quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A Roberto Piva

(foto de José DoutelCoroado)

O poeta é um feiticeiro
um xamã que inventou


palavras

Com a mão direita
significa o amor
a vida
A despeito dos anjos de Sodoma

Absorve o pecado
dignifica
a loucura

Com a mão esquerda
fecha o caderno
une as mãos

Transmuta-se em arco-íris

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Apanhador de sonhos


A corda
enrosca
em nós
envolve
em volta
uma rede
enreda
retesa
tece
uma teia
enrosca
enrola
enlaça
a fita
laça
entrelaça
aperta
estreita
abraça

o desatar
dos nós
solta a corda
desfaz o laço
desenreda a rede
a teia do sonho
não filtra seu abraço.

ERA TEMPO DE GOIABA


















Até aquela noite, ela tinha aguentado tudo: os gritos, as surras, a humilhação. Ela era casada...

Muitas e muitas vezes amanheceu com um olho roxo e botou o cabelo por cima, para esconder o hematoma. Mentiu que caíra encerando o assoalho, uma vez. Que o dente era um pivô mal feito, e que o quebrou comendo pão.
Aguentou tudo firme, sem gritar e nem dar a entender para o povo que era infeliz no casamento, que sofria maus-tratos dentro da sua própria casa. Que era vítima do próprio marido.
Na primeira noite, ao chegar em casa, foi violentada. Conheceu as verdades do sexo na marra, a poder de tabefe. Quieta, bufando no escuro horroroso do quarto. Ela era casada...
Foram anos e anos assim: apanha, serve o homem, apanha de novo, serve e cala a boca. Quanto tempo? Uma eternidade tão triste e tão longa que já nem lembrava mais o que era sorrir.
Mas, naquela noite, sabe-se lá por quê, sentia um negócio esquisito no peito, feito um rosnado de bicho acuado. Naquela noite aconteceu o que não era para acontecer, mas que já era de se esperar.
Naquela noite, mais uma vez ele chegou em casa bêbado, fedendo a bebida e a perfume de bordel, a rosas murchas e pó-de-arroz barato. Jogou em cima da mesa um pacote com carne de porco:

- Faz aí, anda!

Ela ficou um bom tempo olhando o pacote. Pensou na goiabeira da casa da mãe e na própria infância. Pensou que já era tempo de goiaba e que elas deviam estar maduras, de abrir na mão feito caixinhas de jóias. Lembrou da mãe, das irmãs pequenas e da vidinha até bem feliz que ela já tivera, um dia .
Um cheiro gostoso de goiaba começou a inundar a casa inteira, vindo da noite quente lá fora. Ela abriu a porta da frente e começou a andar sem rumo na noite escura, sem olhar para trás. Nunca mais voltou.

