AAAAAAAAEjk/IXKn1JQfV3Ie4b2ClTqZvrlYsux2evklQCLcB/s400/IMG_2476.JPG" width="300" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Evidentemente,
não há amor-próprio que resista a uma traulitada dessas, o sujeito malhou implacavelmente
o resultado de 3 anos de esforço insano em exatos e demolidores 1051
caracteres. Meu ego levou uma tunda pior que Judas no sábado de Aleluia, e foi
dormir na praça. As devastadoras palavras finais em caixa alta reverberaram por
meses na minha mente em viés de baixa: PASSE ADIANTE, PASSE ADIANTE, PASSE
ADIANTE. Pareciam ser, como de fato eram, um decreto de ostracismo para a minha
já pouco promissora carreira literária. E o pior de tudo é que, no fundo,
sentia que o cara estava certo. Ponderei comigo mesmo que talvez me faltasse a
experiência direta, como se ainda não tivesse provado o verdadeiro almoço nu,
não houvesse chegado perto do coração selvagem da vida como ela é. Ora, se
Joseph Conrad, Euclydes da Cunha, Le Clézio, Jack Kerouac, e até Guimarães
Rosa, tinham posto a mão na massa e o pé na estrada para comporem suas
obras-primas, talvez fosse o caso de cometer esse nefando crime contra todos os
meus princípios: trabalhar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> O
figurino habitual do escritor frustrado recomendava um longo mergulho na
depressão, nas drogas e na orgia, mas faltavam-me a vocação e a fortitude de
caráter para suportar as contas atrasadas, além do mais, encarar a noite escura
da alma de barriga vazia provoca gastrite e dá uma insônia do cacete. O trampo
do aplicativo nada mais era do que uma extensão da inércia habitual, ficava em
casa fazendo porra nenhuma durante dias até receber um endereço e um nome pelo
celular. Eles chamavam isso de job: tem um job lá pra você no lugar tal, com
fulano(a) de tal. A hora podia ser qualquer, do dia ou da noite, feriado ou dia
santo. O primeiro rendez vous foi num galpão abandonado cheirando a bosta e
mijo repleto de entulho, a todo momento imaginava que uma horda de crackudos ia
me cercar e devorar o meu cérebro. Lancei o pó de ninja e vazei dali cagado de
medo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Na
segunda chamada melhorei dramaticamente de nível na escala social: bairro
classe média alta, varanda gourmet, apartamentos de um por andar, humilhação básica
na portaria e mordomo atendendo na porta do elevador pedindo para eu esperar no
living enquanto madame se aprontava para me receber. Finalmente sentia que as
coisas iam começar pra valer, já antecipava a esbórnia que faria com a grana do
primeiro pagamento. Dona Irany Maracajá proporcionou-me novo chá de cadeira básico
até despontar na sala rescendendo a perfume doce e vestida como se tivesse
acabado de sair de Downtown Abbey, tinha os cabelos pintados num tom azul-violáceo,
e devia andar lá pelos seus 90 e tra-la-lá.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Venha por aqui, estaremos mais cômodos no escritório do meu falecido esposo.
Você não se parece muito com a foto do perfil, aliás, nem parece que se dedica
a este tipo de ocupação tão... singular.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Verdade,
essa foto que usei é de tempos melhores da minha vida. A senhora talvez não
consiga avaliar o quanto a penúria econômica maltrata o cidadão, digamos assim,
desfavorecido.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Você é que
não sabe nada da minha vida pra falar desse jeito comigo. O problema é que,
diferentemente da estupidez, o bom senso é muito mal distribuído na população <st1:personname productid="em geral. Seja" w:st="on">em geral. Seja</st1:personname> sincero, é
a primeira vez que...? A sua patente impertinência denota uma óbvia falta de
experiência.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">―
Sinceramente, peço-lhe desculpas. Não queria ser grosseiro, acontece que,
apesar de ser escritor, não sou muito bom com as palavras em situações de
interação social. E, sim, é a minha primeira vez.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― A juventude
é mesmo um transtorno, felizmente, tem cura. Percebo que se interessa pelos
livros do meu marido, a maioria são de direito, mas também deve haver por aí
algumas primeiras edições autografadas a merecer melhor destino. Apesar das
estantes envidraçadas, não imagina a pó que essa tranqueira junta.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Tranqueira,
pó... a senhora não faz idéia do quanto eu gosto de ouvir esse tipo de
comentários sobre os livros. Bom, mas nada disso diz respeito ao nosso objetivo
aqui, podemos começar?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Antes, quero
lhe pedir um pequeno favor...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Esteja à vontade,
faça como se estivéssemos na sua casa.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Fique de pé,
por favor.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não estou
entendendo...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Você poderia
se masturbar? Tranqüilo, não farei nada além de observar. Só peço que vá até o
fim.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Mas por
que...?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Ganhei 50
pratas pelo “serviço”, mas não consegui realizar o job da Afterlights. Quase
liguei pro meu editor, queria dizer a ele que há buracos ainda mais negros do que
os da literatura.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-29274810330842038722016-09-23T22:24:00.001-03:002016-09-23T22:24:03.791-03:00Afterlights (1)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://2.bp.blogspot.com/-ijReFJ6lUC4/V-XUcdyYsgI/AAAAAAAAEjU/kzA_g7abQ58OaADRk9kGK62Awh-gGRlSACLcB/s1600/IMG_2475.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://2.bp.blogspot.com/-ijReFJ6lUC4/V-XUcdyYsgI/AAAAAAAAEjU/kzA_g7abQ58OaADRk9kGK62Awh-gGRlSACLcB/s400/IMG_2475.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Precisavam
justamente de alguém com disponibilidade para trabalhar em “horários
flexíveis”, e foi assim que emprestei a soldo minha absoluta falta do que fazer
à empresa Afterlights. Disponibilidade é meu nome, sobrenome desocupado. Talvez
na época eu tenha estranhado a contratação mega express ultra rápida (a
entrevista com o dono da firma durou uns 15 minutos), mas devo ter-me
convenientemente convencido que é assim que a banda toca no universo em
desencanto das start ups: dinamismo, alta competitividade e zero conversa mole.
Além do mais, os caras me registraram, e, nestes tempos golpistas e bicudos,
“resistro” em carteira tá mais difícil de achar do que nota de 100. Abracei com
as quatro patas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Estou vendo aqui no seu currículo que você é escritor, tá ciente da nossa
cláusula de confidencialidade? A natureza específica do seu trabalho conosco é
absolutamente sigilosa, não vai poder aparecer em futuro algum, nem em prosa
nem em verso.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Oh, não se
preocupe com isso, talvez a melhor maneira de guardar um segredo seja dentro de
um livro meu. Pro senhor fazer uma idéia, a minha mãe não foi no lançamento da
coletânea de contos que publiquei no ano passado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não me chame
de senhor, sou mais novo que você. Espero que, a esta altura, já tenha estudado
nossos propósitos, valores e missão no site, e esteja claro como é que o app
funciona.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Bom, li sim,
mas admito que ainda restam algumas pequenas dúvidas do tipo: então eu fico
cadastrado no aplicativo, foto de corpo inteiro, bio, links pra redes sociais, e,
por sua vez, os clientes do portfólio escolhem pelas características, e tal,
quer dizer, não vejo muito como eu poderia dar match com os usuários de vocês...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Hehehe,
nossos clientes têm os mais variados gostos, quanto a isto fica sussa, vai ter
demanda. Lhe garanto. O salário é como no anúncio, você recebe um fixo mínimo e
ganha comissão a partir de 10 clientes por semana. O mais importante é que você
se familiarize o mais rápido possível com os equipamentos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Tudo
conspirava para que me atirasse de cabeça na buena onda, aparentemente as
minhas qualificações, ou a falta delas, faziam de mim o candidato ideal ao
posto na Afterlights, pelo menos era o que garantia o CEO do boteco. Tinha
acabado de reiniciar pela trocentésima vez meu segundo romance inacabado,
impublicável e invendável como o primeiro, ou seja, dispunha de tempo, falta de
dinheiro e vontade de ficar o mais longe possível da opressora página branca. Infelizmente
para mim para o mundo, não era o famigerado bloqueio criativo a me paralisar,
mas a autoestima que andava abaixo de cu de cobra: por um desses lapsos que
Freud explica com um risinho no canto da boca, meu editor me respondeu um
e-mail copiado com a avaliação dos originais pelo conselheiro editorial da
casa. O camarada torou meu manuscrito sem dó, apanhei mais que pobre na mão da
polícia.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 70.8pt; margin-right: 56.2pt; margin-top: 0cm; text-align: justify;">
<i><span style="font-size: large;">Boa descrição, diálogos apresentáveis.
