segunda-feira, 30 de maio de 2016

o mensageiro (2)




            Sílvia Regina ajeitou um vinco imaginário na saia, a boulangerie vazia àquela hora, na única mesa ocupada a moça de óculos e tatuagens coloridas batuca no seu notebook, mira-se no reflexo da cristaleira com trumeaus dourados repleta de doces e pães de grãos selecionados, sim, ainda é uma pretty young lady com doutorado na London School of Economics, mas o atraso da amiga deixa escandalosamente claro: não tem com que preencher a tarde inteira, o dia inteiro, nem a vida inteira, porque se casou com um homem maravilhoso que a instalou numa gaiola tão cara e dourada quanto a cristaleira retrô da padaria gourmet onde espera a grande amizade da sua infância chegar, o espelho inesperado dos seus óculos escuros sobre a mesa lhe devolve a alegria de constatar uma vez mais os pequenos milagres da maquiagem Lancôme, embora nesta felicidade também se misture um medo supersticioso: a palavra esconde nas suas dobras cacofônicas tudo aquilo que deseja expelir da sua vida, melancô, melancô, melancô, e por isso tem preferido usar as marcas Shiseido e Vichy ― fato incontestável: 36 anos nas costas e ela não sabe o que fazer com tantas horas sem nada pra fazer.
            Checa mensagens no celular, a amiga avisa que ainda demora ‘uns vinte minutinhos’, pensa como seria bom morar no Rio de Janeiro como ela, perto do mar, longe do sufoco daqui, as pessoas no Rio são mais leves, mais debonair, se levam (ou fingem se levar) bem menos a sério, pensa em como a sua vida hoje se resume a chatices: achar a peça do termostato do boiler, demitir o jardineiro da casa de Itu, reunião com o veterinário do haras, com o advogado, com a fonoaudióloga da filha, o cotidiano de ‘mãetorista’ de Giovanna: escola, nutricionista, terapia, balé, endócrino, ortodontista... às vezes se pergunta se ama de verdade a filha, o marido, ou a si mesma, por que existem tantas faces em mim, tantos lados na verdade?, mas logo entra outra linha de pensamentos, as mensagens vão pipocando na tela: ‘Miga, qta sdd!! Bora skiar prox férias?? #PartiuVail’, não sabe como explicar a ela que nunca mais poderão esquiar, viajar, nem sequer jantar juntas com as respectivas famílias porque o marido da amiga aproveita qualquer descuido pra se atirar sobre ela, Sílvia não pode, simplesmente não consegue contar, prefere se afastar, fugir, deixar a distância de 400 km esfriar a amizade, esta é a sua vida: feita de grandes atropelos e pequenas fugas.
            “Sil, desculpa a demora, peguei um congestionamento monstro. Pelo menos de Uber sai mais barato. Imagina, fiquei um tempão parada por causa de uma dessas escolas invadidas, tinha polícia, gás lacrimogênio, um horror!”
            “Vá entender essa gente, precisam tanto de escola e ficam fazendo greve, ocupação... Bom te ver, linda, quanto tempo?, um ano sem nos vermos.”
            “Olha, não aceito mais desculpas: no Finados vocês vão ficar com a gente lá na Barra, morar no Rio é dez, mas ficar longe da melhor amiga ninguém merece. A Isabella não pára de perguntar da Jojô, sabia?”
            “É mesmo, as filhas continuaram a nossa amizade. Umas fofas. Como está a Isa?, sempre foi tão inteligente...”, Sílvia precisava urgentemente mudar o assunto.
            “Hmm, inteligente até demais, tá me dando um trabalho do cão! Você acredita que agora ela vive me perguntando coisas do tipo: ‘Mãe, por que existem pobres?’, ou pior ainda: ela descobriu que o condomínio que o pai construiu, o Ilha Pura, expulsou umas duas três famílias, ai, virou um inferno...”
            “Acho que é da idade, vem das amigas da escola uma parte. A Jojô deu de não comer mais carne, só aceita peixe. Dá pra acreditar, você que a conhece?”
            “Sério?! Que coincidência, a Isa também passou a recusar carne, e você lembra como ela era alucinada por lingüiça, né? Hoje faz cara de nojo. E quer saber da maior? Agora ela tem um amiguinho imaginário, o tal de Aylan. No começo até achei que era algum tarado da internet, dei uma vasculhada no Face e no celular dela, mas não vinha daí.”
            “Não é possível, a Jojô também me falou desse amigo, o Allan, mas nem dei muita bola porque achei que era um menino da escola... Mas agora que você falou, ela também começou a perguntar coisas estranhas sobre refugiados, crianças morrendo de fome e frio...”
            “Sílvia, você acha possível que as nossas filhas estejam se falando e inventando essas histórias?”
            “Pode ser, amiga, mas também fucei nas coisas dela e não achei nada nos históricos que indique...”
            “O que a gente está fazendo de errado, Sil? Essas meninas têm do bom e do melhor, criadas no leite de pêra... e depois, só têm oito anos!”
            “Bom, eu corri com a Jojô pra terapia, vai ver é algum trauma.”
            “Bom, não dá pra ter trauma de infância na infância! Além do que, toda a infância é traumática de algum jeito.”
            “Lembro de você me falando que a Isa tomava Concerta, será o caso...?”