foto: "Dog Woman" - Paula Rego

2006

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

dezoito segundos

Quão
perto é o mais perto que você consegue chegar de um dinossauro? Do lado de um esqueleto de epóxi pintado numa exposição de arqueologia? Quanto a mim, lutei contra uma fera dessas com todas as minhas forças por dezoito segundos e, se não saí inteira, pelo menos estou aqui para contar a história.
Parece pouco,
dezoito segundos. Contados pelo meu marido que viu o começo da cena no alto de um barranco sem poder fazer nada. O importante é que me salvei, ele me salvou e os médicos também me salvaram.
Engraçado,
as duas primeiras coisas que me passaram pela cabeça, aparentemente, não tinham nada a ver com o que estava acontecendo; pensei na pesca do aruanã, um peixe carnívoro da amazônia, e no meu casamento.
Converti-me
ao judaísmo para poder casar com o Joel, em vão, já que descobri depois que não podia participar das principais festas do calendário religioso com os pais dele, freqüentadores da sinagoga dos Safra. O sobrenome Kogan, que não adotei, tem importância fundamental na tradição judaica: indica a descendência direta da tribo Cohen. Rabinos de verdade são da linhagem dos Cohen ou dos Levi.
Nunca
tive religião, queria apenas agradá-lo, conquistar a mãe dele e poder conviver com uma família grande e unida. Não tenho irmãos, perdi pai e mãe aos 20 anos, só restaram uns tios afastados e duas tias esquisitonas, Sônia e Vera, que cuidam da minha prima autista, Aline.
A outra
coisa que me veio à mente foi uma imagem terrível, a armadilha para o aruanã-prateado usando botos feridos. O aruanã sente o cheiro de sangue e vem de cardume para cima da gaiola onde está a isca viva, caindo nas redes da pesca predatória. Às vezes conseguimos tratar desses botos, abandonados feito lixo depois da
barbárie.
Vim para a Amazônia realizar a coleta de dados do meu pós-doutoramento; estudo o comportamento territorial e reprodutivo do pirarucu em Mamirauá, reserva ecológica no médio Solimões. O Joel desenvolve projetos de gestão pesqueira com populações ribeirinhas em áreas aquáticas protegidas; nos conhecemos na USP, ele terminando etnologia, e eu, caloura da biologia.
A noção
de desenvolvimento sustentável começou aqui em Mamirauá. Quase um milhão e meio de hectares de floresta tropical submersa, um mundo flutuante submetido a um regime de variação do nível de água da ordem de 20 metros. Um paraíso para cientistas, artistas, ativistas e... turistas.
Nada
contra o ecoturismo, o problema é que muitos pensam que estão no zoológico. Restos de comida humana, por exemplo, prejudicam a relação com animais in natura; uns imbecis aqui deram de alimentar um jacaré-açu de 5 metros e meio, só para filmá-lo alçando seus 500 kg para fora da água e abocanhando peixes no ar.
O vacilo
também foi meu, é verdade, mas a estupidez alheia contribuiu. Havia acabado de pesar e verificar as anilhas de um lote de pirarucus e despejava o tanque de coleta devolvendo-os para o rio. Um deles saltou de volta para o deque, peguei-o com jeito e me debrucei na beirada segurando firme pela guelra. E então,
o bote.
Uma bocarra com 80 dentes afiados saiu das águas escuras e fechou suas mandíbulas no meu braço esquerdo, me arrastando para o fundo. Como o som de taquaras secas, escutei os ossos do braço, do cotovelo e os ligamentos se quebrando instantaneamente. Ouvi um grito antes de cair
na água
― o Joel. Era como ter o braço esmigalhado por uma prensa mecânica, uma torquês operada por músculos descomunais; senti uma dor selvagem, desumana, uma dor que ninguém deveria conhecer; podia localizar cada ponto em que os dentes do bicho se enterravam na minha
carne
dilacerando o que encontravam pela frente. Os jacarés descendem de caçadores que estão aí há 230 milhões de anos, eficientíssimos, são predadores do topo da cadeia alimentar, tão eficientes, que caçam até outros predadores de topo como onças, pumas, jibóias e sucuris. Eu sabia exatamente o que ia acontecer
a seguir:
a dor tem esse efeito de nos tornar brutalmente conscientes. Tudo se passava rapidamente, embora fosse capaz de perceber a passagem de cada centésimo de segundo distintamente. Ele me levava mais e mais para baixo e para o meio do rio, remando propulsado pela cauda e as patas traseiras, enquanto à minha volta minguavam os fiapos de luz coados da superfície.
TRRLOOC!
Girando repentinamente sobre o seu eixo longitudinal, o gigante desencaixou completamente a articulação do ombro, supinando o meu braço num ângulo absurdo; a dor, que acreditava já estar no ápice, sofreu um acréscimo impossível, me conduzindo também a novos e insuspeitados patamares do medo pânico.
Perdi
os sentidos na volta do parafuso, o bicho voltou a atacar com violência, girando agora o membro que já não sentia, na direção oposta; desceu sobre mim uma calma escuridão pouco antes de registrar que o meu braço tinha sido arrancado de vez por um último puxão

acordei de uma noite cega em pleno campo de batalha, conhecia as regras da luta: ele ia voltar, precisava engolir o naco que me arrancou para caber outro. Jacarés comem diariamente 10 % do peso na forma de presas vivas; eles não caçam propriamente, esperam imóveis, aguardam pacientes a vítima chegar desavisada, e só então se movem, rápidos, letais.
Algo
quis viver em mim; nadei louca para o cais, chorando alucinada, berrando, engolindo água, pedindo outra chance ― não queria morrer com 34 anos, não desse jeito. Realizei o sacrifício, entreguei uma parte à mãe d’água para ficar com o todo que sobrasse. Senti as mãos do Joel a me puxar pelos cabelos e camisa para cima do flutuante, do meu ombro jorrava uma coluna de sangue; nos beijávamos
abraçados
e ensangüentados, soluçando como crianças. Desmaiei de novo. Fui levada de barco e monomotor para a cidade de Tefé, onde fui operada de urgência; não posso exprimir em palavras a dívida de gratidão para com o Instituto, que me disponibilizou sua infra-estrutura incondicional e prontamente. Meu marido não saiu do meu lado.
Passei
um bom tempo me tratando, tranquei a pós, fiz análise, tomei 3 tipos de remédios para a depressão. Para minha surpresa, a sogra agora me tratava como da família, engolia sem questionar minha conversão fajuta na sinagoga reformista, onde homens e mulheres rezavam juntos, em português, e até rabina admitia. Joel me contou que desceu o barranco contando os segundos, procurando manter a vista no lugar onde eu desaparecera; ia encarar o jacaré-açu quando me viu subindo à tona.
A cabala
transmuta letras em números, e vice-versa, dezoito equivale ao valor numérico da palavra hebraica “Chai”, que significa “vivo”; no misticismo judaico, o número 18 corresponde ao poder da vontade na alma.
Finalmente
decidimos voltar para a floresta. Deixei a megacidade para trás como se fossem as fotos envelhecidas da infância de outra pessoa, hoje, no mapa do meu mundo, São Paulo é só memória, um pano de cimento sujo semeado de shopping centers. Selva bem mais perigosa que desejo
longe.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Lá do lado de lá

Seis horas e nada, só o sol. Ilumina a casa, ilumina o quarto, ilumina… Parece ter dormido bem. Bom dia! Eu aqui por meu lado não posso dizer o mesmo: mais uma noite vagando a sombra, correndo o silêncio… nenhuma resposta. Saberia você me responder ou, estrela que é, seguirá suas amigas lá pro lado de lá, uma noite e um dia, me largando aqui pra trás? Quero saber da luz! Da sombra também, – êta sombra! – ontem e agora; pois que tudo se esconde pra se mostrar em seguida, ainda encoberto…

Estranho. Da noite o dia e este ar secando a garganta e o pensamento. Parece nem perceber que é. Ora, deixa a noite pra trás! Se ela já te abandonou… Levanta, segue seu caminho, deixa, deixa…

Um pouco de água.

