A
infância é um território do tempo feito de encantamento e deriva. Tudo que
depois chamei de realidade resultou do ajuste ao padrão médio de percepção, um
longo processo que me empalideceu a memória, a imaginação e o sonho. Daí que
posso dizer que existem várias realidades, não sendo as coisas todas reais da
mesma maneira, nem iguais para diferentes pessoas. Compreensível assim que,
para o moleque sarambé que eu fui, magro, moreno, orelhas de abano e ar
assustado, mais afeito às coisas do que às pessoas, aquele casarão dos meus
avós adquirisse um halo de fantasia, cujas vibrações áureas ainda hoje ecoam em
meu espírito.
Meus
avós maternos eram grandes senhores de terras, proprietários das fazendas do Tijuco,
São Simão e Santa Eulália, onde criavam gado leiteiro, plantavam algodão, milho
e, principalmente, café. Terceira de nove filhos, sete homens e duas mulheres,
mamãe era a menina dos olhos de meu avô e, mesmo depois de casada, passava
impreterivelmente as férias do meio e do fim do ano entre o casarão de Bauru e
a sede no Tijuco. Morávamos na Alameda Lorena, num sobrado próximo à Haddock
Lobo que deu lugar a um prédio de apartamentos; esta casa, onde morei de zero aos
quinze anos de idade, estranhamente, não carrega tantas impressões, mantendo-se
como que suspensa no ar.
No
primeiro dia das férias, acordávamos antes do sol para não perder o trem das
sete horas na Estação da Luz. As malas dormiam arrumadas de véspera, as roupas
de viajar nos aguardavam dobradas sobre a cômoda azul e as cadeiras de palhinha,
ao lado dos sapatos com as meias a sair da boca. Vestíamo-nos estremunhados de
frio e pressa ― essas manhãs gloriosas ficariam para sempre marcadas pelo
tresnoite e a excitação da partida ―, íamos então para a cozinha “forrar o
bucho”, como dizia a Zeza. Pão com manteiga ou requeijão caseiro, café com
leite, banana nanica e um bolo de fubá quentinho; para me garantir, ainda enchia
os bolsos do casaco com sequilhos, suspiros, losangos de doce de leite e biscoitos-de-jacareí.
Carregado
o táxi sob a porte cochère da nossa
casa, deslizávamos por uma cidade completamente vazia (na minha memória sempre
fustigada pela chuva), indo desembarcar numa ruazinha ao lado do Jardim da Luz
junto ao hall de entrada da estação. No saguão, o rumor de uma multidão de
viajantes chegando e saindo dos limbos da nave central, contrastava com as ruas
adormecidas que acabávamos de atravessar. Enquanto papai confirmava os lugares
num dos guichês da entrada, seguíamos em fila o moço das bagagens: eu, mamãe e
a Zeza, arrastando pelas mãos minhas irmãs.
O
menino mira atordoado a descomunal estrutura de ferro e vidro do teto, que se
eleva vertiginosamente sustentada por um conjunto de imponentes colunas de
alvenaria, e não duvida: sob esta majestosa arcada em vão livre acontecem
aventuras que nem as de Stevenson, Ballantyne, Mayne Reid e Emílio Salgari, da
coleção Terramarear, que ele já devora solitário. Atravessamos o passadiço de
ferro central para descer a longa escadaria em três lances que conduz à plataforma,
onde a composição aguarda encostada. Afixados às paredes, cartazes da Herva
Matte Unsigen, Elixir Dória, Rhum Creosotado, Aspirina Bayer, Casa Fuchs; brilhantes placas de
bronze na armação metálica indicam a fabricação: Walter MacFarlane & Co.,
Glasgow.
Papai
preside atento a cada deslocamento da família, pagando o carregador,
cumprimentando os conhecidos ou tomando qualquer providência final; eu
acompanho todos os movimentos do seu chapéu de feltro Fedora, guaribado no topo
e na aba frontal, a flutuar sobranceiro num mar de chapéus. Um cavalheiro que
jamais saía de casa sem um lenço perfumado, o alfinete de pérola na lapela do
paletó impecavelmente vincado, a gravata acetinada, as abotoaduras de pedra
vermelha, os óculos acavalados no nariz pequeno, o bigode sobre a boca fina. Se
ainda há tempo, sai comigo para comprar jornais e revistas em quadrinhos, ou
até mesmo tomar um guaraná na lanchonete Vagliengo.
Como
se obedecesse a um ritual, ele sacava do colete o relógio Longines de corrente para
avisar que era hora de subir no Pullman, encontrar nossos lugares e acomodar os
volumes. A campainha disparava, um funcionário percorria a plataforma anunciando
que o trem ia partir; um choque, os vagões se acomodavam nos engates, e então o
monstro de aço se punha em marcha lentamente, afastando-se da cidade. Lá fora o
dia despontava; com o nariz espremido contra o vidro do compartimento reservado,
via as zonas industriais da cidade com suas altas chaminés cinzentas, depois
vinha o casario monótono do subúrbio, os descampados, até que surgia triunfante
a paisagem rural do planalto paulista.
A
jornada era longa, cansativa e, também, escaldante, tão logo nos afastávamos da
Serra dos Cristais em Jundiaí; me esquecia horas pasmando na janela,
acompanhando os fios dos postes que corriam paralelos à ferrovia, subindo e
descendo, em compassos irregulares. De repente, um túnel, ao sair, o choque do
mundo reverberando luz. Ainda hoje, mais de seis décadas passadas, trago gravadas
na retina da alma cada minúcia do vagão: a tonalidade verde-escura dos
estofados e da passadeira de linóleo; as arandelas em forma de tulipa, de vidro
jateado e bordas bisotê; o console do reservado com cantoneiras de metal
dourado, fixadas por parafusos sextavados; as duas linhas paralelas a toda volta do compartimento, uma
violeta e outra amarela, formando um ornato retangular com o monograma, CP, da
Companhia Paulista na parte central.
Lá
pelas onze, o sol, já a pino, nos cozinhava dentro daquela caixa de ferro; eu
saía a procurar meu pai no salão, parlatório exclusivo dos homens. Para consolo
da minha impaciência, ganhava um suculento filé com fritas no
carro-restaurante; quando nada mais me fazia ficar quieto, o bilheteiro
anunciava a estação de Brotas. Já faltava pouco; as próximas estações sabia-as
de cor: Torrinha, Dous Córregos, Jahu, Banharão, Mineiros e, finalmente, Bauru.
O trem descrevia uma longa volta em torno da cidade, da janela, me referenciava
pela agulha da torre da matriz contra o céu azul. Com energia renovada, pegávamos
um táxi na estação rumo à casa de meus avós, na rua Major Baleizão nº 262. Ali,
no castelo dos meus sonhos, eu fui feliz
Há
quem diga que toda infância é infeliz; não sei, a julgar pelo que vivi, digo
que a minha não deixou de ser ambas, feliz e infeliz; porém, com muito mais
verdade diria que foi um luminoso desfile de seres e emoções que me
atravessaram e marcaram perduravelmente. Ainda assim, por uma dessas
contradições que é própria à condição humana, as memórias da minha meninez se
enovelam qual teia confusa em torno de dois núcleos de intensa obscuridade:
minha tia-avó Inácia e Dona Mocica.
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