Alguns momentos divertidos, outros delicados. Em resumo, um romance de palavras
bem escolhidas. A estória, porém, é um saco. As primeiras 30 páginas se arrastam
como uma lesma em slow motion, repletas de exposição, o resto não chega a seus
pés. A trama principal, ou o que há dela, é recheada de coincidências
convenientes e motivação fraca. O protagonista é homem, branco,
heteronormativo, cisgênero e bidimensional, praticamente desprovido de
interesse ou conflitos relevantes, tropica ao longo da narrativa embrulhado
numa grossa camada de tédio – o que não impede de lhe acontecerem as coisas
mais insólitas e de conhecer misteriosas personagens. Tensões não relacionadas
que poderiam transformar-se em subtramas nunca chegam lá. Personagens nunca
revelam ser algo mais do que parecem, a tantas horas, um providencial terremoto
(!) livra o autor de resolver a maioria deles. Nenhum panorama momentâneo da
vida interior dessas pessoas ou de sua sociedade. Freqüentes pseudodiscussões
filosóficas regadas a erudição alheia truncam a fluidez do texto. É uma coleção
sem vida de episódios previsíveis, mal contados e clichês que caminham a passo
de bêbado para uma confusão sem sentido. PASSE ADIANTE.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-28144739477467036292016-09-10T12:16:00.001-03:002016-09-10T12:16:43.801-03:00o intruso (final)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://3.bp.blogspot.com/-YrC3juTf39M/V9QjXCIdzwI/AAAAAAAAEi8/I3UEtsoJJPYDFpozckjrHkDOaYgfdq5QwCLcB/s1600/futuro%2Bc%25C3%25B3pia.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="298" src="https://3.bp.blogspot.com/-YrC3juTf39M/V9QjXCIdzwI/AAAAAAAAEi8/I3UEtsoJJPYDFpozckjrHkDOaYgfdq5QwCLcB/s400/futuro%2Bc%25C3%25B3pia.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Desculpe, de
qual apartamento o senhor disse que veio mesmo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Acho que não
disse, esqueci, sou do 143, bloco A.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Pois é aí
que embaça: o senhor não é do 143, bloco A, a bem dizer, o senhor não mora
aqui.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Foi a minha
vez de levar um susto. Dei um passo para trás como se fugisse da pior das
notícias, só que, mesmo depois de terem cessado de vibrar no ar, aquelas
palavras entraram em violenta agitação dentro de mim, seres estranhos a meio
caminho entre a matéria e a vida, como que me giravam à roda da cabeça,
ondulantes, peremptórias, inundando a corrente sanguínea com os instintos
básicos de lutar ou fugir. “O senhor não mora mais aqui”, repetia o pensamento,
“não mora aqui”, mas a memória disparava o alarme com o tal do “mais”: “não
mais aqui”, (claro!, que imbecil, como poderia ter esquecido?, morei neste
prédio há muitos anos, <i>meu último
endereço antes de deixar a casa dos pais</i>), de forma que a questão óbvia era
saber se a minha família ainda residia ali. O porteiro tirou da gaveta uma
pasta encadernada com folhas de plástico onde constavam os nomes e os
respectivos conjuntos dos moradores do condomínio, e esperou com calma budista que,
apresentado ao encadeamento de causas e efeitos sob a luz ofuscante das
evidências, acabasse por finalmente aceitar a minha condição de forasteiro.
Para cúmulo do desespero, segundo o caderninho que ele me estendera, no
apartamento 143, bloco A, moravam pessoas que eu desconhecia por completo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Peixoto,
você não tá suspeitando de mim, tá?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Tô sim, mas,
por outro lado, se você estivesse assaltando nós, já teria botado um cano na
minha cara.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Bem, não
deixa de ser uma forma de confiança...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Você é
branco, bem vestido, fala difícil... por que escolheria o edifício Presidente, que
só tem fodido e tiozinho aposentado?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E quanto ao
cara do 14° andar? Ainda precisamos fazer alguma coisa a respeito.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ok, mas veja,
se eu for acreditar no que tá me dizendo, são 2 os desconhecidos: você, e o tal
sujeito...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Mas eu não
estou tentando invadir a casa de ninguém, Peixoto!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Depende, o
senhor disse que faz poucos minutos estava num apartamento que não lhe pertence,
e agorinha entrou feito pé de vento nesta guarita falando um monte de coisas
sem pé nem cabeça.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">Não havia como retrucar a uma
lógica tão meridiana e embasada em tantos fatos sólidos. Fiquei sem resposta,
esfregava nervosamente o rosto com as mãos como se a solução pudesse ser
extraída dali a fórceps. Só me restava apelar para o resto de credibilidade que
a aparência conferia aos propósitos descabelados da minha conduta. Quanto mais
eu refletia sobre a situação, mais suscitava questões acerca das minhas
atitudes: parecia um ator amador, cuja voz diz uma coisa, e cujos gestos e
olhar, outra. Era tudo muito confuso. Mas, como os sonhos ou as mentiras,
mensagens confusas também são mensagens. E verdades contadas atabalhoadamente
podem ser mais reveladoras, e até mais verdadeiras, que outros tipos de
verdade.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Vamos fazer o seguinte: o senhor fica aqui no meu lugar um instante, que eu vou
dar uma olhada nos elevadores ver se há alguma movimentação estranha. Valeu?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Só posso lhe
agradecer a confiança. Espere, espere, E como faço pra abrir a porta aos
moradores que chegarem ou saírem?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">Explicou-me o sistema de abertura
das portas e garagens e saiu caminhando mansamente pelo hall na direção dos
elevadores. Sentia uma certa calma, o primeiro bálsamo de relaxamento daquela
noite esquisita, as coisas pareciam haver retomado os trilhos da normalidade. Abri
e fechei portões, recebi entregadores de pizza, forneci indicação de ruas a
passantes eventuais, e, tirando um ou outro condômino que estranhou minha
presença na guarita, tudo corria <st1:personname productid="em paz. O" w:st="on">em
paz. O</st1:personname> ambiente da portaria era de uma desolação atroz: a luz
branca, o espaço mesquinho, a obrigação de imobilidade completa, tudo isso
arrematado pelo radinho sintonizado num programa policialesco. Passada uma hora
desta rotina, comecei a entrar novamente em pânico: por que o Peixoto não
voltava? Estava a ponto de abandonar o meu posto, quando apareceu saindo do
prédio um homem alto, envergava um incongruente sobretudo para a noite de
verão. Era a encarnação perfeita do típico suspeito de filme noir.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Ei, senhor, por favor, de onde está vindo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Perdão?!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― O senhor me desculpe,
é que estamos tendo um pequeno problema com um entregador que subiu e...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Então é sua
obrigação resolver o problema, e não importunar os moradores. Aliás, por que
está sem o uniforme de trabalho?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Justamente,
o porteiro precisou sair pra verificar e fiquei aqui no lugar dele. O senhor
viu alguma movimentação fora do habitual?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― A única
coisa fora do habitual aqui é você, faça o favor de me abrir a porta, sim?
Outra coisa: procure tratamento, pelo jeito o senhor está bem fora da casinha.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">O camarada saiu de maus bofes,
pisando duro no pavimento da entrada social. Não havia nada a fazer, retombei
numa desesperança opaca e impotente. E se o homem do sobretudo estivesse certo?
Eu poderia estar louco, ou talvez sonhando. Abri a gaveta à minha frente sem
saber exatamente o que procurava. Um canivete chamou-me a atenção, pensei: se
estiver sonhando, só há uma maneira de sair daqui ― morrer no sonho significa
acordar na realidade. Quando morri, um dia abri os olhos e era a cidade. Eu
estava sozinho no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-48942896992412568582016-09-04T20:12:00.000-03:002016-09-04T20:12:03.472-03:00o intruso (3)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://3.bp.blogspot.com/-YF0dALziyY8/V8ypvupGq8I/AAAAAAAAEis/RzCBVxIoNE8AWliMEUL4r3diwu_20FkBwCLcB/s1600/DSC00101.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://3.bp.blogspot.com/-YF0dALziyY8/V8ypvupGq8I/AAAAAAAAEis/RzCBVxIoNE8AWliMEUL4r3diwu_20FkBwCLcB/s400/DSC00101.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Desculpa moço, foi mal entrar assim aqui sem avisar, mas é que... bom, é uma
emergência, eu estava lá em <st1:personname productid="casa e" w:st="on">casa e</st1:personname>
um cara veio com um papo esquisito de uma entrega, e aí ele começou a forçar a
porta...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Oxe, quase
me mata de susto! Pensei logo que era assalto, agora se acalme e conte tudo
direitinho, não tô entendendo é nada.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Tá bom, tá
bom, vamos começar tudo de novo: eu estava em casa estudando uns pontos de
lógica formal... quer dizer, isso não vem ao caso, o que sim é importante é que
a campainha tocou e ninguém foi abrir, então tive que ir mesmo estando ocupado
como me encontrava naquele momento, veja, é estranho alguém subir direto sem
antes a portaria avisar, não é?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Claro que é.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Então?...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Então o quê?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Me diga você
que estava aqui, como é que alguém sobe pra entregar um pacote pelo elevador social
a esta hora? Ainda mais sem interfonar antes...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Vamos lá,
senhor, são duas coisas bem diferentes: uma é norma de segurança, ninguém sobe
sem ser anunciado, a outra coisa é, eu não tenho como saber.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Como assim?!