Brilha, brinca. Que coisa este sol! Dentro da água como se parte dela, como se a conhecesse por força, por ser. E eu? Conta. Só um pouco de entendimento, só um pouquinho. Das perguntas que ouço e faço, das que investigo, das que nem mesmo chego a suspeitar…

Ela foi mesmo pra lá? Lá pro lado de lá? Não quis me contar… Conta, então, você: viu minha mãe por lá? Viu ou não viu? Ora, deixa de bancar o bobo. Como se não fosse pra lá toda noite. Tá bem, se não quer não fala. Esquece.

Você é como ela, pensam que eu não entendo. Só que eu não sou burro não, viu? Não sou. Tanto que fui o único com quem ela pôde contar. O único! Ora, e de que adianta isso agora? Ela já não te deixou?

— Por quê, mãe? Por quê?

Vai embora sol, vai você também. Acha que é só chegar e me tomar tudo? Nunca mais. Nunca mais!

Aparece, risca o céu e logo vai se esconder. Então vai tranquilo, sei que conhece bem seu caminho, mas por que não me conta do meu? Sim, eu sei, eu sei… Mas se só eu posso, por que não me ajuda? Por que não me ilumina? Segue em frente sem nem me notar, sem um carinho, só pra me atormentar… como ela.

— Não adianta. Pode gritar o quanto quiser. Não adianta.

Faço eu meu caminho. Saio desta casa. Busco meu destino.

E esta árvore bem em cima do túmulo? Deviam te arrancar. Tinha de nascer logo aí? Só pra me avisar todo dia? Mãe, conta, o que é que eu faço? Quero tanto… O que é que eu faço? Mas não grita, mãe, não grita. Por que você sempre faz assim?

— Eu já disse que não adianta, não disse?

— Aqui não é tua casa, rapaz. Gritar não vai te ajudar.

Era calma sua voz, bem calma. De onde, então, o medo que eu sentia? Parecia o zoológico.

— Relaxa. A gente só quer te ajudar.

— Eu não fiz nada.

— Eu sei, eu sei.

— Foi ela que pediu…

Deram-me umas roupas muito limpas, eu me lembro, nem tinham meu cheiro. Disseram que depois devolviam as minhas. Nelas foi junto o João. Fiquei só, eu.

Em volta só um azul, meio sujo, mas um cheiro de limpeza. A cama macia.

— Dorme. Pode dormir.

Como se sobre a cama se abrisse um olhar e, tranquilo, deixasse apagar. E do quarto nada, da fonte só uma gota. Nada de mais. Ao lado a senhora observando o sono, uma ponta de dúvida arregalada, meio escondida. Talvez não querendo estar ali. Pensando mesmo em como é que podia ser uma coisa daquelas. Menino ainda…

Chave medrosa, na ponta dos dedos balança indecisa, mas acaba por se decidir: duas voltas no ferrolho e se vai. Para trás só o cheiro de pinho e as paredes vazias, uma cadeira e a cama guardando um sono amargo, mais sabido que o dono; um sono esquecido, que mesmo com esforço não lembraria do sorriso que se fez – a mãe logo ali – para logo se apagar; a angústia de perder a quem se tem, martírio de toda noite. Agita o corpo todo, ameaça mesmo um soco, mas o sono sempre esquece, se droga e esquece…

Da porta, um corredor escuro até alguma luz. O passo inquieto pedindo, um olhar a recebeu, o posto de enfermagem cansado pelo adiantado da hora.

— Não passa de um garoto…

— Tem a força de um homem.

— Sim, mas não passa de um menino.

A colega olhou o chão, o que adiantaria argumentar? O que fez, o que deixou de fazer… Realmente era um menino, provavelmente gostava de jogar bola e mascar chiclete, sair por aí em grupo com ares de quem tudo pode só pra ter coragem de ser alguém, aí arranjar uma briga na rua, ou pior, em casa. É, um menino como tantos outros, como o que eu tenho lá em casa… Minha Nossa Senhora! Não. Não como o meu filho. Meu filho nunca faria tal coisa.

— É um monstro!

— É doente.

Os olhos se medindo, resolveram pelo silêncio. Do silêncio um pouco de paz, ao menos. E assim, um sorriso, uma bala e a noite; lá no horizonte a manhã com pressa de trazer uma esperança. Quem sabe um pouco também de entendimento, e coragem, para avançar o corredor, rodar a chave, abrir a porta:

— Oi.

Fitou o rosto confuso como sempre, mais vontade que naturalidade.

— Tudo bem?

Fato, nada mais.

— Gostou da cama?

Dois passos e estendeu a mão, nada.

Achava que sempre compreendia, mas às vezes percebia que não. Nestas se perguntava pela certeza rotineira…

— Queria conversar com você.

A palavra, acreditava nela. De sua posse, sujeito. Teve de se contentar, porém, com o silêncio. Como se já não bastasse o que fizera.

Voltou no dia seguinte e no outro e no outro, porque acreditava na cura. Palavra por fonte, medicina por instrumento, tinha esperança. Até que chegou.

