domingo, 26 de maio de 2013

O último fim de mundo do milênio (XI)



REINALDO & OSSADA 23:31

            “Nos dias de frio é melhor nem nascer,
            Nos de calor, se escolhe: é matar ou morrer,
            E assim nos tornamos brasileiros.
            Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro,
            Transformam o país inteiro num puteiro,
            Pois assim se ganha mais dinheiro.
            A tua piscina tá cheia de ratos,
            Tuas idéias...”

            Reinaldo desligou o rádio, o amigo começava a dar sinais de vida depois de horas viajando na maionese. A festinha da mãe comendo solta lá na sala, e eles ali, trancados no quarto fedendo a maconha. As perspectivas de uma comemoração de fim de ano que prestasse iam diminuindo sensivelmente.
            “Que é que cê tá fazendo aí parado, mano?”
            “Que eu tô fazendo, maluco? Tô de babá de um alemão sem noção que desabou na minha cama depois de cheirar uma lata de solvente. É isso que eu tô fazendo”.
            “Bom, chega de passar o pano. Sinto na brisa leve da noite o som das xoxotas batendo palminha pra nós...”
            “Brisa da noite! Quem tá brisado na pedra é tu, mané. Pelo andar da carruagem, a única palminha que a gente vai ter, é a palmita de la mano.”
            Deram um tapa no visual o melhor que puderam e saíram para pegar o carro da família Angelim. Na passagem pela sala, Ossada não resistiu a encher os bolsos com as empadas da mãe do Reinaldo, que ainda obrigou o filho a levar uma capa para a chuva. Saíram para a imitação de rua do Sunrise Village: o concreto liso, perfeito, no lugar do asfalto, as sebes baixas, os jardins na frente das casas sem muro; tudo ali emulava o espírito ordeiro e seguro dos subúrbios ricos da América. Uma ilha de excelência ― luxe, calme et volupté ― na megalópole desgovernada.
            “Ih, caralho, sujou!”, Ossada empurrou o amigo, quase que o derrubando, para dentro de um jardim.
            “Porra, mano, ainda não passou a lombra? Que é que foi agora, viu assombração, foi?”
            “Não tou brisando, não. São os malaquia do Monza que eu tretei lá na Giovanni... Como é que os cara entraram aqui, será que me seguiram?”
            “Vixe, agora bateu a nóia em tu, Ossada. Tamo bem na fita...”
            Mas o viking aloprado não se enganara, Metaleiro e os seus capangas estavam reunidos em volta do carro deliberando sobre alguma coisa que não podiam ouvir. O problema: o carro que eles iam pegar estava estacionado bem em frente dos meliantes. O jeito era dar um miguezinho, esperar aquela galera do mal dispersar. Chateação danada. Foram dar uma volta pelo condomínio no maior desânimo. Tudo só fazia complicar mais e mais, uma noite promissora que ia zicando forte.
            “Meu irmãozinho, você tá vendo o que eu tô vendo? Papai do céu resolveu pensar em nóis!”, Ossada acabava de surpreender as duas vans que chegavam para o chill out na casa de Zaba.
            “Mas o que... olha lá, tão todos fantasiados... A balada aí vai ser nervosa!”, Reinaldo, de queixo caído, assistia o desfile de beldades entrando na casa de Zaba.