Você está aí pra isso, alguém chega e diz que vai entregar algo no apartamento
X, daí você liga pro número correspondente nesse comunicador bem na sua frente,
e tchan-tchan-tchan: o morador do número X atende, desce, assina os papéis e o
entregador vai embora. Não precisa nem entrar no prédio, certo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Certo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Bom, então
me diga... como é mesmo o seu nome?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Waldomiro
Peixoto, mas só me chamam de Peixoto.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Então, Peixoto,
quem era esse cara, o que ele vinha entregar, pra quem era a encomenda?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Já lhe
disse: não tenho como saber.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Parece que
estamos tendo um sério problema de comunicação aqui. Me explique como é que
aquele homem se materializou na porta da minha casa sem antes ter passado por
você.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E como vou
saber? Acabei de pegar o serviço agora. Esse camarada deve ter subido antes de
eu chegar, o rapaz que tava aqui saiu inda agorinha...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Minha nossa,
que cagada. Desculpe o palavrão, mas é que o assunto é sério, esse cara deve
ter jogado uma conversa no seu colega e subiu, ou, sei lá, alguém na minha casa
atendeu o interfone e deixou ele subir inadvertidamente, então vocês trocaram o
turno e, nessas, enquanto você assumia aqui, o malandro já estava lá apertando
a campainha de casa cheio de más intenções.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Se acalme,
homem, como tem tanta certeza de que o tal entregador tinha más intenções?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Primeiro
pela atitude, o cara tinha pouca educação e muita pressa que eu lhe abrisse a
porta, além do mais, quando disse pra ele descer e deixar o pacote na portaria,
ficou mudo e começou a girar a maçaneta e a empurrar a porta.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Essa
realmente é uma atitude suspeita.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Sem querer
lhe dizer como é que se faz o seu serviço, mas já dizendo, não acha deveríamos
estar ligando pra polícia e prevenindo os outros moradores neste momento?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Verdade seja
dita, o senhor tem razão, mas ainda temos um último probleminha.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E qual seria
este último problema que nos impede de agir imediatamente, Peixoto?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Qual
apartamento o senhor disse que mora mesmo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Acho que não
disse, esqueci, sou do 143, bloco A.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Pois é aí
que mora a encrenca: o senhor não é do 143, bloco A, o senhor não é morador
daqui..</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-65241636890356281482016-08-31T19:01:00.001-03:002016-08-31T19:01:47.746-03:00o intruso (2)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-vjZteOAFmOI/V8dTUvtVxHI/AAAAAAAAEiU/_ROq73rjCwU3XZ8fvpnEvl-MOBxwIGK6wCLcB/s1600/auschuwitz%2B007.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="139" src="https://1.bp.blogspot.com/-vjZteOAFmOI/V8dTUvtVxHI/AAAAAAAAEiU/_ROq73rjCwU3XZ8fvpnEvl-MOBxwIGK6wCLcB/s640/auschuwitz%2B007.jpg" width="640" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">Corri para a saída de serviço,
abri a porta e tranquei-a por fora. Antes de desabalar pelas escadarias ainda
berrei uma última advertência para que ninguém abrisse a casa ao intruso. Parei
diante da porta de fundos dos outros três vizinhos (o bloco A tem quatro por
andar), deveria avisá-los, ou só faria causar um pânico desnecessário? Além do
mais, quem quer que estivesse tentando forçar a entrada da minha casa (ele
parecia bem convincente e decidido), já podia estar em qualquer outro
apartamento tentando a sorte com algum morador menos cuidadoso. Bastava
escolher nos botões do elevador, alguém acabaria cedendo, alguma porta estaria
destrancada, digamos que uma criança fosse atender à campainha. Pensei que o
mais simples e correto a fazer seria mesmo descer na portaria e, de lá, avisar
os outros moradores e chamar a polícia. O problema é que me faltava a coragem de
tomar o elevador de serviço, temia dar de cara com o invasor de arma <st1:personname productid="em punho. Realmente" w:st="on">em punho. Realmente</st1:personname>
o cagaço não deve ser o melhor dos conselheiros, escolhi a alternativa mais descabelada
possível: saí batendo de porta em porta nos andares que percorria urrando a
plenos pulmões.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Tranquem as portas! Tem um estranho batendo, não deixem ele entrar!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">Daria pra ter causado uma boa
meia dúzia de enfartes com o fuá armado, meti o louco geral, descia os lances
de escada pulando de quatro em quatro degraus, parava nos patamares, tomava
fôlego, e esmurrava cada porta que via pela frente me esgoelando como um
bezerro desmamado. Ouvia conversas, discussões em altos brados, som de
televisores ligados na novela, barulho de panelas e pratos, música, mas,
curiosamente, a minha algazarra não mudava a rotina das residências aferradas
na sua placidez cotidiana ― ninguém aparecia para saber do que se tratava,
fosse por medo ou distração, meus vizinhos seguiam suas vidinhas em aparente
normalidade. Não me dei por vencido, entretanto, continuei na carreira louca
pelas escadarias afora, tropeçando em sacos de lixo, tênis velhos, vassouras e
uma infinidade de cacarecos largados nos corredores. As pessoas acreditam
realmente que é obrigação dos funcionários recolher tudo aquilo que já não lhes
convém nessa terra sem lei chamada “área de serviço”? Anotei mentalmente um
aparte que faria na próxima reunião de condomínio (talvez até mesmo fizesse
lobby para incluir o assunto na pauta), chegava a ser acintoso semelhante
descaso. É assim, em pequenos degraus de desídias corriqueiras, que se constrói
uma sociedade bagunçada como a nossa, a tal piada: se organizar direito, sobra caos
pra todo mundo. No oitavo andar encontrei a primeira vivalma, uma senhora de
idade com lenço na cabeça levando o lixo da cozinha para fora, parou, muito espantada
de me encontrar ali, ouviu paciente a minha arenga exaltada, e só então
informou que estava sem o aparelho de audição e não entendia nada do que eu
dizia. Virou-me as costas, entrou, e deu duas voltas na chave. Fui em frente,
descendo e gritando, batendo e berrando, o estranho que avisa de outro
estranho, até que desisti e apenas descia freneticamente vendo o desfile de
portas, vitrôs e escadas sem fim, e, de repente, a lembrança (eu já vi, já vivi
isso!, esta situação já tinha acontecido, era um replay!, um retorno de algo
que conhecia, mas sem a informação de onde nem quando), sentia-me dentro da parábola
do viajante chegado no meio da noite a um hotel com infinitos quartos, o
gerente diz ao viajante que havia infinitos inquilinos ocupando cada um dos
quartos e não haveria lugar para ele, ao que o viajante responde: sem
problemas, coloque-me no quarto 1 e desloque o hóspede para o quarto 2, repita
o mesmo com todos os outros hóspedes, havendo infinitos quartos todos terão
acomodação. Infinito mais um. Assim pensava ao vencer os últimos lances da
descida rumo ao térreo, detive o passo a ponto de atropelar um gato, arquejava
do esforço e da raiva, procurei ouvir se me esperava alguma emboscada no final
do trajeto. O invasor, ou invasores, (bem poderia ser uma quadrilha fazendo um
arrastão no condomínio), talvez houvessem antecipado meus movimentos. Arrisquei
uma investida abrupta no saguão da área de serviço, àquela hora vazio e sem
luz, contornei a coluna do elevador para escalar o muro de elemento vazado que
dava pro jardim, por onde pude me esgueirar entre os canteiros que ladeavam o
corredor de comunicação dos blocos de apartamentos. Rodeei uma longa volta para
alcançar discretamente a guarita da portaria sem me expor na entrada principal,
o porteiro quase desmaiou quando irrompi feito um pé de vento na pequena
construção de alvenaria.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-37700954978555989472016-08-24T21:56:00.001-03:002016-08-24T21:56:31.780-03:00o intruso (1)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://2.bp.blogspot.com/-abl6eXwTYhU/V75ByHEadvI/AAAAAAAAEiE/9vIXKaxNn3AfZgSCfffx-A6fzm9kuZ-jQCLcB/s1600/logo%2Bconsultorio%2Bde%2Brua%2BFoto0199.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://2.bp.blogspot.com/-abl6eXwTYhU/V75ByHEadvI/AAAAAAAAEiE/9vIXKaxNn3AfZgSCfffx-A6fzm9kuZ-jQCLcB/s400/logo%2Bconsultorio%2Bde%2Brua%2BFoto0199.jpg" width="300" /></a></div>
<br />
<br />
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">É sempre a mesma história. Parece
um caso daquela famosa Lei de Murphy, justamente quando você está ocupado com
alguma tarefa que exige concentração absoluta, nessa hora toca a campainha e
ninguém se prontifica a levantar o traseiro e fazer o imenso favor de ir lá
abrir a porta. Estava no meu quarto estudando certos pontos particularmente
escorregadios de lógica matemática, os exames da pós-graduação se aproximavam e
achei melhor manter a matéria <st1:personname productid="em dia. Era" w:st="on">em
dia. Era</st1:personname> uma variação usada por Gödel para tratar do paradoxo
de Russell: imaginemos uma cidade com apenas um barbeiro do sexo masculino,
nesta cidade todos os homens, ou fazem a própria barba, ou são barbeados pelo
barbeiro, pois bem, tudo corre na mais tranqüila ordem até considerarmos a
peculiar situação do barbeiro em si, que tanto faz a própria a barba, como a
tem feita pelo barbeiro da cidade. Na vida real nada disto é problemático, o
barbeiro passa a lâmina e vida que segue, mas no mundo da lógica temos duas
proposições inválidas: a) ao barbear-se, então o barbeiro (ele mesmo) não deve
barbear a si mesmo, e, b), se o barbeiro não se barbeia a si mesmo, então ele
(o barbeiro) deve barbear a si mesmo. Se já é difícil se embrenhar no rigor
desta linguagem tão abstrata, ficava impossível com a campainha soando
insistente e insolentemente desatendida apesar da casa estar cheia àquela hora
da noite.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Alguém, por favor, pode abrir essa porta?!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">Sem resposta. Levantei da cama
onde havia afundado entre livros-texto e xeroxes num mau humor do cão.
Arrastei-me pelo corredor de paredes decoradas com quadros de bordado
geométrico, virei à esquerda na direção da sala de móveis embutidos em
jacarandá escuro antes de chegar à porta do elevador social. Não tinha a menor
pressa do mundo, só comecei a me inquietar quando percebi a maçaneta de bola
girando devagar, como se alguém estivesse tentando se aproveitar da distração
dos donos para introduzir-se sorrateiramente na casa. Quem poderia ser? Alguém
íntimo demais da família para não precisar esperar que lhe abrissem a porta, ou
um estranho com más intenções que experimenta a porta de um apartamento como um
ladrão de carros verifica se algum motorista distraído lhe facilitou o
“serviço” deixando a porta do carro destrancada?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> ―
Quem é?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― É uma
encomenda.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― A esta hora?