— O sol veio.

— É.

— Estou aqui.

Na verdade queria só o tempo, nada de passeios ou festas. Não entendia tudo aquilo, mas aceitou. Aceitou a roupa, aceitou seu quarto, recebeu um amigo. E, por um tempo ao menos, acreditou-se feliz; uma flor bordada na camisa. Até perceber, mais de ano, que nada se lhe recebia de seu. Procurou, tantas vezes se ofereceu, mas conseguiu apenas o mesmo olhar de aprendida compreensão. Não que não notassem, absolutamente, até mesmo reunião fizeram para discutir sua mudança de comportamento, mas outra resposta não souberam. De novo, uma tentativa de ajudá-lo, aumentaram a dose da sua medicação.

Desiludiu-se.

“Dr. Amigo,

Trago o coração riscado.

Sei da dedicação, mas não sei de mais. Há mais? Desde muito sinto toda noite um menos, para no dia seguinte se afagar, afastar; mas que nos últimos não se apaga. Fica forte quando se pensa, fica invencível quando se esquece.

Lá do lado de lá, quem sabe?

Até um dia,

João”

E fugiu.

Mas não escrevera tudo, pois não o saberia escrever, ou mesmo pensar. Do quanto ele próprio podia, da vida ponto e vírgula, das noites, dos dias… Mesmo sentir não sabia, do que o levou embora, uma liberdade que era só aspiração. Uma vingança.

Fugiu.

O ar lá fora mais pesado, – quem sabe voltar? – mas não era escolha de conforto ou tranquilidade. Mãos no bolso, camisa aberta, a lembrança das roupas do João, a certeza de que o que buscava só nu. Certeza? E o que é certeza? Incerto e nu, e sem nome, e assim à noite, escondido aos olhos dos que não querem ver, e assim ao dia.

— Ao sol.

Único companheiro.

À noite, então, completamente só; a não ser por ela mesma, a noite em si, a própria ausência, materializando-se em cada obstáculo, em cada pedra no meio do caminho. Ao menos uma pedra se pode chutar, chutar e seguir: direção marcada. Que outra coisa a fazer quando não se sabe a direção a seguir? Uma pedra, sim; um salto à frente. E a certeza que não se tem até uma nova pedra, como num jogo de amarelhinha: uma pedra, alguns saltos e se chega ao céu. Como numa brincadeira de criança…

Atirei o pau no gato, tô

Mas o gato, tô

Não morreu, reu, reu

Dona Chica, ca

Dimirou-se, se

Do berro, do berro

Que o gato deu

MIAU!

Então, em frente! Riacho seco, garrafa quebrada, pedra amiga… Pra onde vamos? Lá pro lado de lá. Lá é que é bom! Vai pedra, mostra então o caminho. Só não vai quebrar o vidro da vizinha, ela já nem troca mais os dela. Só rindo mesmo… A vizinha só pensa na filha; a moça tem cheiro, tem dengo. Por que não me olha? Por que me olha? Bem podia mais que olhar… nunca mais que um olhar. Ela tem fogo no olho. Faísca, fervente, feminina. Queima feito não sei o quê! Mas joga água quando sorrio… Falsária! Vou-me embora, pode esquecer, encontro quem me queira. Longe daqui. Daqui só uma árvore no lugar errado. Mãe, por que no lugar errado? Onde fica o lugar certo? Todo mundo procura, todo mundo me olha. Só olha, pareço artista de TV. Basta me desligar. Será que querem me desligar? Por que querem me desligar? Este cheiro no ar… fumaça, fogo, foguete… mas não cheira a queimado. Cheiro visguento, fedoroso, chilismento. Tá bom, tá bom, já tô indo. Engole sua fumaça sozinho! Não volto mais aqui, mesmo. Vou lá pro lado de lá que é muito melhor. Muito melhor! Bico de pato, tabaco em chumaço, trigueiro latindo, furunda no mato. Muito melhor.

— Pro lado de lá, mãe?

— É muito melhor.

— E eu?

— Me ajuda, filho. Por favor…

— Vou com você.

— Deixa, menino, deixa. Sua hora vai chegar.

— Eu quero ir…

— Não fica assim, não.

— Que qui eu faço?

— A vida…

— Sozinho, mãe?

— O sol.

— Do lado de lá?

— Filho, deixa…

— Do lado de lá…

Veio a noite e ela foi embora, pro lado de lá. Nem ensinou o caminho… Por que me levaram com eles? Fritubentos! Amarrado, assustado, molecote todo tremelicado. Nem um cobertor. Quanto frio! Fingidos fricotentos! Um chão poeirento e a parede toda marcada, que nojo! Nem palavra, nem cuidado. Só os outros cochichando:

— É ele.

— Sério?

— É.

— Só um moleque!

Moleque! Assassino, bandidinho, bandidão. Um olho alarmado, outro tranquilo; as mãos negras da sujeira. No fundo um sentado, gordo, medindo, coçando a careca. Gota de suor, palha de cadeira cutucando a orelha, um cuspe no chão.

— Deixa ele em paz.

— Mas é o…

— Em paz!

