Perdi o bonde
todos voltavam
eu ainda ia
e nem percebia
Quando dei por mim...
já era!
Fiquei de fora
perdi a hora
o jeito
a graça
a farra
Que raiva!!!
A indignação e o espanto tomou conta de seu rosto e o amigo sem jeito tratou de encerrar o assunto.
O outro até tentou continuar, mas ele não quis. Estava totalmente sem graça. Foi embora ruminando o acontecido. Caso olhasse para trás, surpreenderia o olhar triunfante do amigo.
Este se deixou ficar por lá mesmo, entrou num café e satisfeito pensava como mentia cada vez melhor.
Lembrou o longo caminho que percorrera até ali desde menino. A mãe perguntando se ele tinha feito aquilo e ele na sua inocência dizendo que sim e logo a surra, o castigo, o espanto. Magoado não compreendia por que era para o bem dele. Ficou com medo de responder as perguntas, mas, ela percebia pelo seu medo que fora ele. Aprendeu a disfarçar o medo, mas ela desvendava por outras evidencias e ele foi aprendendo a disfarçar cada vez melhor. A grande "sacada" foi quando descobriu que não precisava esconder as emoções e sim usa-las. Foi assim que ele procedeu há pouco; a energia do medo, da apreensão fora usada para mostrar indignação, espanto e aí à mentira era quase uma verdade. As pessoas, quase sempre, preferem acreditar no que é mais fácil para elas e o engano é quase um acordo mudo feito entre as partes .
O amigo foi embora triste sabia que ele tinha mentido que tudo era encenação, conhecia os truques todos dos mentirosos poderia ser um deles se quisesse, e de certa maneira o era fazendo de conta que acreditava. Não queria entrar em uma discussão inútil, não tinha provas e tudo ficaria no campo subjetivo das impressões.Ele tinha aprendido também outra lição na vida que era calar o que a inteligência percebia e não podia provar e passar por tonto como acontecera há pouco.
A amizade terminaria ali, naquela conversa. A mascara da hipocrisia estaria no rosto dos dois impedindo qualquer contato verdadeiro e isso o entristeceu demais.
Cansei de tanta civilidade
de tanta privacidade
desse silêncio
esse resguardo
esse mundo palatável
agradável
Mistérios enfurnados no porão
falsos pudores
uma ambiguidade
estonteante
Dispensa soldado
e chibata
para exercer seu poder
tudo é sutil e velado
Tranquei o coração
aprendi o jogo e
sinceramente...
Chuck Berry, o inventor do rock and roll,
espetou um aguilhão de ouro
nos tomates putrefactos do racismo
Chuck Berry, com seu cabelo desfrisado,
seus pulinhos de gato
e seus acordes luminosos,
misturou no mesmo palco
e na mesma febre improvável
o que não se devia misturar
Chuck Berry, com seu orgulho negro
sem ressentimento nem arrogância,
gostava de comer
garotinhas branquinhas
curiosas e safadas
Chuck Berry, por conseguinte,
tinha de ser detido
para não continuar a espalhar
a loucura que havia inventado
Chuck Berry foi trocado
por um branquinho de patilhas espessas
e uma crista pedante na cabeça
chamado Elvis Presley
Post Oak Boulevard
Cruzamento de aço brilhante.
A abóbada azul do dia
desce vagarosa sobre os meus olhos,
como uma toalha desdobrando-se lentamente
sobre o tempo. Vagam os meus pensamentos,
como flocos de ar, entre
a alegria e a tristeza.
São complexos os humanos sentimentos:
por que razão insistimos
em reduzi-los a equações simples e miseráveis?
Por que exigimos, a todo o instante,
a comparência dos culpados,
para atirar-lhes à cara
tudo aquilo que temos medo de fazer?
Os pássaros alinhados em cima dos fios eléctricos
nada me dizem. Metáforas impossíveis,
parecem condenados, enrugados e cinzentos,
à espera do pelotão de fuzilamento,
sem saber que o mesmo não existe.
A minha mão está suspensa sobre
a alavanca perplexa,
sem saber o que fazer.
Oiço um coro de buzinas terríveis à minha volta,
mas na verdade ignoro
de onde provêem.
R nasceu em Berbera, no norte que se separou do resto do país e se rebatizou de Somalilandia, nome da antiga zona de colonização britânica. Filha de um dos raros médicos da região completou o ensino médio, fez um curso de socorrista e conseguiu só ser entregue em casamento com 18 anos, ou seja, três mais tarde que as duas melhores amigas. O pretendente frequentava sua casa e ela achou graça na proposta, até se sentiu lisonjeada com a possibilidade de ter vida completa de mulher, sem necessidade de ficar se tocando e amargar o complexo de culpa em seguida. Aceitou os conselhos dos pais, apenas com a condição de não ter filhos antes dos 21 anos.
O marido concordou. Era um comerciante rico que negociava a partir do porto de Berbera com Aden e Djibuti e que além dela só tinha mais uma esposa, pelo menos por enquanto.
