sábado, 18 de junho de 2016

o mensageiro (final)





“Ataques a bomba simultâneos em escolas do Rio de Janeiro e São Paulo deixam 20 mortos e 16 feridos. O horário estimado das explosões (7:15, horário de Brasília), foi o do início das aulas em duas escolas privadas, na zona Oeste paulistana, e na zona Sul carioca. É o maior massacre de estudantes já ocorrido no país, segundo o governador do Rio há 5 feridos em estado grave, que se somam aos 3 feridos em estado crítico informados pelas autoridades de São Paulo. A maioria das vítimas são crianças de 8 a 10 anos do 3º ano do ensino fundamental, além de 2 professoras, 3 assistentes de ensino e uma babá que se encontravam nas salas na hora do ataque. Em comunicado conjunto, o Diretor Geral da Polícia Federal e o Chefe Adjunto da Abin (agência brasileira de inteligência), admitiram haver suspeitas de que duas meninas, que estão entre as vítimas fatais, teriam introduzido os explosivos nas escolas dentro das mochilas, mas não confirmaram a versão de que elas se conheciam, nem as suspeitas de haverem mantido contato recente com estrangeiros, segundo afirmaram na nota divulgada há pouco, a hipótese de atentado terrorista não está descartada por se tratar de escolas bilíngües onde estudam filhos de diplomatas, finalizam afirmando que todas as possibilidades estão na mesa neste momento. Houve princípio de pânico nas ruas do entorno das explosões, seguiram-se bloqueios da polícia nas principais vias, com os prefeitos de ambas as capitais declarando estado de emergência. Neste momento o trânsito registra novos recordes para o período nas duas cidades, vêem-se muitas pessoas abandonando os veículos na rua, descendo dos coletivos parados no congestionamento e voltando a pé para suas casas. A qualquer momento é aguardado um pronunciamento do presidente interino Michel Temer, e também da presidente afastada Dilma Rousseff.”



domingo, 12 de junho de 2016

o mensageiro (4)




Com ar de pouco convencida a moça se afastou lentamente carregando o vestido dobrado para o interior da loja, ficou no ar o risinho insolente de quando a viu entrando cheia de sacolas, o sorriso do gato invisível, lembrou do entusiasmo que essa história provocou em Giovanna na época, a filha é uma criança encantadora e problemática, questionadora, como ela mesma foi antes de se tornar a pessoa viciada em coisas estranhas de hoje, depois de assistir e ouvir todas as versões de Alice milhões de vezes, a menina, do alto de incompletos quatro anos de idade, lhe disse que não queria ser como ela quando crescesse, ‘Por que, Jojô?’, ‘Porque você não consegue mais voltar pra lá’, e no entanto tudo que ela faz é voltar, voltar e trocar roupas que acabou de comprar, roupas e acessórios que nunca vai usar: na verdade coleciona os celofanes e etiquetas das suas lojas preferidas, nas trocas, as vendedoras invariavelmente embrulham e etiquetam o produto de novo, ela desenvolveu uma técnica apurada pra descolar os adesivos, realoca-os em pastas junto aos recortes dos celofanes com marca d’água, os álbuns perfeitamente organizados atulhando seu closet pra desespero do marido, Sílvia Regina sabe que as suas relações com as vendedoras de artigos de luxo seguem um padrão peculiar, uma dinâmica predeterminada: paixão, ascensão, declínio e rompimento abrupto, num período que varia de semanas a uns pares de meses, a analista lhe disse que o envolvimento com essas moças representa a busca daquilo que sente perdido pra sempre: juventude e pressa, e, realmente, ela não tem pressa pra mais nada, desapareceu a lebre maluca e atrasada da sua vida, sobrou apenas o ritmo irreal do chá das cinco na Montanha Mágica, aliás, conhece Davos como a palma da mão, não que haja muito a conhecer ali, nem em Aspen, Ibiza, Monte Carlo, Dubai, Chamonix, Cap Ferrat, St. Bartz, San Marino, Montblanc, cada círculo exclusivo que consegue galgar, em cada festa, nenhum lugar ou pessoa importante que lhe são apresentados conseguem mais causar a mínima comoção.
O celular toca.
“Oi, querida, viu o meu recado?”
“Ai, Sílvia, li sim, e é sobre isso que preciso te falar... ai, meu santo, tô bem surtada. A Isabella também recebeu um pacote hoje de manhã, tem uma equipe de segurança aqui em casa, tá uma loucura!”
“Acalma, respira, você não acha que estamos um pouco over? Deve ser só uma brincadeira de meninas que estão com saudade, uma enviou pra outra e...”
“Sílvia Regina, acorda pra vida, sai da negação. Então por que as duas enganaram as babás e foram pegar as encomendas sozinhas na portaria? E por que depois não havia pacote, embrulho, nem nada com elas? Meninas de oito anos não recebem encomendas DHL!”
“Ok, tudo bem, é estranho, mas a gente deu uma busca nas coisas todas da Jojô, na casa toda, nos jardins do condomínio, e não achamos nada.”
“Tudo bem, pra você?! Pois deixa eu te contar uma novidade: os detetives descobriram que havia mesmo uma encomenda internacional pra Isa, de um tal Aylan Kurdi, que mora num país sei lá o quê, tá bom?”
“Agora você me assustou, o esquisito é que as meninas só ficam repetindo que era só uma mensagem. Vou ter que avisar o pai...”
“Mas como assim, teu marido ainda não está sabendo? Sil, não dá pra ficar de barata-voa, meu bem. Não sei se é um pedófilo, mafioso ou terrorista, mas coisa boa não deve ser.”
“Sabe como o meu marido é ocupado, né? Ele detesta ser interrompido em reunião.”
“Você vem dizer isso pra mim? O Caio Henrique vive grudado no prefeito mas teve que participar imediatamente, não tem mole pra ninguém nestas horas.”
Desligaram, ela pegou o embrulho das mãos da moça da loja e saiu sem se despedir, experimentava uma espécie de enlevo que já desacostumara, descia escadas e atravessava galerias em êxtase, uma coisa importante e urgente pra resolver, o marido teria de lhe conceder algum pedaço da sua escassa paciência com as miudezas das suas preocupações, afinal, aquela era uma situação de máxima importância, exatamente o que já não havia mais na sua vida: o perigo de algo real acontecer, algo novo e imprevisto, sozinha no elevador do shopping center, mirava-se nos reflexos em abismo das paredes espelhadas enfileirando uma cauda longa de Sílvias carregando sacolas e chorando, imagens encolhendo ao infinito, lá onde uma Sílvia minúscula já quase não sente o peso inexplicável do mundo.