Nem um toque, espaço aberto. Na catacumba só rato; não se conta o que não se pensa, não se fixa assim o foco da estrela. De cada lado um olhar, amigo à direita, malévolo à esquerda. Só esquerda. O cheiro do mofo, uma olhadela à janela e só a dureza do chão para deitar.

— João!

Silêncio.

— João!

Sem resposta, enfureceu:

— Levanta daí, moleque.

Meio-dia ardendo, meio perdido, meio charmoso, tiveram de puxá-lo pelo chão.

— Ninguém vai te dá carinho aqui, não.

Na frente do delegado chorou.

— O que você tem a dizer?

Encolhido, desaprumado, encolheu-se ainda mais. Do outro lado quase pena:

— Não quer falar nada?

Até que lembrou:

— Tira esse olhar de bonzinho da cara, moleque!

No quase, segurou a bofetada já armada. A ética, a mídia… além do mais a mãe era dele. Arrumando o paletó voltou para a cadeira e acenou que o levassem embora. Esperou a porta fechar para resgatar uma garrafa.

— Como é que pode?

Deixou o gole surtir efeito antes de voltar aos bandidos. Às vezes era quase impossível manter a calma, mas era preciso, para acabar com eles. Prender, matar, trucidar! Mas não pode, não deve… é preciso evitar. Lei é lei: se não pode matar, então tranca. Eles lá e nós cá. Tá na Bíblia: inferno neles! O céu aos homens de boa vontade.

— Doutor, tem um cara aí querendo falar com o senhor.

— Quem é?

— Sei lá. Diz que é médico…

Médico? Fazer o quê aqui?

— Manda.

Entrou inquieto, um olhar morno a recebê-lo.

— Médico?

Percebeu a ironia. Tentou ao menos parecer ter certeza:

— Ele precisa se tratar.

— Tratar o quê?

Quis chamá-lo de ignorante, até por ter percebido que acabara de ser chamado assim, mas preferiu não.

— O senhor sabe, ele…

— Ele é louco, pirado!

Não era um diagnóstico, era uma condenação.

— Posso conversar com ele?

O delegado achou graça: para quê?

— Para saber do que ele é capaz basta ler o jornal, doutor.

— Por favor…

Teve pena: curar o garoto? Como existe gente ingênua! Por um instante, porém, chegou, ou melhor, quis até acreditar que ele pudesse melhorar, mesmo se arrepender… Já ía até chamando o carcereiro, mas se conteve. Sentiu uma coisa crescendo por dentro: uma certeza, com força de raiva, doída. Ou seria só raiva mesmo? Dolorida, machucada; muita, muita raiva! É essa gentinha que bota os bandidos na rua. Será possível que não percebem? Eles lá e nós cá. É o único jeito.

— Não.

— Mas…

Segurou o palavrão, o murro, o cuspe…o nojo:

— Não!

O doutor teve medo, partiu.

Voltou. Ainda o medo, mas escondido atrás de uma ordem judicial. Ao entregá-la sorriu, a coragem de um momento.

— Está no pátio…

No caminho, porém, o prazer foi passando, o momento se foi. Olhares ariscos, muita sujeira, olhares agressivos… Pensou em voltar atrás, não se entra no inferno para salvar o demônio. Mas fez força, concentrou-se: há esperança. Eu sou a esperança. Chegou:

— Eu sou amigo.

Nem mesmo um olhar.

— Eu sou AMIGO.

Agora sim, mas o olhar dizia que quem o olhava não era burro. Mudou de tática:

— Vou te tirar daqui.

Pouco caso.

— Você vai ficar bom.

Um chiclete.

— Vai poder voltar pra casa.

A lembrança da filha da vizinha. Morena…

Desisitu, um vinco no lábio. Andou até lá fora para uma nova discussão, palavra qualquer, com o delegado. Olho no olho, pareciam marido e mulher: um só, dividido. Foi-se, mas voltou. Dia sim, dia não. Medroso e corajoso, atento; sempre o vinco ali. No fundo parecia o chefe da cela:

— Por quê, garoto?

— O sol.

— Tá bom. Vai com Deus.

O dia estava claro, não deixava sombra pra raiva do delegado se esconder. Aperto apertado na mão, sorriso amarelo fingindo, não adiantou amainar a voz: raiva, muita raiva. Do fundo da cela, lá atrás, uma gargalhada:

— O sol, seu delegado!

Eu sorri. Na minha frente os dois, marido e mulher:

— Ele é perigoso.

— É, como nós.

Corri, como corri! Ele sorriu também, esqueceu o vinco, mas no fundo só a lama, da água só a lembrança dos remédios… lá do lado de lá não tem remédio pra dormir, pra acalmar, pra não pensar na árvore do hospital plantada lá em casa, mas nada da minha mãe… já vou, já vou, não demoro, caminho sempre há. Um pouco só de calma, de discernimento, do acolhimento da filha da vizinha quando olha por dentro, queimo inteiro por dentro! Quem sabe um remédio pra não mulher… Mas é isso! Só pode ser! A mulher do Dr. Amigo junta remédio tem mais de ano, doa pra morena que passa triste na rua de não cantar.

— Ei, morena! Basta cantar.