domingo, 22 de maio de 2016

o mensageiro (1)




            “Oi, achei que você não vinha”.
            “Por quê? Eu sempre venho”.
            “Allan, você só aparece quando os meus pais não estão aqui...”.
            “É porque tenho medo”.
            “Você tem medo de todo mundo”, Giovanna ajeitou os lençóis e deitou de lado, voltada pra ele.
            “A minha vida tem duas partes: uma que eu vivia num lugar pequeno e todos eram amigos, e outra onde o mundo é um mar sem fim e todos me tratam mal”.
            “As metades pra mim são misturadas: tem um lado bom e um lado ruim em casa e na escola”.
            “Eu ia à escola antigamente... quando vivia na minha terra”.
            “Agora você não estuda mais? Eu queria não ter que ir pra escola...”.
            “Melhor ter pra onde ir, Giovanna, ficar preso é muito pior”.
            “Você é a única pessoa que me chama assim, os outros todos me chamam de Jojô”.
            “Posso te chamar de Jojô, se você quiser”.
            “Não precisa, gosto do jeito que você fala meu nome. Se você está preso, como consegue sair pra me ver?”.
            “É o único lugar que posso ir além da prisão”.
            “Já é melhor que nada”.
            “Qualquer lugar é melhor do que este buraco onde me largaram. As pessoas deviam ser felizes aqui fora”.
            “Ninguém pode ser muito feliz por aqui, alguém vem sempre te zoar, dizer que é proibido, manda tirar a mão disto e daquilo”.
            “Eu nunca te peço nada, vai ver é por isso que...”.
            “Por isso que, o quê...? Allan você tem que terminar o que diz. Ou então, conta pra mim como é que são as coisas onde você está agora”.
            “Não há nada pra fazer, nunca. A comida é ruim. Às vezes a gente pode jogar bola, mas faz muito frio. Sabe, parece que eu tenho uma doença bem grave”.
            “Você está doente?”, Giovanna sentou-se na cama e passou a examiná-lo atentamente.
            “Não é uma doença de verdade, mas as pessoas não querem mais chegar perto dos presos. Como se a gente fosse pegar neles uma coisa muito feia”.
            “Você tá dizendo que ninguém tem pena do que te aconteceu?”
            “Tô dizendo que as pessoas fogem daquilo que não querem lembrar, acho que quando me vêem só enxergam a pobreza, e também a morte”.
            “É verdade. Todo mundo foge disso, a Ceiça, que trabalha aqui em casa, se benze toda vez que ouve falar em morte”.
            “Eu só quero viver, poder voltar pra minha casa. O que mais queria era começar tudo de novo”, sentou-se na cadeira ao lado da cama dela.
            “Bom, pelo menos você sabe quando tudo começou”.
            “Sim, eu sei quando este inferno começou, mas... não tenho a certeza de que ele vai acabar”.
            “Vai terminar uma hora, até o azar cansa de azarar. Eu acho que quando eu for grande tudo vai ser diferente”.
            “Giovanna, é tão bom falar com você! O mundo fica menos assustador quando estou aqui”.

            “Obrigada. Você é legal, Allan, só é diferente das outras pessoas. Uma hora vão entender isso, não acha?”.



domingo, 1 de maio de 2016

a paisagem impraticável



urge viver
inventar
minutos audaciosos
no encontro das esquinas
qualquer coisa pode acontecer
nestes idos
de argila e sangue

palavras breves são duras de achar
a língua tropeça orelhas erram
temendo a primavera
formas gravadas
e descartadas

em tudo a mesma ausência
a chuva
a multidão
o amor ao torturador
cresce na tarde
como o cimento

a carroça atolada empurra o cavalo para baixo
até que a pedra soletra um nome
designando ninguém
um alguém
abolido

línguas de fogo desenham teu rosto
sem base política
a rua é um campo de papoulas
infladas
demônios
peixes suicidas

ridículos e adoráveis
caçamos sombras saltitantes
de manhã ao meio dia
vozes tecem discursos que confirmam
e deleitam
pois o touro vira bife e o amor
conveniência
é mais fácil morrer
do que crescer como os esquecidos

mas há palavras de ordem
janelas quebradas
lançando a canção livremente no ar
e muitas e muitas

lantejoulas