Os negócios dele começaram quando nem tinha 20 anos, com venda de qat no mercado local e pequenas exportações. Dois anos depois tinha acumulado o suficiente para virar honesto, quer dizer, trabalhar com produtos legais, subir os preços em caso de escassez e pagar uma miséria aos empregados.
Relativamente liberal autorizou R a viajar para Hargeysa fazer um curso de 30 dias sobre profilaxia anti-infecciosa. Nesse mês os estudantes da cidade fizeram manifestações de protesto e R entrou numa delas rudemente reprimida.
Conversas com colegas como nunca tinha tido, discursos dos manifestantes e a conduta da policia, tiraram o véu que escondia seu lado aguerrido. O marido soube do envolvimento e acabou o liberalismo.
Quando os interesses de classe podem ser atingidos, qualquer pessoa como ele em qualquer canto do mundo mostra o lado primata. Se no governo soubessem que uma de suas esposas tinha participado em atos hostis, perdia mais de dois terços dos negócios e ela levou uma surra monumental, a primeira em dois anos de casada, portanto abaixo da média na região.
Ela ouviu muito vagamente os gritos dele “e agora acabou, você vai me dar um filho ainda este ano” porque desmaiou e quando acordou o ouvido direito zumbia.
Depois teve convulsões e caiu de novo.
Chamaram o pai que quando viu o estado da filha sentiu um empurrão no peito, falta de ar e raiva. Tratou as feridas abertas, os hematomas e levou-a ao hospital para raios-X em algumas partes do corpo com suspeita de fraturas. Trouxe a filha de volta sempre em silêncio com surtos de lagrimas nos olhos, e foi embora sem nem se despedir do genro, curvando-se ao respeito devido ao marido que, nas semanas seguintes não deixou a mulher sair para lugar nenhum enquanto estivesse com marcas no rosto, principalmente perto dos olhos. Nunca se sabe, pensava o comerciante, se ela queixa na policia ou no tribunal e está lá um policial ou juiz com ideias bizarras...
Mas não se incomodou com a repercussão da surra. Oxalá a noticia chegasse ao conhecimento de algum ministro para não terem duvidas sobre a lealdade dele.
Mais de um mês após a queda do liberalismo em casa, R sentiu falhas na vigilância e em minutos juntou numa sacola roupas e dois sapatos rasos, alguma comida, a escova de dentes, um pente, dois cadernos, uma bic, o mp3, uma bola de tênis dos tempos escolares e os joias presentes de casamento e aniversários.
Saiu de casa pulando o muro dos fundos, andou rápido nas ruas próximas e numa loja de joalheiro vendeu duas joias. Conseguiu lugar num superlotado caminhão para Hargeysa e se sentiu tão livre que até achou legal o desconforto da viagem. Os passageiros eram quase todos homens e das dez mulheres só duas desacompanhadas...
Em Hargeysa procurou uma das colegas dos dias da agitação e esta disse ao marido que R tinha vindo tratar de assuntos familiares e ficaria lá em casa uns dias. Só ficou dois, ela sabia que o marido ia procurá-la. Mesmo assim arriscou ligar para os pais. Quando acabou de falar sentiu um longo silêncio e de repente ouviu a voz da mãe um pouco longe do celular “Allah é grande e vai te ajudar”. O pai só disse com voz áspera “espero que tua mãe tenha razão”.
A colega despistou o marido que queria fazer gentileza arrumando “transporte decente para o regresso a Berbera” – como todos os grupos vigiados, mulher muçulmana é craque em despiste – e iria despistar o marido da outra, se ele aparecesse, dizendo-se escandalizada e enganada pela amiga.
R seguiu para o lado oposto de Berbera, fronteira com a Etiópia, pertinho de Hargeysa.
O destino dela era Mogadiscio e a volta pelo Ogaden nem aumentava a distancia e era mais seguro. Desde a separação com o resto da Somália, as forças da Somalilandia mantinham sua fronteira sul muito patrulhada, infestada de minas e do outro lado as milícias dos clãs eram numerosas.
Entrou em território etíope sem problema, mas nesse dia começou a ansiedade quase constante que lhe acompanha a vida até hoje. Á noite em Jijiga teve muito medo. Numa barraca do mercado, iluminada com candeeiro a petróleo, vendeu mais uma joia. Deu cem birr a uns meninos de rua e perguntou-lhes onde podia comprar uma pistola.
Os garotos apontaram para um homem que fumava cigarro estrangeiro e andava com uma pasta de couro. Comprou uma 9 mm e o homem disse-lhe para tomar muito cuidado porque o exército etíope controla tudo o que é arma, mesmo de pequeno calibre e aqui não é a bagunça da Somália.
Quem vive num ambiente nômade ouvindo historias de nômade e noticias de nômade, tem técnicas de viagem para derrubar imprevistos, mas no meio daquela miséria ficava difícil uma mulher encontrar local para dormir.