Lá do lado de lá é só cantar. Locomotiva, já chego, já, que a vida não quer esperar o ponto avesso de uma estranheza como só Nosso Senhor sabe mandar. Morro acima o Senhor pede que eu vá avistar a água do mar azul cheia de sol a me envolver, pura força maliciosa da vizinha plantada em árvore no jardim em cima do túmulo esperança, onde me deito pra poder voar, pra poder sonhar com a flor bordada na camisa de uma criança a rir no colo da mãe, chacoalhando um mais inesquecível ou invencível ou irascível fincado na gota de chuva amorosa que brotou do mar.

— Amar! Amar!

Amarga a tempestade de gotas precisas do menos desdentado do lado de lagarto invencível, pegajoso, pestilento, coroando as risadas dos plebeus azularando o cosmogonauta solar perdido no zoológico.

— A falar cada vida estrevancada na voz calma de sombra do sol que bindola e amedronta a ponta dormente do pistilo

preciso da palavra fertilizada pelo céu que avisa da fonte da vida guardada lá do lado de lá que é muito melhor para senhoras se regozijarem nos pingos de chuva que chegam às roupas azuis e amarelas penduradas no varal do além

— mar crispado por força e gratidão de ser que desditoso chefe amplifica ao suadouro enluarado mais ou mente a forca dos martírios numitindelo a mãe esfacelada por facacistas de coração riscado com a promessa distinta

de nunca esquecer deste mais brigarando um menos chincalhado de britadeiras brasileiras

bronzeadas sob o solar

só o solar

o solmar

— Tá chovendo, rapaz.

a sol

— Vem comigo.

sol

Gargalhavam, mas ela não ria mais.

— Vem.

Pelo braço, porta adentro; o espaço que ela guardava para si.

— Vai adotar?

Mais risadas, mas ela seguiu o caminho todo, surpresa consigo mesma: melhor mesmo deixá-lo na chuva e continuar a rir, amanhã nem sinal. Mas hoje…

—Você vai pegar uma gripe.

Ele a olhava em silêncio, meio perplexo, nada mais da salada de palavras de antes, feliz por inteiro. De tudo o que ouvira só quando ele gritou “amar”, foi o que bastou. Estranha palavra a se perder em meio à confusão, como se se escondesse, camuflasse entre as outras para não ser ouvida.

— Vai tomar um banho.

Tentava acertar os pensamentos, justificar-se: um homem perdido, não pode ficar assim.

— Pode usar a toalha azul.

Foi ao telefone, uma busca de ajuda: polícia? bombeiros? quem sabe algum serviço médico… mas não soube.

Preparou uma cama no sofá da sala, tudo o que podia, e um sanduíche de presunto, o que tinha.

Ao deitá-lo quis sorrir, mas não pôde. As risadas, as fofocas, seu marido… mais de ano…

— Você está bem?

— Sol.

Filho de alguém…

Logo ele dormia e lá fora a chuva deixou.

— Amanhã, quem sabe?

Cabeça no travesseiro se estranhou mais uma vez: um completo estranho… e nenhum medo. Riu-se, meio envergonhada, depois ficou séria:

— Gritou “amar”.

Um completo estranho… e dormiu também.

Seis horas e o sol. Chuva lavadeira, o dia chegou claro. Um pouco de frio e nem uma vontade de se mexer, mas inspira, que gota de manhã não se deixa escapar e fome de dia se segura e mantém. Ainda um pra se saciar.

Televisão, cruz na parede e a janela aberta pra despertar. Tanto tempo sem um despertar…

— Lembra o banheiro? A toalha azul?

Ah! Chove, chuva, chove… Pinga o arco-íris que é tão raro ter olhos pra ver. Luz e água, só luz e água, e muito mais…

— Sua roupa tá seca. Em cima da mesa.

Acolhimento. Só um pouquinho… Camisa amarela, calça azul; velha e limpa. Um pouco de sal, pitada de pimenta; simplicidade tá no toque. Adoro pimenta!

— Dona, queria agradecer…

Que cozido cheiroso!

— Cê num vai embora sem comer alguma coisa, não.

Como cheira bem!

— Imagina, dona. Minha mãe tá lá do lado de lá me esperando.

Cheira desconhecido, parece que cheira um aviso…

— Mãe não cansa. Senta aí.

Cheiro oferecido, alegre.

— Que qui tem na panela?

Ela riu.

— Cê vai ver…

Eu ri também.

— … cê vai ver…

E cheiro lá pode cercar, cuidar? Esquisitice de mulher, de mãe.

— Dona, cê tem filho?

Alho, farinha, gordura… água fervendo. Dali mesmo o cheiro? Pimenta! Que cheiro é esse, afinal?

—Bem eu queria…

Cheiro do… cheiro de… cheiro de amor?

— Sol?

Ela se enterneceu, gostou.

— Fala.

Sorriu.

— No lado de lá? Tem esse cheiro?

Riu.

— Que cheiro?

Ele ficou encabulado, baixou o rosto. Mas de repente não havia mais o que esconder:

— Sol!

Ela, surpresa, enrubesceu; de sol a sol um universo. Quis não fugir, responder como fizera antes, mas o corpo, digo, a voz gaguejou. Serviu-o, sentou-se, serviu-se também, mas só quando ele pediu mais conseguiu olhá-lo:

— Qual o seu nome?

Enrubesceu ele então, e gaguejou também, baixando o olhar por fim. Ela, ternura, ardor, tocou-o:

— Está tudo bem.