            “Ah, mas isso não me engana, não! Sente o cheiro da mexerica, brother, as mina é profissa, e os cara têm a maior pala de michê!”.
            “Ei, ei, onde que cê tá indo, galo doido?”
            “Como assim, onde tô indo? Tamo indo, maluco, tamo indo. É o seguinte: a gente chega lá e toca a campainha, se colar, colou. O máximo que a gente se arrisca é ouvir um não.”
            “Mas a gente nem conhece a dona da casa... vamo é pagar mico”.
            “Rei, meu rei, vamo aproveitar o bonde. O cavalo tá passando arriado, mano. Quando a felicidade bate, meu irmão, apanhe”.
            “Tu não tem juízo nenhum nessa cachola chapada de drogas, mas... bora lá, perdido por dez, perdido por mil”.
            A própria dona da festa os atendeu na porta, bêbada feito gambá. Os meninos arregalaram os olhos diante da voluptuosa fêmea desvestida para matar. Reinaldo temeu que Ossada já fosse logo botando a mão na mobília, a mulher era um avião sem freios.
            “Ah, os vizinhos sempre aparecem quando rola a buena onda... vamos entrando queridos, a festa tá bombando, tem de tudo: bebida, música, putas e putos, além de traíras... tem pra todos os gostos, vão entrando!”
            “Nem precisa dizer duas vezes, dona, é nóis na fita!”
            “Boa noite, dona Zaba, com licença...”
            Entraram na balada, que, de fato, bombava. Os moços e moças contratados dançavam à vera e o clima era de deixar cair geral, exceção feita ao desenxabido Nino e sua personal amante. Sentados no canto de um sofá, conversavam pouco e em voz baixa, de cara amarrada. Reinaldo serviu-se de cerveja em um copo de plástico, já Ossada catou uma champanhe do balde e bebia direto do gargalo.
            “Rei, vamo na piscina, as mina tão dançando lá bem louca! Daqui a pouco vão começar a se jogar dentro d’água, moleque!”
            “Pô mano, não tem de comer nesta birosca,,, comi nada na minha casa por tua culpa”.
            “Tu parece uma velha, só reclama... Ói lá, oi lá, a mina abriu um spaghetti!”
            “É spacatti, cabeção, spacatti!”
            “Spaghetti, spacatti, que diferença faz? É tudo macarrão mesmo...”
            “Mano, tu não tem pena da gramática”.
            “Pena eu tenho é do cu do coelho depois que põe ovo de chocolate na Páscoa... Ih, ó lá, a dona da festa catou dois cara e tá indo pro quarto, se liga!”
            Naquele momento Zaba, abraçada em dois rapazes de corpo escultural se dirigia para o quarto do casal, não sem antes passar na frente do namorado traíra e falar um monte para os dois.
            “Tá ligando os pontinhos, ô tampa de Crush? É a nossa deixa”.
            “Deixa do quê?”
            “Faz as contas: se ela catou dois caras, é sinal que tão sobrando duas prosts só pra nós, pé de pano! Vamo arrastar as malvadas pr’algum quarto da mansão”.
            “Aquelas duas lá tão dando mole pra nós, mas uma é meio...”
            “Vamo que vamo, meu bróder, a gordinha é tua”
            “Porque eu que tenho que pegar a gordinha?”
            “Simples. Se eu pegar a fofeta, vamos parecer o casal dez: ela o zero, e eu o um!”
            “Pô, mano, essas parada sempre sobra pra mim...”


