segunda-feira, 25 de junho de 2012

Rosa faz anos (parte 2)




            Foi numa manhã cinzenta como esta, mesclando-se ao som da chuva que caía sobre os jardins suspensos do MASP, que a vigilante escutou pela primeira vez a melodia do pífano. A princípio, deixou-se estar, imóvel e aterrorizada; talvez fosse música ambiente, até que já não cabia dúvida: saindo da obra de Van Gogh, O Aluno, também chamada Garoto de Quepe Azul, ouvia o sedutor chamado que a convidava a entrar na tela e se perder no país dos suicidas. Um dos resultados de contemplar o mesmo quadro por muito tempo é que os detalhes se incorporam de maneira concreta, a pintura como que nos pertence ― vemos nela o que nenhuma outra pessoa poderá ver.
Neno bem que a tentou avisar.
― Cuidado, não entre no mundo da arte. Você vai destruir todas as obras, principalmente aquelas que mais ama.
Não tem tempo a perder; dentro de uma hora e meia precisa chegar a casa, pegar o neto e levar para a creche. A desmiolada da mãe, sua filha Elvira, já está em outra roubada; não há de ser uma criança que a impedirá de viver seu novo grande amor. São três conduções do serviço até sua casa de tijolo aparente em Parada de Taipas: metrô, ônibus e lotação; mesmo assim, não consegue deixar de passar pela sala do segundo andar para se despedir do filho do carteiro. O escolar do quepe azul, Camille Roulin. Numa carta para o irmão, Vincent escreveu: “pintei os retratos de toda a família; todos tipos bem franceses, embora tenham cara de russos”. Só Rosa compreende a que “russos” o pintor se referia: na verdade, quis dizer “rosas”, quis dizer exilados, trânsfugas, imigrantes de uma pátria triste: o país dos que cansaram.
Voltar na hora em que todos vêm é um exercício de solidão acompanhada; a massa no contrafluxo, rugindo de raiva e pressa, e ela na outra margem do rio da miséria cotidiana. Rosa ainda ouve o flautim ao descer no ponto; ainda não sabe explicar o fascínio daquele milagre da pura linguagem, mensagens de além-túmulo de um pobre diabo distante dela mais de cem anos. O dobro da idade que completa hoje. Se fizer um bolo, alguém se lembrará de lhe cantar um parabéns em casa? Decorou as falas do professor Tassotti nos cursos que incluem visita guiada ao acervo.
― ... reparem as extensas áreas monocromáticas, os contrastes impressionantes, a força que pulsa nas camadas espessas de tinta espremida diretamente das bisnagas. Mais adiante, no Passeio ao Crepúsculo, também de 1888, gostaria de lhes chamar a atenção para as duas zonas bem distintas da luz: no alto, à direita, os azuis escuros dos Alpilles, de onde a noite cai rapidamente; o casal dirige-se para a esquerda, onde predominam os verdes claros; na borda inferior, o detalhe malicioso do passarinho. É preciso levar em conta que esta era a perspectiva da janela do hospício em Saint-Rémy, onde o haviam internado; a metáfora do ato sexual parece-me bastante óbvia. Como lhes mostrarei mais tarde na sala de projeção, nas pinceladas convulsas do Trigal com Corvos e da Noite Estrelada, igualmente pertencendo a este período final na Provença, trava-se uma avassaladora batalha cósmica e já não estamos simplesmente acompanhando a evolução de um artista excepcional: é como se assistíssemos ao nascimento do Universo.
O marido a espera no portão de ferro sem pintura; o portão é meio caído dos engonços, precisa ser levantado para abrir. Está trombudo, como de costume; apressado, como de costume, para ir trabalhar ― a mesma pressa que lhe falta para voltar. Nem um beijo, nem uma palavrinha meiga. Que dirá, um feliz aniversário.
            ― Tô indo. O menino não comeu pão, só o leite tomou. Ah, vê se não faz macarrão de novo na janta, já foi onte e ontonte.
            Wanderson, o neto de cinco anos, vai arrastado para o ponto; ele é bem irrequieto, pudera, sem a mãe por perto as crianças de hoje em dia ficam incontroláveis. Enquanto passa o menino por baixo da catraca do ônibus pensa se o está criando bem. Talvez esteja apenas repetindo os mesmos erros que cometeu com os filhos. Tem só dois, Deus e o desinteresse do marido não lhe deram mais. O filho mais novo já não aparece muito, vive na rua; só dá as caras em casa a horas desencontradas, volta com um ar esquisito, transtornado. As coisas não param de sumir: na semana passada foi o liquidificador, que ela ainda nem tinha acabado de pagar no crediário.
            Rosa deixa o olhar vagar distraidamente pela cozinha, espera o café passar no coador de papel; não quer se voltar na direção da sala e do quintal que reclamam uma boa faxina. Em silêncio, morde os lábios ao reparar, junto do pote de café, entre pacotinhos de chá, sacos de pão dormido e latas de embutidos, uma garrafa pet cheia de água sanitária. Pensa em como é fácil morrer, e que não deve deixar escapar tão magnífica ocasião e lugar. Bastam uns goles daquela água que passarinho não bebe para apagar de uma vez todo aquele cotidiano de imagens cinza, de filhos perdidos, de marido desalmado, de tédio mortal no museu.
            ― Ô vida besta, Deus meu! ― disse para si mesma, para Deus ou para as paredes, tanto fazia.
            .Mas quando já estava a ponto de pegar a garrafa, quando o menino azul do quadro já recomeçara a tocar o pífano diabólico na sua cabeça, aconteceu de pensar no desgraçado do seu marido e de repente descobriu que havia algo no ar da manhã, nesse estar sozinha e triste na cozinha, que agitava seu sangue de um modo quase agradável. Na verdade, seu marido está pegando a vizinha da rua de baixo, a piriguete sem graça da mercearia (e o desgraçado achando que ela não sabe de nada); na verdade, o sem vergonha do marido é um espírito sem luz merecedor de compaixão, e precisa ser ajudado, o que não deixa de ser uma boa razão para seguir vivendo, para seguir preparando o café, para seguir tentando que seu marido recupere a alegria e volte a ser aquele homem encantador que havia conhecido no Playcenter há trinta anos, quando lhe pagou um algodão doce.
            Decidiu que vai fazer um bolo.

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