E assim comeram, e aí a hora de ir. Ele mencionou um toque, que ela procurou, mas o medo a confundia demais:

— Cuide-se bem.

Céu aberto, sol alto, um passo. Tempo de sobra, nuvens poucas, dois. Só um pouquinho de carinho, acolhimento só. Mais nenhum.

—Sol, posso ficar?

Queria tanto ouvir a pergunta, tanto… E a coragem? Mas era um estranho, um completo estranho. É claro que não. E a coragem?…

— Até amanhã…

Amanhã? Sim, até amanhã… mas e os vizinhos, e seu espaço, e o marido? Amanhã… bem sabia ela que amanhã nunca é hoje, é sempre depois.

— Olha…

Não conseguiu completar, olhou o chão. Ele sorriu triste, mas mesmo triste quis a alegria para se despedir:

— Muito obrigado. De verdade mesmo.

E se foi.

Ela o olhou e, enquanto olhava, sentiu um sentimento engraçado, estranho àquela certeza de que ele deveria ir. Sentindo-o com prazer, deixou que fosse a tomando, achando divertido o jeito que vinha surgindo, meio escondido, camuflado mesmo entre tantos outros sentimentos, como se não quisesse ser percebido. Quando quase se ria conheceu e mais do que rápido escondeu-o de novo. Isso lá era hora? Tanto tempo! Isso lá é hora…

E tudo num segundo, tudo em dois ou três passos, que assim ela decidiu deixar serem quatro, cinco… mas não mais. Noutro segundo, luz exígua, verdadeira, pescou seu amor lá do fundo e deixou que lhe enchesse de coragem.

— Moço!

Os vizinhos, os vizinhos também ouviram… Mas, ora, que se danem os vizinhos!

— Ei!

Virou-se e, talvez medroso, não confiou. Pensou num adeus, num sorriso, não quis acreditar.

— Até amanhã?

Balançou a cabeça com um sorriso envergonhado e começou a voltar. Ficou feliz, muito feliz. Chegou mesmo a pensar: será que encontrei? É aqui o lado de lá? Mas em tal alegria uma ponta de tristeza: amanhã. Demora amanhã?

Ela sorriu:

— Pode ficar.

E a ponta da tristeza se quietou. Afinal, se ali não era o lado de lá, o lado de lá é ali, amanhã.

Pois fiquei, até amanhã.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010



a clinica na mídia

no dia dos pais, a Folha São Paulo publicou as desventuras em série de um pai diante da errância do filho psicótico. Mesmo sem obter resposta satisfatória, aquele pai acompanhou as peripécias de um filho, apostando num plano de consistência que comportasse uma subjetividade tão original quanto esquisita. Ele concluiu seu relato dizendo que o filho morreu por problemas cardíacos decorrente do uso de medicamentos, e alertou para o banal do fato.

no dia da Pátria, trouxe a trágica epopeia do menino Kyle Warren que começou a tomar antipsicóticos aos 18 meses. Como sua mãe estava “desesperada, sem saber o que fazer”, o psiquiatra achou que os remédios ajudariam a tratar o transtorno da criança: fortes acessos de raiva. a psicoterapia é a chave para o tratamento, mas às vezes as famílias querem uma solução rápida e a terapia pode demorar um pouco para apresentar os resultados buscados.

uma coisa que se ignora é o momento em que a loucura faz buraco no sistema, mas ela sempre se faz acompanhar da aversão à obrigação. Além disso, também é depositária do direito do sujeito de decidir por quais vias e enlaces devir.

a lição que se tira destas notícias: nunca esquecer que os antipsicóticos podem favorecer a melhora, mas que devem ser usados de modo suplementar.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Survival of the Sickest

Antes de ficar doente, eu era uma garota de dezesseis anos igual a todas as outras que conhecia. Então me mandaram para “casa”. Quer dizer, o que fizeram foi me jogar tipo num lar de idosos onde mora o meu pai, meu avô, minha avó, minha tia e o marido dela.

― Você pode ficar com o quarto que era do seu... ham, irmão, bem, você entendeu?...

“Irmão”. Quanta cara de pau. Só faltava dizerem “seu irmãozinho gêmeo”. A capacidade que esses velhos de merda têm de soltar abobrinhas deste naipe me deixa desesperada ― mentem sem nem piscar! ―, meu pai, então, é o rei do óleo de peroba facial neste asilo.

Anotação importante: PRECISO aprender a falar como eles.

― A lista de obrigações domésticas está sobre a sua mesa. Seria conveniente também que você arrumasse um trabalho.

E assim fui amavelmente introduzida pela minha avó a uma rotina de tédio e tarefas sem sentido. Parte do dia fico de criada dos dinossauros e na outra vou para uma sala cheia de idiotas onde passo horas com o corpo imobilizado numa cadeira. Dizem-me que ainda tenho muito a aprender.

Já tinham me falado que a Zumbilândia era esquisita, mas não dava para imaginar o quanto. Outra anotação: adultos são pessoas que levam uma vida bagaceira e que acham a maior graça em freqüentar espetáculos em que lhes contam que a vida deles é sem graça.

Todo mês tenho de ir fazer exames, receber tratamento e essas coisas; daí que me scaneiam um dia inteiro naquelas máquinas escrotas e sequer me dispensam do trabalho no dia seguinte. Minha tia e minha avó metem o bedelho no meu tratamento ― são tão interessadas na minha saúde! Sei bem o que querem as duas biscatas.