quarta-feira, 22 de maio de 2013

O último fim de mundo do milênio (X)




METALEIRO & DOUTOR JORDÃO 23:00

            O doutor Jordão toma o seu conhaque. Aguarda a chegada iminente de importantes convidados para uma festa privativa. Secreta, seria o adjetivo mais adequado para a cerimônia da qual era anfitrião naquela noite. O vulgo não tem como entender as coisas tais quais são, não concebe que há uma dialética, um rigor matemático, nos rituais do dogma. Tudo que a plebe pode conhecer da religião é kerigma, manifestação exterior, a parte mais rasa e evidente da fé.
            Ele imagina vividamente o Sumo Sacerdote (Kohen Gadol) penetrando no espaço mais sagrado do tabernáculo no Templo de Salomão ― é o único que pode fazê-lo ―, seus passos são curtos, trêmulos de emoção. Só uma vez por ano lhe é permitido adentrar o Santo dos Santos (Kodesh haKodashim) e contemplar a Arca da Aliança: no dia em que todos os pecados são perdoados, o Yom Kipur. Aos pés do sacerdote estão atadas grossas cordas.
            Este, o detalhe revelador. Reza a tradição que as cordas servem para que o pontífice seja arrastado para fora caso lhe sobrevenha um ataque de emoção ao pronunciar o Tetragrammaton, as consoantes do nome do Altíssimo (YHWH). Um estratagema para evitar a profanação. Porém, a emenda desvela o soneto: a incúria humana age sempre depois do leite derramado. Antes que pensassem nas cordas, pelo menos um dos sumos sacerdotes teve de ser resgatado por pés e mãos impuros. Elevar e conspurcar, adorar e macular, faces indissolúveis do sagrado.
            Levanta-se, vai ao salão conferir os preparativos para o ponto alto do folguedo: o concurso. O interior da mansão recende a incenso e flores, passando uma impressão de severa suntuosidade em meio ao mobiliário de mogno escuro, aos arquivos, candelabros, móveis e câmaras repletas de antigüidades, bem como dezenas de retábulos, oratórios, imagens e turíbulos. A sala principal da casa é uma reprodução da antiga capela particular dos papas na basílica de São João em Latrão, o Sancta Sanctorum dos católicos.
            O chão e o teto deste salão-capela são revestidos em mármore carrara, as paredes altas abrigam as loggias com retratos de santos e da Virgem, reproduzindo fielmente os afrescos medievais na parte alta com os martírios de São Lourenço e São Nicolau, a lapidação de Santo Estéfano e a decapitação de Santa Inês. No altar, uma antiqüíssima imagem do Redentor e réplicas das maiores relíquias cristãs: um assento da última ceia, sandálias dos apóstolos, a coroa de espinhos, o bastão que açoitou o Cristo, as cabeças de Pedro e Paulo e o prepúcio de Jesus Menino.
            Os convidados chegam. Destacados membros da Cúria metropolitana, decanos de colégios, sanatórios e irmãos de caridade, prelados de todos os níveis da hierarquia eclesiástica, chegavam encapuzados em longas vestes escuras e trocavam com o anfitrião a senha e a contra-senha da reunião.
            ― Quais são as seis questões evidenciais que determinam as ações humanas?
― Quis, quid, quomodo, ubi, quando, cur (quem, o que, como, onde, quando, por que)?
Os mais idosos são levados a um vestíbulo para retocar o figurino, enquanto os mais jovens, em sua maioria seminaristas e diáconos, sentam-se em cadeiras de espaldar alto em nogueira trabalhada. Numa inversão da pirâmide do poder, hoje serão eles os juízes de uma diversão inocente: os altos dignitários montados de drag queen se exibindo para os mais belos noviços dos seminários. O desfile das tiazonas mais lembrava um baile da saudade de Hollywood: Judy Garland, Teda Bara, Carmen Miranda, Scarlett O’Hara, Liza Minelli, Sofia Loren, Luz Del Fuego, Anita Ekberg... Um dos mancebos se levantou da sua cadeira e cobriu com um pano o crucifixo da parede ― não convinha que Ele visse aquilo.
Doutor Jordão, vestindo uma dalmática púrpura, alva e estola brancas, é chamado às pressas. Uns sujeitos estranhos estavam na porta dizendo que dali não sairiam sem falar com ele.
Mas, então, os imbecis da organizada finalmente chegaram... Que belo senso de pontualidade! Tinha marcado com eles às seis. Como é que conseguiram passar na portaria? Só entra neste condomínio quem tem o nome na... Ai, caramba, esqueci de tirar o nome deles da lista! Tanta coisa pra fazer, dá nisso... E agora? Que se danem, vou mandar os seguranças botarem eles pra correr.
― Aí mano, daqui nóis num sai enquanto o doutorzinho aí não der as cara, tá ligado? ― Marquinhos Paraná fazia o valente, sempre escudado atrás do gigante Quilo.
― É-é i-i-isso aí, me-melhor cha-cha-chamar o ba-bacana se-senão... ― Calunga metia sua colher gaguejante na discussão.
― Senão o quê?
Metaleiro avaliou a situação: em volta dos seis se aglomeravam uns quinze guarda-roupas, alguns deles já coçando o berro com a mão dentro do terno. Capitulou.
― Aí galera, vamo desacelerar, os cara tão maquinado, nem adianta se crescer pra cima desses otário... Vamo nessa!
O problema, no entanto, permanecia: como manter o ânimo da tropa depois de um dia em que nada tinha dado certo para eles, e ainda por cima não tinham grana para financiar uma farra em plena festa de fim de ano. Reuniram-se em volta do Monza. Metaleiro precisava de uma boa idéia, urgente.
― Aí Metaleiro, nóis tá aqui dentro num tá? Então, vamo dar um rolê no condomínio dos bacana, se bobear, tem alguma casa aí pra nóis fazer... ―como sempre, o Velho se saía com uma boa pedida.

domingo, 19 de maio de 2013

O último fim de mundo do milênio (IX)