domingo, 5 de junho de 2016

o mensageiro (3)




            “Como você sabe que o inferno existe?”, sentada na beira da cama, Giovanna não estava disposta a aceitar afirmações peremptórias, muito menos verdades subentendidas.
            “Simples, eu estive nele”.
            “Então me conta como é lá, tem casas, escritórios, árvores, monstros?”
            “Nada disso. É um barco.”
            “Como assim, Allan, um barco?”
            “Apenas um barco, e o mar: imenso, vazio, perigoso”, o menino remexia as mãos hesitando prosseguir no rumo da conversa.
            “Não estou entendendo, isso não se parece com o que me contaram...”
            “Aquilo não se parece com nada. Um esqueleto velho de madeira podre, todo enferrujado, conduzido por piratas que sabem que a maioria dos passageiros vai morrer na travessia.”
            “Um barco de piratas? Não sabia que piratas ainda existiam.”
            “Existem sim, são cruéis e cobram caro dos que precisam fugir da guerra. Minha mãe entregou a única jóia de ouro que ganhou no casamento pra gente ir da ilha de Kos ao porto de Bodrum na Turquia. Era tudo que nos restava, mas era pouco para aqueles homens, não tínhamos dinheiro pra dar a eles, por isso meus pais viajaram no porão e morreram sufocados, meus irmãos mais velhos iam no compartimento do meio, junto com o óleo que queimou a pele deles pra sempre, nós crianças viajávamos no convés, um lugar perigoso onde o vento e as ondas a toda hora derrubavam alguém pra fora do barco. Não havia salva-vidas nem bóias pra salvar os que caíam, e também ninguém se importava.”
            “Que horror! Nem dá pra acreditar que tem tanta malvadeza no mundo!”, os olhos de Giovanna eram duas órbitas congeladas na moldura dos cílios longos.
            “Mas foi assim. O navio todo rangia balançando, ameaçando se desfazer a cada onda, os gritos, as rezas, as rajadas de espuma salgada, tudo se tingia de uma cor escura mesmo embaixo do sol, os sentimentos rodopiavam dentro de mim feito ventos loucos, porque as coisas aconteciam sem nenhum sentido ou controle como se estivesse dentro de um sonho ruim, pra esquecer a fome repassava na cabeça as lembranças boas da minha vida e as cenas de um filme antigo, um senhor perdeu o juízo e se atirou no mar durante a tempestade, meu desespero era um choro silencioso que ninguém escutava, nem mesmo eu podia escutar.”
            “Allan... você perdeu seus pais?!”, grossas lágrimas quentes desciam pelo rosto de heroína de mangá da garota.
            “Giovanna, desculpa, não queria fazer você chorar. Acontece que esta é a minha história, não tenho onde me esconder dela.”
            “Tô bem, não se preocupe. Agora entendo porque você tá sempre triste e com medo das pessoas. Prefiro quando me dizem a verdade.”
            “Sei que a minha vida machuca, mas não queria te machucar. É que... só você tem a coragem de me ouvir, e eu tenho essa necessidade de contar, de dizer pra todos que tudo isso foi real.”
            “Minha mãe falou que você não existe, que é invenção da minha cabeça. Ela falou pra eu pensar que sou uma linda princesa que mora num lindo castelo, e assim vou conseguir dormir na hora que tem de dormir. Disse bem assim: ‘O Allan é só um amigo imaginário, daqui a pouco ele some’.”
            “Às vezes também penso que não sou de verdade. Não existe mais nada do que eu vivi, só esta prisão onde me jogaram. Perdi o lugar no mundo, ninguém quer receber o meu povo”.
            “Deu na televisão o nome da cidade que você morava.”
            “Ah, sim, é o noticiário das catástrofes nos lugares que só existem no mapa, a dor das pessoas imaginárias.”
            “Você sente saudade da sua casa?”
“Minha casa?... Seria aquela cidade onde as bombas caíam de surpresa enquanto dormíamos, ou então quando estávamos reunidos nas festas? Pedaços: de lojas e ruas, cachorros, carros abandonados, brinquedos deixados pra trás. Ruínas e pó.”
            “Tem alguma coisa que eu posso te ajudar, Allan?”
            “Tem sim, me dá seu endereço, vou te enviar uma encomenda. Provar que existo de verdade.”
            “E o que é que você vai me mandar?”
“Uma mensagem.”