quinta-feira, 7 de junho de 2012

O quartel de Dona Mocica (parte 1)




            A infância é um território do tempo feito de encantamento e deriva. Tudo que depois chamei de realidade resultou do ajuste ao padrão médio de percepção, um longo processo que me empalideceu a memória, a imaginação e o sonho. Daí que posso dizer que existem várias realidades, não sendo as coisas todas reais da mesma maneira, nem iguais para diferentes pessoas. Compreensível assim que, para o moleque sarambé que eu fui, magro, moreno, orelhas de abano e ar assustado, mais afeito às coisas do que às pessoas, aquele casarão dos meus avós adquirisse um halo de fantasia, cujas vibrações áureas ainda hoje ecoam em meu espírito.
            Meus avós maternos eram grandes senhores de terras, proprietários das fazendas do Tijuco, São Simão e Santa Eulália, onde criavam gado leiteiro, plantavam algodão, milho e, principalmente, café. Terceira de nove filhos, sete homens e duas mulheres, mamãe era a menina dos olhos de meu avô e, mesmo depois de casada, passava impreterivelmente as férias do meio e do fim do ano entre o casarão de Bauru e a sede no Tijuco. Morávamos na Alameda Lorena, num sobrado próximo à Haddock Lobo que deu lugar a um prédio de apartamentos; esta casa, onde morei de zero aos quinze anos de idade, estranhamente, não carrega tantas impressões, mantendo-se como que suspensa no ar.
            No primeiro dia das férias, acordávamos antes do sol para não perder o trem das sete horas na Estação da Luz. As malas dormiam arrumadas de véspera, as roupas de viajar nos aguardavam dobradas sobre a cômoda azul e as cadeiras de palhinha, ao lado dos sapatos com as meias a sair da boca. Vestíamo-nos estremunhados de frio e pressa ― essas manhãs gloriosas ficariam para sempre marcadas pelo tresnoite e a excitação da partida ―, íamos então para a cozinha “forrar o bucho”, como dizia a Zeza. Pão com manteiga ou requeijão caseiro, café com leite, banana nanica e um bolo de fubá quentinho; para me garantir, ainda enchia os bolsos do casaco com sequilhos, suspiros, losangos de doce de leite e biscoitos-de-jacareí.
            Carregado o táxi sob a porte cochère da nossa casa, deslizávamos por uma cidade completamente vazia (na minha memória sempre fustigada pela chuva), indo desembarcar numa ruazinha ao lado do Jardim da Luz junto ao hall de entrada da estação. No saguão, o rumor de uma multidão de viajantes chegando e saindo dos limbos da nave central, contrastava com as ruas adormecidas que acabávamos de atravessar. Enquanto papai confirmava os lugares num dos guichês da entrada, seguíamos em fila o moço das bagagens: eu, mamãe e a Zeza, arrastando pelas mãos minhas irmãs.
            O menino mira atordoado a descomunal estrutura de ferro e vidro do teto, que se eleva vertiginosamente sustentada por um conjunto de imponentes colunas de alvenaria, e não duvida: sob esta majestosa arcada em vão livre acontecem aventuras que nem as de Stevenson, Ballantyne, Mayne Reid e Emílio Salgari, da coleção Terramarear, que ele já devora solitário. Atravessamos o passadiço de ferro central para descer a longa escadaria em três lances que conduz à plataforma, onde a composição aguarda encostada. Afixados às paredes, cartazes da Herva Matte Unsigen, Elixir Dória, Rhum Creosotado, Aspirina Bayer, Casa Fuchs; brilhantes placas de bronze na armação metálica indicam a fabricação: Walter MacFarlane & Co., Glasgow.
            Papai preside atento a cada deslocamento da família, pagando o carregador, cumprimentando os conhecidos ou tomando qualquer providência final; eu acompanho todos os movimentos do seu chapéu de feltro Fedora, guaribado no topo e na aba frontal, a flutuar sobranceiro num mar de chapéus. Um cavalheiro que jamais saía de casa sem um lenço perfumado, o alfinete de pérola na lapela do paletó impecavelmente vincado, a gravata acetinada, as abotoaduras de pedra vermelha, os óculos acavalados no nariz pequeno, o bigode sobre a boca fina. Se ainda há tempo, sai comigo para comprar jornais e revistas em quadrinhos, ou até mesmo tomar um guaraná na lanchonete Vagliengo.
            Como se obedecesse a um ritual, ele sacava do colete o relógio Longines de corrente para avisar que era hora de subir no Pullman, encontrar nossos lugares e acomodar os volumes. A campainha disparava, um funcionário percorria a plataforma anunciando que o trem ia partir; um choque, os vagões se acomodavam nos engates, e então o monstro de aço se punha em marcha lentamente, afastando-se da cidade. Lá fora o dia despontava; com o nariz espremido contra o vidro do compartimento reservado, via as zonas industriais da cidade com suas altas chaminés cinzentas, depois vinha o casario monótono do subúrbio, os descampados, até que surgia triunfante a paisagem rural do planalto paulista.
            A jornada era longa, cansativa e, também, escaldante, tão logo nos afastávamos da Serra dos Cristais em Jundiaí; me esquecia horas pasmando na janela, acompanhando os fios dos postes que corriam paralelos à ferrovia, subindo e descendo, em compassos irregulares. De repente, um túnel, ao sair, o choque do mundo reverberando luz. Ainda hoje, mais de seis décadas passadas, trago gravadas na retina da alma cada minúcia do vagão: a tonalidade verde-escura dos estofados e da passadeira de linóleo; as arandelas em forma de tulipa, de vidro jateado e bordas bisotê; o console do reservado com cantoneiras de metal dourado, fixadas por parafusos sextavados; as duas linhas paralelas a toda volta do compartimento, uma violeta e outra amarela, formando um ornato retangular com o monograma, CP, da Companhia Paulista na parte central.
            Lá pelas onze, o sol, já a pino, nos cozinhava dentro daquela caixa de ferro; eu saía a procurar meu pai no salão, parlatório exclusivo dos homens. Para consolo da minha impaciência, ganhava um suculento filé com fritas no carro-restaurante; quando nada mais me fazia ficar quieto, o bilheteiro anunciava a estação de Brotas. Já faltava pouco; as próximas estações sabia-as de cor: Torrinha, Dous Córregos, Jahu, Banharão, Mineiros e, finalmente, Bauru. O trem descrevia uma longa volta em torno da cidade, da janela, me referenciava pela agulha da torre da matriz contra o céu azul. Com energia renovada, pegávamos um táxi na estação rumo à casa de meus avós, na rua Major Baleizão nº 262. Ali, no castelo dos meus sonhos, eu fui feliz
            Há quem diga que toda infância é infeliz; não sei, a julgar pelo que vivi, digo que a minha não deixou de ser ambas, feliz e infeliz; porém, com muito mais verdade diria que foi um luminoso desfile de seres e emoções que me atravessaram e marcaram perduravelmente. Ainda assim, por uma dessas contradições que é própria à condição humana, as memórias da minha meninez se enovelam qual teia confusa em torno de dois núcleos de intensa obscuridade: minha tia-avó Inácia e Dona Mocica.
            


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