ZABA & MATHEUS 22:39

            “Vô, que é que é isso?!” ― de volta ao quarto, Matheus reassume os binóculos enquanto o avô se aboleta no telescópio.
            “Caramba, caracoles, Jesus, Maria e José! Isso aí, menino, é a governanta da casa do Capeta, a Rainha de Sabá, a Messalina da Boca do Lixo, o caminho mais rápido pras chamas do inferno... que pedaçuda, essa dona!”
            “Mas, vô, que fantasia é essa que ela está usando?”, Matheus tremia comovido, ele e o avô tinham engolido às pressas o jantar com a família e corrido para o posto de observação no sótão. Não queriam perder um segundo da noitada que estava se armando na casa da vizinha.
            “Você não tem idade pra reconhecer a personagem... Matheus, a deusa da luxúria que você está vendo é uma reencarnação da Vampirella, uma heroína dos quadrinhos que era uma mistura de filha do Conde Drácula com a Barbarella”, o avô já nem escondia a gulodice no olhar, sem se aperceber, acariciava lascivo o corpo da luneta.
            “Não é mole não, essa bagaça vai cair... não é possível! São só uns fiapos de nada cobrindo os bicos dos peitos, a xoxota, e amarrados atrás...”, o menino tinha razão, a produção da vizinha era de fechar o comércio no dia das mães: botas de salto pretas, tiara dourada no cabelão preto, e duas tiras exíguas de tecido vermelho trançadas sobre o corpo sem muito compromisso de cobrir o essencial.
            “Você viu? O panaca do namorado nem se tocou do pitéu, ela botou um casaco por cima e foi pra sala, vai ver que só mostra o material à meia noite...”
            “Que será que eles estão esperando?”
            Com efeito, Zaba preparava uma surpresa para o namorado, mas Nino teria muito mais com o que se espantar além do figurino dela. Enquanto os convidados não chegavam, ela mandava uísque pra dentro como se fosse guaraná. Sem gelo, na levada do caubói. Ria feito louca desatada.
            “Meu bem, você não acha que está exagerando no combustível? Quando o povo chegar, cê já vai tá bem do breaca...”, meio contrariado, o namorado traíra aceitara se fantasiar: calça branca, sapato bicolor e medalhões de ouro ressaltando no peito aberto da camisa estampada, estava o perfeito gigolô. Sugestão dela.
            “Nem vem, Nino, não é você que vive me enchendo porque eu só trabalho? Que não aproveito a vida? Então, hoje eu tô numas de atolar o pé na jaca. Vamo festar, tchutchuco! Uhu! É hoje que o mundo acaba! Enche o teu copo, vai, tira esse bico da cara”.
            “Que fantasia é a sua? Com esse casacão nem dá pra ver...”
            “Surprise, darling, muita calma nessa hora. Tudo a seu tempo. Ah, o interfone, tem alguém chegando”, levantou-se antes que ele pudesse reagir. Abriu a porta para a personal trainer, a amante encabulada que chegava vestida de caipira de festa junina.
            “Oi amor, você é a primeira a chegar, mas não fica sem jeito, por favor. Tó, pega este uisquinho e já vai entrando no grau. Amanhã você faz um treino reforçado com o Nino pra perder as calorias da festa... Que caipirinha mais fofa que cê tá, linda! Não é mesmo, Nino?”
            “Sim, claro, ela fica muito bem de tranças...”
            “Obrigada...”
            “Hahaha, nessa trança, o fio solto sou eu!”
            “Hã?!”
            “Nada não, vou mudar a playlist. Fiquem à vontade aqui na sala. Hoje só quero música dançante.”
            Dali a pouco chegaram os outros convidados, todos de uma vez. Duas vans alugadas despejaram vinte convidados, também eles alugados: Zaba contratara garotos e garotas de programa para dar uma ‘animada’ na festa. Nino ficou boquiaberto ao ver adentrar aquela casa paginada pelo Armentano, sentarem-se nos exclusivos móveis Campana, uma camarilha de arlequins, vamps, índios de charutaria, garçonetes, enfermeiras, boxeurs, freiras, policiais, professorinhas, bombeiros, encanadores, colegiais... todos e todas, sem exceção, em trajes sumaríssimos.
            Puxou a namorada de canto, furioso: “Zaba, você quer me fazer o favor de explicar esta loucura? Que gente é essa?”
            “Ué, que gente? Ora, Nino, gente que nem eu: com dois braços, duas pernas... ou melhor, gente que nem você, que troca sexo por dinheiro. Só que eles têm uma ética, cobram um preço fixo por isso, não ficam fingindo que fazem por amor. Como você e essa vagaba dessa personal!”
            “Vô, cê tá pensando o mesmo que eu?...”
            “Acho que sim. Quer saber? Vai rolar uma baita de uma suruba lá... Dá uma trancada na porta do quarto, Matheus. Sua mãe tem a mania de entrar sem bater.”