Por que não deixou na portaria do prédio?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Senhor,
preciso que assine o recibo de entrega.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não lembro
de ter ouvido o interfone tocar avisando que tinha gente subindo aqui.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Por favor,
abra a porta, receba o pacote, e assine os papéis. É só isso.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não quero
saber, deixe a encomenda aí que eu assino os papéis e amanhã você pega com o
porteiro.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">O meu interlocutor se calou,
irritado, suponho. Fiquei ali, a respiração suspensa, o gesto detido em frente
à porta, sem saber exatamente como deveria proceder numa situação daquelas, mas
sentia uma ponta de orgulho em ter resistido com tanta determinação às demandas
do desconhecido entrão. Para minha surpresa e susto, a porta começou a empenar
para dentro ― o cara estava forçando a entrada na minha casa! Passei o trinco e
o ferrolho na porta apressadamente, e comecei a chamar o pessoal e avisá-los da
tentativa de invasão. Ninguém se dignou a vir à sala para me ouvir, recebi
respostas de apoio da cozinha, do escritório, dos quartos, mas nada de darem as
caras e tomar consciência da gravidade do evento. Corri para a saída de
serviço, abri a porta e tranquei por fora. Antes de desabalar pelas escadarias
ainda berrei através da porta uma última vez que ninguém abrisse a porta ao
intruso.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-77984235319264411902016-08-14T23:26:00.001-03:002016-08-14T23:26:53.678-03:00A Corrente (5)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://3.bp.blogspot.com/-Nq_M96neOyE/T8EQqzrNQOI/AAAAAAAADhQ/UktnWIvbXjIQQ9iBzHMtUMBvTCydr7siQCPcB/s1600/55351074a6df11e19dc71231380fe523_7.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://3.bp.blogspot.com/-Nq_M96neOyE/T8EQqzrNQOI/AAAAAAAADhQ/UktnWIvbXjIQQ9iBzHMtUMBvTCydr7siQCPcB/s400/55351074a6df11e19dc71231380fe523_7.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">5. Mansueto</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Mano, desacreditei desse bagulho de entrar nas idéias dos outros, de
se teletransportar pra uma vida... como a sua. Quer dizer, cê tá ligado?, não é
desfazendo, falei de boas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Olha menina, já vivi o suficiente pra não me surpreender se o postes
resolverem fazer xixi nos cachorros. Embora, pra lhe dizer a verdade, também
estranhei quando tudo isso começou. Que é que eu sei sobre esses fenômenos? Pouco.
Andei fazendo umas pesquisas e não cheguei a nenhuma conclusão definitiva, a
ciência não anda no mesmo passo da nossa curiosidade. O certo é que tudo
começou depois que operei o cérebro.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Caracas, o senhor abriu a cabeça?!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Abriram a minha cabeça, pra ser mais exato. Tenho 62 anos, sofro do
mal de Parkinson há 5, faz um ano que implantei um marca passo cerebral. O nome
chique é <i>deep brain stimulation</i>, ou
DBS: são 2 eletrodos instalados bem no meio dos miolos, numa região chamada
tálamo, que deve ser pouco maior que um ovo de codorna. Vê este fiozinho
subindo da minha clavícula? Aqui fica o neuroestimulador, uma bateria que
dispara pulsos para os meus neurônios não esquecerem de acionar os músculos
corretamente.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Que da hora. Então foi isso que fez você virar um X-man com poderes
de telepatia?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Essa é uma maneira de ver as coisas. Pra falar a verdade, não consigo
pensar em outra causa para a minha súbita transformação numa espécie de médium
que, em vez de receber espíritos, tem acesso aos pensamentos e sentimentos de
pessoas reais, aliás, pessoas com problemas bem reais, como você. Somos um
grupo de 5 pessoas capazes de captar essa freqüência, ou seja lá o que isso
for, até onde sei, moramos num raio de <st1:metricconverter productid="500 km" w:st="on">500 km</st1:metricconverter> uns dos outros, foi então que me veio
essa idéia de mandar mensagens em forma de corrente pra ver se neste pequeno círculo
de “amigos virtuais” consigo o que nunca consegui fazer na vida: uma coisa
certa.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E cê diz isso pra mim? Viu a palhaçada lá no cemitério? Ninguém
respeita a dor dos outros, eu devia era ter mandado bala naquela bruxa que só fez
trazer tiriça pro meu lado. Mas daí apareceu aquele soldado e me convenceu...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E isso, por si só, já não é um milagre, uma pessoa te ajudando a
troco de nada? Digamos que você tivesse matado a avó do seu falecido filho, e
daí?, daí que você acabava de se desgraçar. Sofia, me escute bem, tenho idade
pra ser seu avô, mas não passei do jardim de infância na escola da vida: sou um
especialista em pôr tudo a perder. Só que, ao contrário de você, não tenho a
quem culpar: eu atravessei a rua pra escorregar na casca de banana da outra
calçada. Gostava de fotografia, mas me tornei advogado, amava Jaqueline, mas casei
com Roberta porque estava mais fácil, e assim fui avançando rumo ao sucesso e
às conquistas, sempre na maciota, seguindo no vai da valsa. Sempre procurei evitar
a dor e escolher a maior vantagem, acabou que, de tanto fugir do sofrimento,
deixei escapar o amor, e de tanto levar vantagem, prejudiquei a todos que
estavam à minha volta. Quando o Parkinson se manifestou anos atrás, entrei num
esquema de corrupção pra pular a fila dos implantes de marca-passo, que é que
eu ganhei?, o aparelho não melhorou em nada os meus tremores, e o médico que me
operou hoje tá com o nome no jornal. Só fiz cagadas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Sabe o que é enterrar um filho, Mansueto?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não faço e nem quero fazer idéia, acho que deve ser a pior coisa do mundo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Então, eu me liguei que tem uma nóia que não sai da sua cabeça:
também tá se vendo sem ter pra onde se virar, sozinhão no meio da rua, também
tá pensando em chutar tudo pro alto, saltar do trem <st1:personname productid="em movimento. Fiquem" w:st="on">em movimento. Fiquem</st1:personname>
aí vocês, que eu fui! Né não?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Sem tirar nem por. Certíssima.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E aí, nessa brincadeirinha que você inventou, pelo que entendi, agora
é minha vez de te dizer: “Deixa disso, tente outra vez, levanta, sacode a
poeira e dá a volta por cima”, e todas essas merdas que se falam nessas horas. Mas,
e se eu não tiver afins de jogar na tua cartilha? E se eu te disser que pra mim
moiou grandão, a bagaça perdeu o sentido, que pra mim deu?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Bom, nesse caso eu te direi que este coió que perdeu as pessoas mais
importantes da vida e só se ligou tarde demais, o retardado que jogou fora a própria
vida, pode finalmente lhe ter caído a ficha, sacado alguma coisa. E essa alguma
coisa tem muito a ver com você e essas pessoas que estamos conectados. Essa
nova condição de telepatia, empatia, mediunidade, ou disfunção cerebral que
seja, me permitiu entrar na pele, calçar o sapato dos outros, sentir o que eles
sentem, entender o que nunca tinha entendido. Claro, até uma moeda de ouro tem
2 lados: a parte ruim de conhecer os outros por dentro é que junto descobrimos
o pior que estava escondido em nós mesmos. Por outro lado, descobri que não
existe campeonato da dor: o sofrimento não tem régua. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Mano, cê não tá entendendo, eu tô feito bicho solto, não tenho porta
onde bater, não tem um teto que eu possa dormir hoje, dá pra você se ligar no
tamanho da encrenca? Se pá, vou ter que voltar a fazer programa pra não morrer
de fome, o que eu jurei que nunca mais faria.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ah, mas não vai mesmo. Escuta, sou um homem razoavelmente bem de
vida, você vai dormir numa casa minha que tá desalugada. Vou te ajudar como se
fosse minha filha, posso fazer por você o que não fiz pelos filhos de sangue:
cuidar apenas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-71873262154143899942016-08-06T22:23:00.001-03:002016-08-06T22:23:04.407-03:00A Corrente (4)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-zxyzDeNmnHs/V6aM4ef7OFI/AAAAAAAAEhg/MPt8dVfDiMs5L0IYiHzTgSw47VxCwJAQACLcB/s1600/DSC00161.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://4.bp.blogspot.com/-zxyzDeNmnHs/V6aM4ef7OFI/AAAAAAAAEhg/MPt8dVfDiMs5L0IYiHzTgSw47VxCwJAQACLcB/s400/DSC00161.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">4. Sofia</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Não tem dia bom no cemitério São Luís, zona sul, onde a cidade acaba e
começa a terra de ninguém. Vim enterrar meu filho.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Centenas de quadras se espalham num conjunto de morros descampados, sem
árvores, sem grama, a bem dizer, parece mais um terrão cortado por carreiros tortos
de chão batido onde se pisa em bitucas de cigarro, ripas, sacos de supermercado,
entulho, garrafas pet e embalagens de salgadinho Fofura. Acompanhei o coveiro
abrir um buraco pequeno na terra vermelha e seca da quadra 10, lá ao longe,
depois do verde ralo dos capoeirões e palmeiras que cercam o campo santo, dá
pra ver os bairros vizinhos: Capão Redondo, Jardim Ângela, Jardim São Luís. O
triângulo da morte. Não é à toa, 300 mil pessoas enterradas neste fim de mundo.
