domingo, 22 de julho de 2012

A mulher de algodão (epílogo)


Vida que segue. Irma tomou o ônibus de volta para o litoral; viagem que transcorreu debaixo de um céu azul sem nuvens, e mudou radicalmente na descida da serra para um fim de tarde chuvoso. Ela ainda não tem como saber, mas cada palavra da médium será confirmada ponto por ponto nas semanas seguintes. Ninguém a espera na rodoviária, o marido está fora da cidade a trabalho. Impossível pegar uma condução: os pontos dos ônibus de linha estão cheios de gente voltando para casa. Resolve ir de táxi.
Então, acontece a única coisa não prevista pela benzedeira do algodão; um dos molambos de gente da calçada se levanta e vem na sua direção.
― Irma, você ainda se lembra de mim? ― um rapaz magérrimo, um ‘nóia’, desses que vagam como zumbis pelas ruas. Mãos e cintura limpas, não está armado.
A moça encara o mendigo dentro dos olhos, o susto dando lugar pouco a pouco ao reconhecimento. ― Lembro sim, você... nós fomos vizinhos há muito tempo, como cê tá mudado...
― Irma, a gente namorou, você esqueceu? Eu fui seu primeiro namorado, e você, o meu primeiro amor...
― Verdade! Mas isso foi há muito tempo; eu era outra pessoa, e você, bem, era uma pessoa...
― Você pode me ajudar?, tem uns cara aí que me prometeram... querem me apagar ― o rapaz balançava os braços, como se desse corda em si mesmo para falar, agarrado a um cobertor exíguo que mal lhe cobria o tronco ossudo. O olhar parecia vagar a uma distância infinita dali.
Deu-lhe dez reais.
Tirou uma licença do serviço na prefeitura, onde trabalhava como técnica de informática. Precisava de tempo livre. Disse para o marido que ia visitar parentes no interior ― o que era rigorosamente verdade ―, só não lhe contou que ia conversar com a mulher que a pôs no mundo pela segunda vez em vinte e seis anos.
Potirendaba, cidadezinha com quinze mil habitantes na região de São José do Rio Preto. Todos lá conhecem a mãe dela, uma filha da elite local que mora numa casa arruinada, infestada por capim-gordura e gatos recolhidos da rua. Os vizinhos deixam-lhe pratos de comida na varanda que ela divide com os bichanos; no fim do dia, passa em um dos dois restaurantes da cidade e recolhe um marmitex para passar a noite trancada e falando alto sozinha.
― O nome dele está anotado nesse papel. Tive medo de um dia esquecer. Pode ter mudado, pode nem ser o nome certo, não sei; era um belo de um safado. Quando soube que as minhas irmãs tinham conseguido me deserdar, caiu no mundo.
Deu-lhe umas roupas velhas que tinha e seguiu caminho. Usavam praticamente o mesmo número de roupa. Percorreu diversas cidades do estado no encalço do pai, em todos os lugares, a mesma história: o sujeito vinha do nada, se amasiava com uma dona rica do local e ficava uns tempos desfrutando do bem bom. Depois, sumia de novo. Trabalho de carteira assinada parecia contra os seus princípios, dava expediente comercial em boteco. Descobriu nestas andanças tios e primos distantes, e mesmo algumas irmãs e irmãos seus, ou metade disso. Nenhum deles tinha pistas ou queria saber do fujão. Era tal e qual o chopim de que Eldenezir falara, espalhando filhos e sofrimento por onde passava. Até que perdeu a pista.
Foi quando se lembrou de uma colega de trabalho que havia passado num concurso; a moça estava lotada na Justiça Estadual e talvez pudesse acessar algum banco de dados de processos criminais. Uma hora um malaco desses dá uma falseta, não é possível ser liso sempre, pensou. As suspeitas da mãe louca (mas nem tanto) eram corretas, ele evitava usar o nome de batismo; mas, numa única vez, lavrou uma escritura com os documentos originais. Havia engabelado uma viúva dona de uma distribuidora de bebidas em Mogi das Cruzes, vendeu um terreno da coitada, e aí... fumaça. Recebeu pena mínima, o crime prescrevera há cinco anos. O registro, no entanto, ficou: estelionato.
A partir daí, o problema mudou dramaticamente de figura: do fio de informação que obteve de testemunhas da época puxou uma linha que a levava de volta para Santos, ou melhor, para a cidade em que morava a irmã dele que lhe lavava as roupas até hoje. E onde, como de costume, também tinha deixado uma cria para trás ― um filho que vinha a ser ninguém menos que seu meio-irmão e legítimo esposo! A identidade verdadeira do seu pai de mentira era uma verdadeira bomba. Uma bomba atômica capaz de arrasar toda a sua vida instantaneamente; um por um, Irma via comprometidos os alicerces daquilo por que mais lutara, a tão sonhada vida “normal”: um bom homem, filhos, casa própria, carro.
Por sorte, a ex-colega do tribunal não tinha como saber destes desdobramentos; ninguém poderia saber, esta a certeza solitária que lhe restara. O que fazer? Estava num mato sem cachorro. Toda a conversa com Eldenezir encaixava nos fatos, incluindo as materializações: o boneco mais moreno, seu marido; a boneca loira, ela. Unidos pelo pé. Horrorizada, compreendia subitamente a força animal que a arrastara para os braços daquele homem, em tudo oposto ao que escolheu para marido. O pior era pensar que não houve justiça dos homens, infernal ou divina capaz de interromper a trajetória daquele ser monstruoso. Como é que os céus tinham permitido tamanha barbaridade?
Recordou do sonho que tivera em Votuporanga e, de repente, a solução lhe veio inteira, simples, clara como água minando da pedra. Não ia deixar aquele vagabundo estragar tudo, não de novo. Comprou uma arma, o passo mais simples: tresoitão com numeração raspada. Achou o ex-namorado nas imediações da rodoviária, levou-lhe uma pedra. Esperou sentada na guia que ele a fumasse. Fez-lhe a proposta indecente: ganhava outra depois de um servicinho. Prometeu que pagaria a dívida dele com os cabeças: os bandidos não iam mais apagá-lo, e assim aquele burro poderia continuar atrás da única cenoura que ainda o fazia puxar a carroça. O rapaz desempenhou: abordou o malandro numa viela quando saía do bar, dois tiros no peito e um na cabeça. Chegou já sem vida ao PS do Ana Costa.
Fim da linha para o Zé Pilintra. O revólver, atirou-o do alto de uma ribanceira perto do rio Diana. Adeus papai, adeus sogrão, descanse na paz dos vermes da terra. Bem feitas as contas, era uma digna filha daquele filho da puta, com a diferença de que não deixaria rabo atrás de si. Pagou o trafica para ‘descer’ o nóia; menos um no mundo. Quem liga? Contabilizou seus três crimes: o aborto, o assassinato do pai e o do zumbi; concluiu que só lhe pesava mesmo o primeiro, abominação que carregaria pelo resto dos seus dias, uma alma pela qual rezava todas as noites. No mais, abriria mão de ter filhos, quem sabe convencia o marido a adotar ― por que não? Mas nada, nem ninguém, a faria desistir da paixão da sua vida. É muito difícil achar o amor verdadeiro hoje em dia.
Quando o marido chegou de noite, encontrou-a apertando um chumaço de algodão ensangüentado sobre o polegar.
― Que foi isso?
― Um corte de nada. A carne... estava fazendo a sua sopa, meu bem.