A beleza dela era uma dificuldade a mais. Num meio desses, beleza só ajuda quem quer marido rico ou emigrar para os países ricos. Todos se perguntariam como uma mulher daquelas estava ali sem família nem teto ou então pensavam que era prostituta.
O medo ás vezes ajuda. Sem muitas alternativas falou com uma senhora que amarrava duas cabras e expôs a primeira de grandes histórias inventadas para não levantar suspeitas e concluiu dizendo que pagava pela hospitalidade.
- Se tem dinheiro isso ajuda minha família, mas se não tem pode ficar igual...
Outra característica de grande parte das mulheres muçulmanas é a solidariedade entre elas, como em geral acontece entre membros de grupos oprimidos... Pelo menos enquanto estão oprimidos.
Dormiu numa esteira enrolada no lençol que trouxe de casa e foi acordada por enxames de moscas. Vendeu outro colar e pegou um velho ônibus que ia pelas montanhas até El Fud. A história que inventou desta vez dizia que procurava o marido ferido num ataque.
Pouco antes do destino, o ônibus pifou e foram chamar um mecânico que morava a mais de duas horas dali. Só continuariam na manhã seguinte se tudo corresse bem, quer dizer, se não fosse preciso substituir peças importantes e ela aproveitou para rezar perto da mesquita.
Á entrada do vilarejo viu uma pequena capela, sinal da existência de moradores cristãos numa zona de larga maioria islâmica. No planalto amarico ocorre o inverso. Desde que saiu do ônibus pifado ela viu pessoas que a olhavam como grande novidade e que, á primeira vista, tanto podiam ser de etnia amarica, oromo ou somali.
O minarete da mesquita dominava a paisagem, não havia como errar. Atravessou a rua e dois tipos com ar de grandes mascadores de qat, vieram atrás dela com piadas cada vez mais porcas, chamavam como se chama cão vadio e finalmente colaram nela dizendo que mulher decente não pode andar por ali sem proteção de um homem e que a partir desse momento estava sob proteção de dois homens.
Com as risadas e os dentes dos grandes mascadores, disseram que era melhor ela ser obediente e o mais alto dos dois apalpou-lhe os seios e ia apalpar a bunda.
R deu um empurrão tão forte que o cara caiu soltando palavrão e o mais baixinho gritou
“Cadela dos infernos! Quem é você?”
Com o rosto descoberto ela não teve duvida em olhar nos olhos dele, ao contrario do que uma boa muçulmana deve fazer quando fala com um homem.
“Eu sou uma daquelas que vocês chamam puta! Puta ouviu? Acontece que para mim vocês são montes de merda porque foram paridos pelo cú”.
O baixinho tirou uma faca de mato e avançou para ela.
R meteu a mão na sacola puxou a 9 mm e aproximou o cano da testa do baixinho. O mais alto fugiu e abandonou o colega que deixou cair a faca, paralisado. Ela sabia que não se aponta uma arma sem ter intenção de atirar e pensou “se ele se mover para trás deixo ir, se dá um passo em frente ou para o lado, queimo este verme, nunca mais me vão bater sem troco”.
Uns homens que seguiam a cena impassíveis resolveram intervir e olharam para ela com respeito. Devem ter pensado que um mulher daquelas por ali com uma arma, ou tem as costas muito quentes ou, pelo contrario, tem de abrir caminho nem que seja a tiro.
“Senhora, não atire, ele é drogado, deixe que o levamos daqui.”
R prosseguiu até a mesquita, lavou as mãos, os braços e o rosto, estendeu um pano azul do lado de fora e virou o corpo para a Meca. Nesse momento chegava o muerzin, um velhinho de olhar bondoso e disse que esta mesquita tem lugar para mulheres, ela pode rezar lá dentro.
Quando acabou, o muerzin ofereceu-lhe a casa até que consertem o ônibus.
“Minhas mulheres vão ficar contentes de te receber”, acrescentando que o melhor é colocar a arma por dentro do vestido junto ao corpo. “Na bolsa pode não dar tempo se você precisar de novo. Sua sorte com aqueles malvados é que não tinham arma de fogo...”.
Na madrugada seguinte pelas cinco da manhã, depois da oração matinal o muerzin levou-a até ao ônibus. É difícil dizer quem estava com mais medo: se ela em relação aos passageiros, se estes em relação a ela.
Soltando uma fumaça desgraçada o ônibus arrancou de novo ás sete e meia.
Mudou de transporte em El Fud e, desse jeito foi indo até chegar a Mustahil, nas margens do rio Shabelle que nasce nas montanhas etíopes e deságua na costa somali. Repetindo quarent afro-rock e afro-reggae pirateados no mp3 seguiu o rio até á fronteira e entrou na Somália.
conto extraido de livro "Relato de Guerra Extrema e Fragmentos de outros extremos" - romance e quatro contos
Autor ainda do romance "Café Gelado"
e da tese de doutorado"Valoração da água em Economia do desenvolvimento"
(José Manuel Gonçalves) Jonuel