Poucas lápides com nomes marcam o local das sepulturas, o mais das vezes são
plaquinhas de compensado cobertas por plástico transparente com mensagens: “para
um super primo”, “para um super irmão”, “para um super filho”. Os canteiros,
delimitados por cercas de papelão, são simples, o pessoal prefere os gerânios e
a rosa miúda. A placa do meu bebê tem uma carinha de menino com boné branco e
bolas pretas. O povo da região chama isto aqui de cemitério dos homicídios.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Voltando pro barracão dos velórios, o funcionário de jaleco <st1:personname productid="verde e" w:st="on">verde e</st1:personname> crachá da prefeitura
espanta a enxadadas um grupo de cachorros em volta de uma cadela no cio. Os cães
se afastam numa ladraria insana. Há craqueiros espalhados pelos cantos das
quadras, mas o homem já nem se liga mais no vaivém daqueles zumbis com olhos
que atravessam feito tiro traçante. Vagueiam pelo recinto como criaturas dos
dois mundos ali reunidos, parece que olham direto pro lugar nenhum deste lugar
nenhum.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Você entende que tem alguma coisa diferente no lado dos vivos quando vê
que o agente de velório tem um colete à prova de balas pendurado na cadeira da
sala dele. A chapa aqui tá sempre quente. As famílias começam a discutir a
herança enquanto velam os corpos, nem esperam o defunto esfriar. A briga
explode ali mesmo, pode ser a moto do falecido, a propriedade da edícula, uma
TV, até mesmo o aparelho de chapinha, às vezes a administração precisa chamar a
guarda civil ou a PM pra separar os lados, do início do cortejo até a chegada
ao túmulo. Igual que faz com as torcidas de futebol.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">No meu caso, pelo menos, nem tem pelo que brigar: meu bebê morreu três
dias depois de nascer. Não tinha nada, e agora perdi tudo. No hospital me disseram:
“Você só tem 14 anos, quem sabe não foi melhor assim?” E então, me pergunto,
como podem saber o que é melhor pra mim? Eu queria o meu filho, ver o Lucas
crescer, eu queria que o pai dele acreditasse em mim, não na bruxa da mãe, e
voltasse pra casa. O problema é que já não tenho uma casa pra ele voltar, não
tenho nem pra onde ir, estou no meio da ponte entre dois nadas. Na hora que o
Lucas descer pra baixo da terra, aqui em cima dela eu não vou ter nem o metro
de chão onde ele vai descansar pra sempre. Mas o que é do homem, o bicho não
come. Carrego um revólver na bolsa, o da minha sogra querida tá guardado. Ela
que tenha a cara de pau de aparecer.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não vai funcionar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Que susto! Quem é você?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não sei bem, mas o nome é Admildo...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E agora eu dei de ver assombração, é? Cê é louco, maior nóia, sai de
mim espírito das trevas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Não sou espírito, menos ainda das trevas. Se acalme, também fiquei
tenso quando aconteceu comigo. Isto aqui é tipo uma conexão, sei lá, puseram a
gente <st1:personname productid="em contato. Deve" w:st="on">em contato. Deve</st1:personname>
ter um motivo, mas ninguém me explicou nada.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Que é que não vai funcionar?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― A arma, eu entendo disso, acredite Sofia. Você nunca pegou num 38,
nem sequer destravou o berro. Quer saber? Nem tenta, você vai acabar machucando
quem não tem a ver com o peixe.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Bom, mais um que sabe o que é melhor pra mim...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Saí de casa tinha 10 anos, modo de dizer, porque não era bem uma casa o
barraco de tapume onde morava com a minha mãe e os irmãos. Meu pai, lembro
dele, dormia de dia e saía à noite pra trabalhar na profissão perigo. Passou
uns tempos preso, depois voltou, daí sumiu de novo. Quando ele desapareceu de
vez, minha mãe já não trabalhava, tinha endoidado, de pinga, de remédio pra
dormir. Os vizinhos às vezes traziam comida, ou porque não tinha, ou porque ela
esquecia de fazer. Eu e os irmãos mais novos fazíamos bonecas usando as
garrafas de Corote que ela espalhava pelo quintal. Com as cartelas dos
calmantes a gente construía carrinhos de corrida pros mais novos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Sempre faço força pra lembrar os nomes dos meus irmãos e irmãs, mas não
consigo, é uma fumaça de esquecimento que cobre toda a memória dessa época. Sei
que tive um irmão chamado Lucas, por isso dei esse nome pro meu filho. Coitado
desse irmão. Sumiu, como foram sumindo todos daquele cafofo, uns foram pra casa
abrigo, outros, adotados, só eu fiquei pra cuidar da mãe, pra ir buscar ela de
tarde no bar quando voltava da escola. Até que um dia ela não estava no bar de
sempre, não estava em bar nenhum das redondezas, nessa noite não preguei o olho
chorando. Nunca soube mais nada dela.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Uma tia por parte de avó me levou pra morar com ela, e foi um anjo que
atravessou o meu caminho. Foram os 2 únicos anos normais da minha vida: tinha
vestidos, bonecas, e um quarto só pra mim. Fui num dentista pela primeira vez.
Tia Berta tinha uma doença que paralisou ela aos poucos: os braços, as pernas,
até que chegou na cabeça e já não conseguia engolir comida. Os filhos dela eram
adultos, na verdade, toleravam a minha presença na casa da mãe, desde que
cuidasse dela como enfermeira. Quando ela morreu, deram 3 dias pra eu arranjar
outro lugar pra ficar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Então fui morar com o namorado, ou melhor, na casa da mãe dele. Em
poucos meses descobri que estava vivendo com um moleque tirado na xérox do meu
pai, dava perdido, ficava semanas sem dar notícia, daí, reaparecia com cara de
quem tinha saído num rolê de 15 minutos. A mãe dele, por outro lado, começou a
me cobrar o aluguel: “Não posso alimentar mais uma boca de graça, se vira
mina”. Dizia que se eu já era mulher pra dar pro filho dela, também podia fazer
uns programas com os bacanas que ela conhecia. Os caras pagavam bem pra menor
de idade, e eu caí na conversa dela.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Uma coisa eu sei: eu já estava grávida quando comecei a fazer michê. Quando
falei pra ele que tava de 5 meses, meu namorado respondeu que filho de puta só
tem mãe.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-65583796511584145342016-07-31T16:59:00.001-03:002016-07-31T16:59:51.585-03:00A Corrente (3)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-Tos-R3R3DGE/V55YOLWNJdI/AAAAAAAAEhM/Z4k57Pi7pm8vktN9h_aO-LtVuKu-cJNhACLcB/s1600/image1%2B%25281%2529.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-Tos-R3R3DGE/V55YOLWNJdI/AAAAAAAAEhM/Z4k57Pi7pm8vktN9h_aO-LtVuKu-cJNhACLcB/s400/image1%2B%25281%2529.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">3. Admildo
Queirós Jr</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Pilhas de pratos sujos e copos com
resto de cerveja. Bancos ao redor de uma mesa velha. Lata de lixo atochada de
embalagens de pizza, long necks e coadores de café usados. Cinzeiros
improvisados ― latas de refri rasgadas ao meio ―, lotados de bitucas de
cigarro. Da janela vejo um varal cheio de roupas, fico na dúvida se é real esse
cheiro de grama molhada que entra pela janela. A angústia circula entre os policiais
no barraco fedorento, alguém vai ter que limpar essa bagunça uma hora.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Todo mundo já entendeu que estamos em guerra, o que as pessoas não
querem entender é que numa guerra há baixas dos dois lados. Necessariamente. Se
não, seria um passeio, fácil como roubar aposentado numa saidinha de banco:
mandava lá os drones, pá-pá-pá, liquidava os vagabundos todos, e o serviço tava
feito. Passava a régua, limpo e seguro. Acontece que nem no Iraque foi assim, e
aqui na Cidade Mara a lógica é outra: se nós temos escopeta, vagabundagem tem
metranca, se nós arranjamos metralhadora, malandro tá com bazuca. No dia que
descolarmos um drone, eles na certa vão vir de bomba atômica. Segurança pública
é isso: a bandidagem tem grana, estrutura e pessoal motivado, nós... bem, a
gente vai fazendo acordos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Desculpe falar assim, não costumo comentar essas coisas nem em grupo
fechado só dos meus camaradas da polícia, mas é que hoje a minha gastrite
acordou a toda. Além do mais, esta nossa conversa não é propriamente... uma conversa!
Me pergunto se não estou doidão de pedra, eu aqui, de papo com um camarada que
só existe na minha cabeça. Enfim, Ramsden você disse?, eu lhe falei de guerra,
mas a imagem que as pessoas têm de uma guerra é muito Hollywood e novela da
Globo: vilões e mocinhos, dois lados opostos, o bem de um lado, o mal do outro.
Só que não. Guerra é, e sempre foi, em todas as épocas e lugares, um grande <i>negócio</i>.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Os caras negociam sempre que há um Deus-nos-acuda nacional. No Tropa de
Elite era a visita do papa, mas pode ser qualquer evento que ponha os olhos do
mundo em cima de nós. Foi assim em 2006, quando “aquela facção que age dentro
dos presídios” parou a cidade de São Paulo: os caras foram lá negociar com os
cabeças <st1:personname productid="em Presidente Bernardes. Agora" w:st="on"><st1:personname productid="em Presidente Bernardes." w:st="on">em Presidente Bernardes.</st1:personname>
Agora</st1:personname> é a Olimpíada. Ninguém quer merda acontecendo com
milhões de câmeras e jornalistas circulando por aí, aconteça o que acontecer,
não pode dar ruim lá na gringa. Nessas horas as diretorias sentam pra trocar
figurinhas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Sabe onde eu estou neste momento? Bom, isso aqui é uma campana pra
alvejar traficante, a facção do Vidigal cedeu este esconderijo, e daqui a gente
vai apagando os malucos da Rocinha que aparecem portando armas. Não tem moleza,
são tiros de 400, <st1:metricconverter productid="500 metros" w:st="on">500
metros</st1:metricconverter>, tem que ficar horas na posição, até que aparece
o mala, e Tuf!, uma azeitona de 7.62 derruba o mané sem ele nem saber de onde
veio. E por quê? Porque neguinho lá não tá respeitando o cessar-fogo, o
cessar-arrastão e roubo a gringo, não sentaram com o governo pro arrego, daí,
meu irmão, é bala. Ninguém se importa com morte de bandido neste purgatório da
beleza e do caos. Cai tudo na conta das tretas entre eles. Claro, um monte de
tira tá morrendo nas rondas por causa disso, como lhe disse antes, a guerra tá
rolando solta, mas nada pode estragar o show.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Sou atirador de elite, um sniper monstrão, 4 horas de treinamento
diário por cinco anos pra acertar um grão de feijão a <st1:metricconverter productid="100 metros" w:st="on">100 metros</st1:metricconverter> de distância.
