terça-feira, 17 de julho de 2012

A mulher de algodão (parte 2)



            Na manhã seguinte chegou cedo ao consultório da benzedeira. Ficou espantada com a quantidade de gente que àquelas horas moças já estava sentada nas cadeiras de plástico branco do corredor; uma espessa maioria de mulheres e idosos, algumas das pessoas com o aspecto muito doente. Fazer o quê? Outra longa espera que enfrentaria dando a volta no rosário, fazendo palavras cruzadas e sudoku. A paciência é a virtude dos fortes, dizia a frase emoldurada na parede.
            ― Sou de Nova Granada, reduto de colonização espanhola no interior de São Paulo, meu pai, franquista e católico fervoroso, no princípio, achou que eu estava mentindo quando comecei a relatar minhas primeiras visões aos quatro anos de idade. Fazia-me ajoelhar no milho para que a dor arrancasse a verdade da boca e a heresia do coração. Não adiantou: continuei a ver fumaça branca quando vinham os espíritos de luz, e fumaça preta quando baixavam os eguns trevosos. Não sendo mentira, então estava louca. Fui levada aos médicos da região, e até da capital, um depois do outro, até que, no último, veio a palavra certa: o meu caso não estava na seara da ciência, era um dom. Começaram a me chamar para ir benzer a casa das pessoas; eu ia lá e começava uma oração, enquanto rezava, o meu guia de transporte, Santo Antônio, dizia no meu ouvido: “Aqui está um trabalho de alta magia enterrado”. Os donos da casa faziam um buraco onde eu indicava, iam furando, furando, até que achavam o quebrante enterrado; de tudo vi sair da terra-mãe: tarântula atada com categute a boneco de cera, caveira com nome gravado, calcinhas negras, até um sapo pregado em cruz com foto costurada na boca... Virgem Santa, o que é a maldade humana! As materializações no algodão vieram bem depois... sabe, no começo não cobrava nada, mas isso não deu pé, passei miséria medonha, madrasta, caí na rua da amargura... Não tinha dinheiro nem pra cagar na rodoviária. Agora, minha filha, me diga: por que estou lhe contando isso tudo? Você faz idéia?
― É... não, quer dizer, acho que é porque eu nunca tinha visto... quer dizer, vindo antes, né? ― Irma não podia estar mais desconcertada com a conversa; um não sei quê no rosto alongado, nos olhinhos miúdos daquela senhora pesadamente perfumada, de sobrancelhas delineadas, cílios postiços e unhas com francesinha pink, jogando búzios enquanto falava, não batia com a líder espiritual do dia anterior.
― Então, criança, tenho setenta e um anos. Parece? Pois bem, estou há muito tempo no ramo da vidência para não ver que você está metida numa pua das grossas. Meu travesseiro é a lista telefônica, meu anjo, sei o número de todo mundo; por exemplo, aquele que tu tirou ontem na fila: não é bom, os algarismos se fecham, inquizilam. Abre o saco, Judas, despeja.
― Hmm, bem, acho que entendi o significado do que veio pra mim ontem, digo, os bonecos de bebê... (suspira) É que eu estou tentando engravidar e perdi uma criança, ainda não tinha nem dois meses...
― Certo. E o outro boneco que veio ligado nesse, é o quê?
― Um... um aborto que eu fiz, foi um erro tão grande na minha vida... ― ela não conseguiu segurar mais nada, abriu a torneira e chorou feito uma bezerra desmamada. ― Ontem sonhei... sonhei um sonho repetido que tinha de menina: eu entrava no banheiro de casa e lá havia um buraco na parede... (suspiro) pelo buraco, entravam uns homens estranhos que levavam meu pai embora; mas não era o pai que me criou, era o outro, o que nunca conheci... e eu não me sentia triste, pensava, melhor levarem ele mesmo.
― Ei, ei, calma, menina. Sua alma é tão nova e já apanhou tanto... não caia nesse angu de caroço; um erro não perde você se tiver fé e se apegar no caminho do bem, das boas obras. Estou vendo também um pássaro chopim rondando você, sabe?, aquele que bota ovo nos ninhos dos outros.
― É que... é que... ai, Jesus Misericordioso há de me perdoar, esse aborto eu fiz grávida do pai de meu marido... sniff, meu sogro é um homem muito do sem vergonha, vive às custas de uma mulher, enquanto passa o rodo em todas as amigas dela, é o capeta! Foi um momento de fraqueza, lhe juro, aquele filho de rapariga é um baita de um papo-doce, caí como uma troncha... mas, a real é que amo o meu marido, ele é um homem como nunca encontrei nem encontrarei na vida, amor verdadeiro... não sei o que me deu...
― Veja bem, quando há macho femeeiro e comedor na história, aparece o Zé Pilintra, em vez de pássaro-cuco. Entenda, não é que isso que você tá me contando já não seja grave o bastante, mas tem algo que não ‘orna’ nesse bololô: quando o caso é de aborto, materializa boneco de bebê; os seus não são. Além disso, dá pra ver que um é homem, mais escurinho, e o outro mulher, loira como você. Outra coisa: estavam amarrados pelo pé...
― Não sei, já não sei de mais nada, nada... tô perdidinha. Não será melhor viver feliz na ignorância? Tem coisas que a gente descobre, e depois já não é mais a mesma... viramos outra pessoa, uma pessoa com uma verdade, e a verdade cria novas solidões.
― Pera lá, pera lá, os meus guias de cabeça tão aqui segredando que você é adotada. Procede?
― Sou sim, meus pais nunca esconderam. Quando fiz dezesseis anos quis... fui lá conhecer minha mãe biológica, fui lá conversar com ela... me contou que o homem dela fugiu quando engravidou, por isso me entregou pra adoção. Daí, não fui mais atrás; quanto mais se mexe em merda, mais fede. E também, já sabia o que precisava.
― Santa Madre, menina, tanto a aprender e tanto por viver... Muitas encarnações pela frente. Às vezes, as aperturas neste plano vêm do tempo que foi, de outras vidas, do lixo cármico que a gente acumulou em outras encadernações... mas, no teu caso, parece que o atraso vem desta passagem mesmo. Você sabe pouco de onde veio pra saber aonde vai.
― Mas que passado é esse que impede o meu futuro? A senhora tá me dizendo para ir atrás... do meu pai de sangue?
― E por que não? Não é nada, não é nada, já é alguma coisa. Vai a gente saber de onde nos vem o enganche... Trabalho de magia é fácil de desfazer, difícil é o que vem da mente, do coração e da língua. Vai com Deus, minha filha.
A consulta terminara. Eldenezir e Irma, cada qual por motivos diferentes, sentiam um vago desassossego.

2 comentários:

angela disse...

Tanta história em tão pouco texto. Perdi o ar...rs Gostei muito.

O meu pensamento viaja disse...

Eu vi, eu ouvi, eu estive lá seguindo essa conversa.
Grande narrativa!
Já sou sua seguidora.
Beijo da Nina