domingo, 1 de julho de 2012

Rosa faz anos (parte 3)



Está na febre de andar. O café forte lhe caiu bem, certamente melhor do que cairia a água sanitária. Sente correr o sangue do corpo e da alma, a euforia dos condenados libertos na hora fatal por uma clemência do rei. Em todo caso teria de sair: na despensa faltavam ovos, farinha de trigo e fermento para o bolo. Resolve evitar a mercearia próxima, a da bruaca, mas neste dia nevoento não se importa muito de dar uma volta maior; tem horas de solidão a preencher antes da hora de ir buscar o menino. Vá alguém saber a quantas da noite o marido volta, a filha, esquece, não vem nem para visitar o próprio filho; mudou de mala e cuia para o muquifo do seu futuro ex, o produtor-funkeiro-DJ. Recebe um SMS no celular, o caçula, pedindo dinheiro. Avisa que vem amanhã pegar ― menos um que lembrou. Só o Neno lhe ligou de manhãzinha.
            O dia até que estaria lindo, se não estivesse tão fechado. Vai cantar um parabéns sozinha com o neto, deixá-lo soprar as velinhas e dormir antes do marido chegar. É uma vida simples e bela, a sua. Rosa só precisa aprender a gostar dela. Só tem que aprender a gostar das ruas de terra deste bairro que se espraia num mar de morros a perder de vista, com as mesmas casas sem reboco, os mesmos moleques empinando pipa, as mesmas ladeiras crivadas de bares, borracheiros, templos e salões de beleza; talvez necessite apenas de um esforço extra para achar graça nesta gambiarra de lugar cortado por uma estradinha de mão dupla onde circulam os ônibus de linha.
            Uma van passa no pinote doido assustando os passantes; um galo canta nos arredores, e ela não consegue se impedir de imaginar uma solução limpa: atropelamento e fuga, os parentes sendo avisados pelo hospital, enterro em caixão fechado ― evitaria assim passar adiante o estigma da sua dor, a família não ficaria marcada. Golpe de fineza e habilidade supremas: imitar as artes inimitáveis do acaso. Uma pancada seca, e pronto!, já não vai mais acordar todos os dias com o peito pesando feito chumbo, movendo-se feito um fantoche, tateando no vazio insípido da sua vida incolor.
            No momento, porém, esse vazio recobra um ligeiro tom de cinza, como o do dia. Rosa caminha de um passo vivo e acelerado, ainda quer alcançar a liberdade, conserva intacta a audácia do jogo, mas logo se dá conta de que o filho precisa muito dela, ainda mais que o marido, e que esta, sim, é uma verdadeira razão para continuar vivendo e para dizer a si mesma que continuaria viva, muito viva. Se ainda houver quem precise dela, ela dirá ao povo que fica.
            Reparou em um homem que cambaleava poucos passos à sua frente; apesar de ter parado de chover, ele continuava com a cabeça embuçada pelo capuz da gandola e as mãos enterradas nos bolsos. A uma hora dessas e já tomou tinguá pra uma semana, pensou. De repente o homem executou uma trôpega meia volta e veio na direção dela. Então o reconheceu e se tranqüilizou, era um pau-d´água da quebrada, já o havia visto muitas vezes; vivia zanzando pelo bairro, falando sozinho e chorando pelos cantos dos bares.
            ― Boa noite ― disse o homem, com graciosa e surpreendente amabilidade.
            ― Quer dizer, bom dia ― ela respondeu.
            ― E quem Deus me manda avisar? Logo a senhora que sabe muito bem que só existe a noite, a escuridão. Durante o dia, só acontece uma única história debaixo do sol. E todos a repetem. Acha que eu sou um bêbado, mas também precisa se afastar de uma garrafa lá na sua cozinha, não é? Tome, basta um gole se quiser morrer de uma vez e para sempre ― sem mais palavra, ele sacou do bolso uma garrafada de pinga curtida em cobra com rolha de lacre, e a colocou no bolso do casaco da atônita aniversariante. Em seguida, embiocou por uma ruazinha lateral, sumindo depois de atravessar a pinguela sobre o córrego de esgoto.
            Voltou para casa sem comprar os ingredientes. Nem tentou seguir o vagabundo, estava por demais atarantada com o episódio todo, com os estranhos modos e os termos com que se dirigiu a ela. Sentou-se novamente à mesa da cozinha. Tirou a botelha com o líquido amarelento do bolso e a examinou; o cheiro era de cana, a cobra lá dentro, uma coral. Logo a alegria de estar sozinha passou e deu lugar na indecisa Rosa ao sentimento contrário, um profundo abatimento por aquela terrível solidão que a casa oferecia. A flauta encantadora tocando ao longe.
            O céu estava esbranquiçado, invadido por um verniz opaco, assim como em sua memória uma brancura opaca ia apagando a lembrança das sensações vividas na conversa de há pouco com o boêmio. Decide testar a sorte: se for só pinga, talvez clareie as idéias, como dizem que o álcool faz com os produtos da cabeça; se for veneno, vai viajar para aquele outro mundo, longínquo e sedutor, no qual vivem o filho do carteiro e o pintor suicida, que é apaixonado por ela.

Um comentário:

angela disse...

Oh meu! Triste demais.