Dizem que nunca foi, mas não tem sido fácil ser jovem neste começo do século XXII. A vida melhorou, mas... para pior. As pessoas hoje vivem quanto querem, a tecnologia permite alongar a vida para sempre, ou quase, porque esses hipócritas ainda não conseguiram abolir o acaso. Ainda se morre e nasce por acidente.

Foi um acidente aéreo que matou meu “irmão”. Ocupo o quarto dele, durmo na cama que foi dele, uso até algumas roupas unissex que lhe pertenceram. O pouco que tenho foi dele. Diagnosticaram em mim um câncer de medula, leucemia mielóide crônica, que costuma ser bem agressiva em adolescentes. Isso eu tenho e ele nunca teve.

― Não queremos saber dos péssimos hábitos que a senhorita adquiriu na Escola, nesta casa não se fuma e acabou ― o mala sem alças do encostado que come a minha tia me dá lições de moral; na real, todos os panacas desta casa me passam sermão a respeito de tudo. Vou me candidatar ao troféu saco de ouro. Haja.

Por estranho que pareça, aproveito para fumar nos dias que vou ao hospital: é o momento em que a vigilância sobre mim fica mais frouxa. Agradeço todos os dias aos meus cromossomos 9 e 12 que trocaram pedaços entre si e passaram a produzir uma proteína que acelera a divisão celular e impede reparos no DNA. Resultado: câncer.

Mais uma para o meu caderninho de vômitos íntimos: só estou viva porque posso morrer a qualquer hora.

Os rebeldes do corpo são as células cancerosas; primeiro, elas se locomovem, as células vizinhas tentam inibi-las, mas elas continuam a se deslocar; segundo, crescem, devido a falhas nos fatores que as impediriam; terceiro, elas se dividem para sempre. No xadrez dos órgãos, câncer é quando os peões recusam o sacrifício.

Pós-humanos, estes babacas da Zumbilândia se consideram pós-humanos! Pós-de-traque é o que são. Estão sempre falando de como são incríveis, das coisas geniais que fizeram e as pessoas ma-ra-vi-lho-sas que freqüentam. Por isso é que lá na Escola nós os chamamos de mortos-vivos.

A Escola é o único lugar onde se vive à vera. Mas acaba um dia, quando fazemos 20 anos. Lá estamos vivos, cercados de gente que está acontecendo, brincando, aprendendo, amando, criando. Os cyborgues aqui fora não fazem nada disso, estão por demais intoxicados de si mesmos.

O que não nos dizem na Escola é o que vai acontecer com a maioria de nós. Vim de uma unidade especial, a H.A.C.: saí da linha de monagem do programa Human Advanced Cloning, nos auto-batizamos de hacs. Somos as cobaias desses deuses escrotos, peças de reposição dos imortais parasitas; carne de abate, bucha de canhão, refil de bundões sebosos.

― Como é possível que você não melhore nem com mais moderna terapia gênica, querida? ― fofa que nem a bruxa de João e Maria, minha vó querida.

Vovó e titia já estariam “usando” vários partes de mim se eu não tivesse caído doente; elas não se conformam. Vejo como elas me cercam nos corredores, me apalpam com os olhos quando saio do banho, fofocam entre si dizendo que estou anêmica, febril, sempre cansada. Um pé no saco delas, essa doença.

Tive um professor que me disse que somos os novos proletários. Mais uma das meias-verdades de que tanto gostam; na verdade, me sinto pior de que uma escrava, aliás, trabalho que nem uma no Manicômio Arkham que é a porra do meu “lar”.

Apoptose. A medicina dominou o envelhecimento há um bom tempo já, descobriram o “relógio do DNA”: na ponta das fitas dos cromossomos há uma série de bases repetidas, o telômero; a cada divisão, a célula perde 200 dessas bases nitrogenadas ― as “letras” do DNA ―, até que fica incapacitada de se recodificar e morre. Tiraram a tesoura da mão das Parcas.

Nota: não confie em ninguém com mais de cem.

O ser humano tem 27.000 genes, a combinação entre eles é da ordem de 3 bilhões elevado ao quadrado, o que torna a chance de repetição de um genoma uma possibilidade praticamente nula. 99,8 % do material genético é comum a todas as pessoas, mas esses 0,2 % codificam 6 milhões de diferenças cuja recombinação permite moldar indivíduos muito singulares.

Os hacs somos mais frágeis, temos maior tendência a desenvolver tumores, lesões no fígado e artrite, envelhecemos rápido, temos a imunidade bem baixa ― estamos sempre infectados por alguma coisa. Logo na infância saquei o que vinha pela frente (crianças não são burras), soube que só iriam ser poupados aqueles que fizessem alguma descoberta científica, ou realizassem uma obra de arte importante; qualquer bosta que sirva a esse mundo louco dos adultos. Eu não tinha nenhum dom especial.

Até que descobri que “sabia” ficar doente. Já tive outros tumores em células-tronco: no timo, no baço; o meu corpo não quer ficar adulto. Parece que sabe o que o aguarda. Enquanto estiver doente, estou salva. Seja como for, já me decidi: nunca vou ser como eles.