Não gosto do que estou fazendo, mas ordens são ordens. É pra descer vagabundo?
Meto prego mesmo, e depois Deus que me perdoe. Melhor ser a mãe dele chorando
no final do dia do que a minha. O esgotamento físico é animal, uma porra de um
trabalho solitário, só compartilhado com aquele grupo que você está vendo todos
os dias: as mesmas caras, as mesmas conversas. Você não pode sair na rua e
conversar com ninguém. Não tem domingo, não tem feriado. Às vezes bate o
pânico: você imagina que a base vai ser estourada, os bandidos vão vir e levar
todo mundo pra matar depois, ou então, vão incendiar o barraco, jogar uma
bomba. De todo modo, não estamos sós. Há uma equipe de cobertura no final da
viela.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Não sou um sujeito cego pras injustiças sociais. A favela da Rocinha,
com IDH de Botsuana, cortada pelo túnel Zuzu Angel, está encravada entre os
bairros da Gávea e de São Conrado, os IPTUs mais altos da cidade, ambos com IDH
da Noruega. Óbvio que o camarada que nasce aqui vai crescer revoltado, não tem
como: insegurança, escola de merda, transporte de merda, saúde de merda, vida
curta. Acontece que a minha profissão não é consertar o país, apenas mantê-lo
dentro do absurdo normal do patropi. Numa hora como esta, o cu de todo mundo tá
na reta, na guerra, irmão, todos os cus estão cosidos, ligados uns aos outros.
Olha pelo meu binóculo, lá está o vagabundo, descendo a escadaria carregado de
sacolés. Primeiro, vou derrubar ele, depois estouro os pacotes de cocaína no
segundo tiro.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Admildo, aquele é só um menino carregando sacolas com pipoca. Daqui
ele te parece um bandido, mas é só a roupa, o lugar, a cor da pele, que estão
errados. As aparências estão contra ele.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Você pensa em se matar?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Todos os dias.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Eu também, Ramsden, muitas vezes.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Você não consegue dormir, tem uma gastrite que não sara. Se atirar,
vai acertar em você mesmo.</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-23351347645934155782016-07-24T20:41:00.001-03:002016-07-24T20:41:04.326-03:00A Corrente (2)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://2.bp.blogspot.com/-tyuXoOpQB9U/V5VRmcKKDXI/AAAAAAAAEg4/4HZ7rQe6wzcuaCT3lp8ucCrWdj3Z3xyAgCLcB/s1600/image1.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://2.bp.blogspot.com/-tyuXoOpQB9U/V5VRmcKKDXI/AAAAAAAAEg4/4HZ7rQe6wzcuaCT3lp8ucCrWdj3Z3xyAgCLcB/s400/image1.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">2. Ramsden</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Como é que sabe que eu ia fazer merda? E depois... quem, melhor, o
que é você? Não me venha com treta de espírito, que não acredito nessa resenha.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Prazer, Ramsden, eu sou a Norma, uma pessoa como as outras, igualzinha
a você, meu bem: cheia de problemas. Nunca tive visões ou saí do próprio corpo,
não converso com mortos, não leio cartas, não tenho premonições, nem entidades
baixando <st1:personname productid="em mim. A" w:st="on">em mim. A</st1:personname>
coisa mais esquisita que já me aconteceu acabei de te contar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Então por que tô vendo e ouvindo você como se estivesse aqui do meu
lado? Como sabe meu nome? Onde que cê tá na real?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Na real, estou na cozinha de casa preparando o almoço de amanhã das
minhas filhas. Quando elas voltarem da escola, a vizinha que olha elas pra mim só
vai ter o trabalho de esquentar e servir, e eu só vou chegar à noite porque trabalho
o dia todo feito uma condenada.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Mas, e como...?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― O seu nome eu sei porque ouvi sua tia chamando você outro dia. Agora,
se me perguntar como ou por que isso tá acontecendo, não vou saber responder.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Cê também recebeu uma corrente esquisita?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Sim, e já que a coisa tá acontecendo direitinho como tava lá escrito,
vou cumprir a minha parte e torcer pra esse negócio estranho terminar logo e
bem.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Então é você a minha conselheira... uma pessoa que me aparece feito
assombração. Tem alguma coisa da hora pra dizer, ou vai me passar o sermão do
“compreenda seus pais, eles têm outra cabeça”?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Ramsden, não conheço tua história, tuas razões pra chegar ao ponto
que chegou, o que eu percebi é que tu não dorme a noite toda e fica olhando
essa janela com cara de quem tá a ponto de fazer besteira. Você é jovem, tem o
quê?, dezessete, dezoito? Não vou te dar conselho que isso não adianta pra
adolescente, em vez disso, vou lhe contar outra historinha, uma mais antiga, de
quando eu tinha metade da sua idade. Meus pais bebiam muito e viviam brigando, eram
arranca-rabos medonhos, a ponto da vizinhança chamar a policia, pra você ter
uma idéia. Minha casa era uma gritaria só, eu e meus irmãos vivíamos apavorados
com aquele pega-pra-capar constante. Um dia, a briga ficou ainda mais feia do
que o costume, o pai pegou uma cadeira e começou a avançar, minha mãe não se
encolheu, catou um facão e partiu pra cima. Eu assistia a tudo sentada à mesa
(era a mais velha, os caçulas já tinham ido dormir), tava ali quieta, brincando
com bolinhas de miolo de pão, de repente, sem que eu tivesse pensado muito,
peguei um garfo e enterrei bem fundo nas costas da minha mão esquerda. Lembro
que o sangue jorrava em borbotões grossos do lado dos dentes metálicos do garfo
enfiados na carne...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Eu hein, outra história terrível! Em que é que isso pode me ajudar?
Tá sabendo que meus pais me botaram no olho da rua?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Sei. Escutei você falando ao telefone com sua mãe, saquei um pouco do
panorama geral: seus pais estão na errada, muito mesmo. Veja meu caso, naquele
dia, eu consegui fazer meus pais pararem, só que o preço foi me machucar muito.
E não adiantou: depois eles voltaram a fazer tudo igual de novo. Ramsden, não tem
como dar uma lição em alguém se, para isso, você tem que se arrebentar. Ninguém
consegue parar a estupidez sendo mais estúpido ainda.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Nasci numa família de Bíblias, quer dizer, sempre fomos mais ou menos religiosos,
mas tudo mudou de figura quando a minha avó ficou doente. A mãe virou xiita
total, passou a freqüentar os cultos quase todos os dias, o pastor Malafaia se
tornou a última palavra pra tudo na nossa casa, aliás, ele se tornou a
encarnação da Palavra em nossas vidas. Aos poucos, a gente se tornou um rebanho
de radicais: o segundo a aderir fervorosamente foi o pai, depois a minha irmã,
e por último lá fui eu também cantar no coro da congregação. Terninho engomado
e cabelo curto pros homens, saia comprida e cabelo amarrado em trança pras
mulheres, no exército do Senhor uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra
coisa. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Na boa, chamar a Bíblia de livro santo ou guia moral é a maior
palhaçada, só pode ser piada. Os caras estão de brinques: já calcularam que no livro
dos livros 2,5 milhões de mortes são narradas. Repúdio claro a essa chacina
monstra? Nada disso. O que pega mesmo, o que enfurece Javé, são os varões de
Sodoma, os adúlteros, as prostitutas, os fornicadores e punheteiros em geral,
além dos descuidados que deixam entrar cachorros no Templo. Zé-povinho gosta
mesmo é de ser enganado, digam o que quiserem os profetas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Claro que o Altíssimo não mudou uma vírgula no estado de esclerose da
avó, mas a mãe não deixou de levar a pobrezinha a tudo que era vigília, cultos
de exorcismo e sessões de cura que os ministros de Deus lhe recomendaram. Uma
boa grana esses abutres com ternos caros e carrões importados arrancaram dos
otários dos meus pais. O Espírito Santo realmente deve se manifestar em alguns
indivíduos escolhidos, porque o que esses pastores são ensaboados, não é
brincadeira. Neguinho te esfola vivo e tu ainda agradece por ajudar o malaco a
encher o rabo de grana.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Na verdade os meus velhos são enganados dentro e fora de casa: a minha
irmã fuma um do bom, vai a baladas e fornica antes do matrimônio, mas não pega
nada pro lado dela. Sabe por quê? Porque ela sabe esconder, tem as manhas de
muquiar a real, falar e mostrar só o que eles querem. Meu erro foi acreditar
que alguém ficaria do meu lado quando comecei a ser zoado na escola, a diretora
chamou meus pais pra formalizar a queixa contra o professor que ficava me
usando como exemplo nas aulas de história ― e, diga-se de passagem, nunca houve
escassez de viado em nenhuma época da humanidade...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Em vez de perguntarem pra mm se era verdade que o professor fazia
bullying comigo, meus pais, na frente da diretora, quiseram saber se era
verdade que eu sou uma “abominação ao Senhor”. E foi assim que meus pais
ficaram sabendo o que eu já sabia há mille ano: gosto de rapazes, eles são tão
irresistíveis pra mim quanto os anjos que visitaram Lot eram pros sodomitas.
Sinto atração pelos meus semelhantes em gênero, como Noemi por Ruth, e como
Davi por Jônatas, que mal pode haver nisso? Pro meu pai e minha mãe, todo o
mal. Fui expulso de casa, e ainda bem que a minha tia me recebeu na casa dela,
mas todas as noites agora penso em me jogar por essa janela e acabar de uma vez
com todo esse sofrimento.</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-21837699847457927172016-07-17T22:47:00.001-03:002016-07-17T22:47:38.908-03:00A Corrente (1)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-v2firKvcMS4/V4w0rOmGz7I/AAAAAAAAEgo/PTFeGWQveWcUlBSvFsTUHJ2xM_DXMqMdgCLcB/s1600/dziga.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-v2firKvcMS4/V4w0rOmGz7I/AAAAAAAAEgo/PTFeGWQveWcUlBSvFsTUHJ2xM_DXMqMdgCLcB/s400/dziga.jpg" width="300" /></a></div>
<br />
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">1. Norma Blandy</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Nem
me dei ao trabalho de saber quem tinha enviado aquilo, sequer guardei, dessas
tantas correntes que alguém lembra de te mandar de tempos em tempos, uma
mensagem até muito convencional, quer dizer, ao menos começava abusando dos salamaleques
costumeiros do gênero:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 54.0pt; margin-right: 56.2pt; margin-top: 0cm; text-align: justify;">
<i><span style="font-size: large;">Aos que me desejam o Bem, eu desejo em
dobro! Aos que me desejam o mal, eu desejo luz, para que assim eles possam sair
da escuridão e compreender que aqui nessa vida se colhe exatamente o que se
planta...<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 54.0pt; margin-right: 56.2pt; margin-top: 0cm; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Daí em diante descambava para um tom
místico-brega, falando do “círculo que se fecha”, desaguando numa conversa loucona
de “visitações” das cinco almas-irmãs do outro plano, quando o “conselheiro”
passa a ser o “aconselhado”, e vice versa, enfim, uma bobajada sem tamanho que
não pedia que a enviasse a ninguém, não recomendava uma oração, nem nada,
apenas dizia para aguardar. Em geral não leio ou presto atenção a essas coisas,
eventos banais destinados ao rápido esquecimento, não fosse pelo fato daquelas
palavras terem se confirmado completamente logo a seguir.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Estava me marimbando um monte pra
tudo que não fosse a minha confusa vida sentimental, separada pela segunda vez,
uma filha de cada casamento pra criar, ambas pequenas. Na verdade, o segundo ex
marido e eu vivíamos numa relação iô-iô com recaídas periódicas: a cada três
meses, aproximadamente, voltávamos a sair de novo pra ver se a gente conseguia
remendar a relação, mas acabávamos retornando ao mesmo ponto do rompimento ―
pior pra mim, que sobrava com as duas pequenas numa casa sem homem naquele
bairro de ruas desertas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> Foi um pouco antes de começarem os
alumbramentos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Mas não tinha nada de especial nessas visões, uma sala, o rapaz que
dormia no sofá dessa sala, a janela do apartamento em frente dele, e sempre a
mesma cena toda noite: ele não conseguia dormir, se levantava, abria a janela,
e ficava ali olhando a rua mal iluminada, o casario em volta com poucas luzes
acesas. Somente isso, noite após noite. Também apareciam lampejos de uma moça também
jovem, mas aí já era uma situação bem outra.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Nunca senti medo dessas manifestações, afinal, minha mãe era parteira
no interior, acostumada a entrar em todo tipo de casas, no segredo das pessoas
mais diferentes que se possa imaginar. Por falta de ter com quem deixar, mamãe
era obrigada a me levar junto nas suas andanças, de modo que fui acostumada
desde sempre a ver de tudo, a lidar no natural desarranjo do mundo. Aceito o
que a vida traz, do que não entendo, não falo, e do que não creio, também não
duvido.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Só que tudo isso ― visões, avisos, correntes ―, é diferente do que me
aconteceu naquela noite.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Aquilo foi muito real, físico, no sentido carnal da palavra. Tinha
acabado de pôr minhas filhas pra dormir, botei o pijama, escovei os dentes,
passei um creme no rosto e achei que ainda precisaria ler um pouco antes do
sono vir. Em vez do sono, porém, veio um brilho muito intenso do corredor onde acabara
de desligar as arandelas, só tinha deixado a luminária do banheiro pras meninas
não dormirem sem luz nenhuma. A luz foi aumentando até que três figuras
entraram no meu quarto, diria três homens, se eles não tivessem a aparência de
alienígenas, extraterrestres pra ser mais clara.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Dois deles usavam roupas brancas e máscaras que lhes cobriam o rosto, a
impressão era de médicos acompanhando o sujeito nu que avançou pra cama na
minha direção. Ele teria <st1:metricconverter productid="1,60 m" w:st="on">1,60
m</st1:metricconverter>, a pele acinzentada e desprovida de pêlos, inclusive
na cabeça, onde se destacavam os enormes olhos negros sem pálpebras ou pupilas,
amendoados como os de um oriental. Não possuía nariz, mas apenas dois furos no
local onde são as narinas humanas, a mandíbula estreita se afilava em V,
emoldurando a boca pequena e sem lábios, os braços finos chegavam à altura dos
joelhos descendo pelo torso magro e sem costelas, terminando em mãos de três
dedos surpreendentemente fortes.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Bem, órgão sexual não se via, mas depois que o danado se enfiou entre
os meus lençóis, deu pra sentir que nada lhe faltava neste quesito. Fizemos
sexo em silêncio, sem que “ele” tenha pedido licença pra me despir, sem conversa
telepática, sem preliminares, em momento algum a criatura pareceu se preocupar
em me proporcionar prazer, ou obter a minha aceitação da bizarra situação. Assim
que terminou a função, tombou pro lado exausto à maneira dos coelhos, ao que os
outros dois se prontificaram em carregá-lo para fora do quarto. A luz havia se
extinguido, e eu dormi profundamente.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Três semanas após este fato (que não revelei a ninguém), descobri que
estava grávida. Entrei em pânico, como explicaria esta gravidez pros outros? Já
é ruim quando se conhece o pai, se tem uma relação com ele, imagine na situação
em que me encontrava. Quem iria acreditar? Além do mais, havia um complicador:
naquele momento em que tentava voltar pro meu segundo marido, era ele quem me
ajudava a manter as contas de casa. O pai da minha filha mais velha
simplesmente sumira no mundo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">O duro era ver a história se repetir com um cara que talvez morasse a
milhões de quilômetros daqui!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Pra terminar de complicar estava na fase off da relação com o ex, ou
seja, não tinha nem como alegar que o filho poderia ser dele. Estava num
tremendo beco sem saída, a barriga crescendo, as meninas também, e as contas
chegando todo mês, inevitáveis como as marés, a morte e os impostos. Quando
estava a ponto de fazer uma besteira (já tinha até combinado o preço com a
aborteira), os dois acompanhantes do alienígena apareceram e realizaram um novo
procedimento, desta vez me puseram pra dormir antes. Dias depois, voltei a
menstruar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Hmm, essa não é uma história muito bonita da sua vida, Norma...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Eu sei, mas é algo que nunca contei a ninguém.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― E por que você está me contando isso?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">― Porque, tal como você, num momento de desespero, eu estive a ponto de
fazer uma grande cagada.</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-right: -6.8pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-19714973409222555732016-06-18T21:08:00.001-03:002016-06-18T21:08:56.799-03:00o mensageiro (final)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://3.bp.blogspot.com/-cIe740aLzNw/V2XiG5cbqEI/AAAAAAAAEgQ/gz_yOu6VLpwsp8SPxNnJwMf4RxAbUfdkwCLcB/s1600/portal.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://3.bp.blogspot.com/-cIe740aLzNw/V2XiG5cbqEI/AAAAAAAAEgQ/gz_yOu6VLpwsp8SPxNnJwMf4RxAbUfdkwCLcB/s400/portal.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-size: large;">“Ataques a bomba simultâneos em escolas do
Rio de Janeiro e São Paulo deixam 20 mortos e 16 feridos. O horário estimado
das explosões (7:15, horário de Brasília), foi o do início das aulas em duas
escolas privadas, na zona Oeste paulistana, e na zona Sul carioca. É o maior
massacre de estudantes já ocorrido no país, segundo o governador do Rio há 5
feridos em estado grave, que se somam aos 3 feridos em estado crítico
informados pelas autoridades de São Paulo. A maioria das vítimas são crianças de
<st1:metricconverter productid="8 a" w:st="on">8 a</st1:metricconverter> 10
anos do 3º ano do ensino fundamental, além de 2 professoras, 3 assistentes de
ensino e uma babá que se encontravam nas salas na hora do ataque. Em comunicado
conjunto, o Diretor Geral da Polícia Federal e o Chefe Adjunto da Abin (agência
brasileira de inteligência), admitiram haver suspeitas de que duas meninas, que
estão entre as vítimas fatais, teriam introduzido os explosivos nas escolas
dentro das mochilas, mas não confirmaram a versão de que elas se conheciam, nem
as suspeitas de haverem mantido contato recente com estrangeiros, segundo
afirmaram na nota divulgada há pouco, a hipótese de atentado terrorista não
está descartada por se tratar de escolas bilíngües onde estudam filhos de
diplomatas, finalizam afirmando que todas as possibilidades estão na mesa neste
momento. Houve princípio de pânico nas ruas do entorno das explosões,
seguiram-se bloqueios da polícia nas principais vias, com os prefeitos de ambas
as capitais declarando estado de emergência. Neste momento o trânsito registra
novos recordes para o período nas duas cidades, vêem-se muitas pessoas
abandonando os veículos na rua, descendo dos coletivos parados no
congestionamento e voltando a pé para suas casas. A qualquer momento é
aguardado um pronunciamento do presidente interino Michel Temer, e também da
presidente afastada Dilma Rousseff.”<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-2864929519077261452016-06-12T13:33:00.001-03:002016-06-12T17:01:56.262-03:00o mensageiro (4)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-cgMWD2RXS2c/V12OZZZqXmI/AAAAAAAAEgA/SfmHUNODxD0QTxIDYPC5gj6U06lsuzPFwCLcB/s1600/grito.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="310" src="https://4.bp.blogspot.com/-cgMWD2RXS2c/V12OZZZqXmI/AAAAAAAAEgA/SfmHUNODxD0QTxIDYPC5gj6U06lsuzPFwCLcB/s400/grito.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Com ar de
pouco convencida a moça se afastou lentamente carregando o vestido dobrado para
o interior da loja, ficou no ar o risinho insolente de quando a viu entrando
cheia de sacolas, o sorriso do gato invisível, lembrou do entusiasmo que essa
história provocou em Giovanna na época, a filha é uma criança encantadora e
problemática, questionadora, como ela mesma foi antes de se tornar a pessoa
viciada em coisas estranhas de hoje, depois de assistir e ouvir todas as
versões de Alice milhões de vezes, a menina, do alto de incompletos quatro anos
de idade, lhe disse que não queria ser como ela quando crescesse, ‘Por que, Jojô?’,
‘Porque você não consegue mais voltar pra lá’, e no entanto tudo que ela faz é
voltar, voltar e trocar roupas que acabou de comprar, roupas e acessórios que
nunca vai usar: na verdade coleciona os celofanes e etiquetas das suas lojas
preferidas, nas trocas, as vendedoras invariavelmente embrulham e etiquetam o
produto de novo, ela desenvolveu uma técnica apurada pra descolar os adesivos,
realoca-os em pastas junto aos recortes dos celofanes com marca d’água, os
álbuns perfeitamente organizados atulhando seu closet pra desespero do marido,
Sílvia Regina sabe que as suas relações com as vendedoras de artigos de luxo
seguem um padrão peculiar, uma dinâmica predeterminada: paixão, ascensão,
declínio e rompimento abrupto, num período que varia de semanas a uns pares de
meses, a analista lhe disse que o envolvimento com essas moças representa a busca
daquilo que sente perdido pra sempre: juventude e pressa, e, realmente, ela não
tem pressa pra mais nada, desapareceu a lebre maluca e atrasada da sua vida, sobrou
apenas o ritmo irreal do chá das cinco na Montanha Mágica, aliás, conhece Davos
como a palma da mão, não que haja muito a conhecer ali, nem em Aspen, Ibiza,
Monte Carlo, Dubai, Chamonix, Cap Ferrat, St. Bartz, San Marino, Montblanc, cada
círculo exclusivo que consegue galgar, em cada festa, nenhum lugar ou pessoa
importante que lhe são apresentados conseguem mais causar a mínima comoção.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">O celular
toca.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Oi, querida,
viu o meu recado?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Ai, Sílvia,
li sim, e é sobre isso que preciso te falar... ai, meu santo, tô bem surtada. A
Isabella também recebeu um pacote hoje de manhã, tem uma equipe de segurança
aqui em casa, tá uma loucura!”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Acalma,
respira, você não acha que estamos um pouco over? Deve ser só uma brincadeira
de meninas que estão com saudade, uma enviou pra outra e...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Sílvia
Regina, acorda pra vida, sai da negação. Então por que as duas enganaram as
babás e foram pegar as encomendas sozinhas na portaria? E por que depois não
havia pacote, embrulho, nem nada com elas? Meninas de oito anos não recebem
encomendas DHL!”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Ok, tudo bem,
é estranho, mas a gente deu uma busca nas coisas todas da Jojô, na casa toda,
nos jardins do condomínio, e não achamos nada.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Tudo bem, pra
você?! Pois deixa eu te contar uma novidade: os detetives descobriram que havia
mesmo uma encomenda internacional pra Isa, de um tal Aylan Kurdi, que mora num
país sei lá o quê, tá bom?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Agora você me
assustou, o esquisito é que as meninas só ficam repetindo que era só uma
mensagem. Vou ter que avisar o pai...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Mas como
assim, teu marido ainda não está sabendo? Sil, não dá pra ficar de barata-voa,
meu bem. Não sei se é um pedófilo, mafioso ou terrorista, mas coisa boa não
deve ser.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Sabe como o
meu marido é ocupado, né? Ele detesta ser interrompido em reunião.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Você vem
dizer isso pra mim? O Caio Henrique vive grudado no prefeito mas teve que
participar imediatamente, não tem mole pra ninguém nestas horas.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">Desligaram,
ela pegou o embrulho das mãos da moça da loja e saiu sem se despedir,
experimentava uma espécie de enlevo que já desacostumara, descia escadas e
atravessava galerias em êxtase, uma coisa importante e urgente pra resolver, o
marido teria de lhe conceder algum pedaço da sua escassa paciência com as
miudezas das suas preocupações, afinal, aquela era uma situação de máxima
importância, exatamente o que já não havia mais na sua vida: o perigo de algo
real acontecer, algo novo e imprevisto, sozinha no elevador do shopping center,
mirava-se nos reflexos em abismo das paredes espelhadas enfileirando uma cauda
longa de Sílvias carregando sacolas e chorando, imagens encolhendo ao infinito,
lá onde uma Sílvia minúscula já quase não sente o peso inexplicável do mundo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6844563737463890399.post-65560058498791836472016-06-05T11:53:00.001-03:002016-06-05T11:53:26.443-03:00o mensageiro (3)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://2.bp.blogspot.com/-ug1et-d11es/V1Q8gA0wllI/AAAAAAAAEfs/XME3ydcLx2wPoOEfz0SWnN2fvldcGSTAACLcB/s1600/DSC00026.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://2.bp.blogspot.com/-ug1et-d11es/V1Q8gA0wllI/AAAAAAAAEfs/XME3ydcLx2wPoOEfz0SWnN2fvldcGSTAACLcB/s400/DSC00026.JPG" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;">“Como
você sabe que o inferno existe?”, sentada na beira da cama, Giovanna não estava
disposta a aceitar afirmações peremptórias, muito menos verdades subentendidas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Simples,
eu estive nele”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Então
me conta como é lá, tem casas, escritórios, árvores, monstros?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Nada
disso. É um barco.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Como
assim, Allan, um barco?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Apenas
um barco, e o mar: imenso, vazio, perigoso”, o menino remexia as mãos hesitando
prosseguir no rumo da conversa.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Não
estou entendendo, isso não se parece com o que me contaram...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Aquilo
não se parece com nada. Um esqueleto velho de madeira podre, todo enferrujado,
conduzido por piratas que sabem que a maioria dos passageiros vai morrer na
travessia.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Um
barco de piratas? Não sabia que piratas ainda existiam.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Existem
sim, são cruéis e cobram caro dos que precisam fugir da guerra. Minha mãe
entregou a única jóia de ouro que ganhou no casamento pra gente ir da ilha de
Kos ao porto de Bodrum na Turquia. Era tudo que nos restava, mas era pouco para
aqueles homens, não tínhamos dinheiro pra dar a eles, por isso meus pais viajaram
no porão e morreram sufocados, meus irmãos mais velhos iam no compartimento do meio,
junto com o óleo que queimou a pele deles pra sempre, nós crianças viajávamos
no convés, um lugar perigoso onde o vento e as ondas a toda hora derrubavam
alguém pra fora do barco. Não havia salva-vidas nem bóias pra salvar os que
caíam, e também ninguém se importava.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Que
horror! Nem dá pra acreditar que tem tanta malvadeza no mundo!”, os olhos de
Giovanna eram duas órbitas congeladas na moldura dos cílios longos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Mas
foi assim. O navio todo rangia balançando, ameaçando se desfazer a cada onda,
os gritos, as rezas, as rajadas de espuma salgada, tudo se tingia de uma cor
escura mesmo embaixo do sol, os sentimentos rodopiavam dentro de mim feito
ventos loucos, porque as coisas aconteciam sem nenhum sentido ou controle como
se estivesse dentro de um sonho ruim, pra esquecer a fome repassava na cabeça as
lembranças boas da minha vida e as cenas de um filme antigo, um senhor perdeu o
juízo e se atirou no mar durante a tempestade, meu desespero era um choro
silencioso que ninguém escutava, nem mesmo eu podia escutar.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Allan...
você perdeu seus pais?!”, grossas lágrimas quentes desciam pelo rosto de
heroína de mangá da garota.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Giovanna,
desculpa, não queria fazer você chorar. Acontece que esta é a minha história,
não tenho onde me esconder dela.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Tô
bem, não se preocupe. Agora entendo porque você tá sempre triste e com medo das
pessoas. Prefiro quando me dizem a verdade.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Sei
que a minha vida machuca, mas não queria te machucar. É que... só você tem a
coragem de me ouvir, e eu tenho essa necessidade de contar, de dizer pra todos
que tudo isso foi real.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Minha
mãe falou que você não existe, que é invenção da minha cabeça. Ela falou pra eu
pensar que sou uma linda princesa que mora num lindo castelo, e assim vou
conseguir dormir na hora que tem de dormir. Disse bem assim: ‘O Allan é só um
amigo imaginário, daqui a pouco ele some’.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Às
vezes também penso que não sou de verdade. Não existe mais nada do que eu vivi,
só esta prisão onde me jogaram. Perdi o lugar no mundo, ninguém quer receber o
meu povo”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Deu
na televisão o nome da cidade que você morava.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Ah,
sim, é o noticiário das catástrofes nos lugares que só existem no mapa, a dor
das pessoas imaginárias.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Você
sente saudade da sua casa?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Minha
casa?... Seria aquela cidade onde as bombas caíam de surpresa enquanto
dormíamos, ou então quando estávamos reunidos nas festas? Pedaços: de lojas e
ruas, cachorros, carros abandonados, brinquedos deixados pra trás. Ruínas e pó.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Tem
alguma coisa que eu posso te ajudar, Allan?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “Tem
sim, me dá seu endereço, vou te enviar uma encomenda. Provar que existo de
verdade.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"> “E
o que é que você vai me mandar?”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: large;">“Uma mensagem.”</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
filipe com ihttp://www.blogger.com/profile/02204254416703641813noreply@blogger.com1