― Fica sussa,
chefe, do jeito que as ruas tão, o menor dos problemas nesse bonde vou ser eu, garanto.
Entretanto, a
chuva parou.
Num ponto o
mercenário acertava, desde o surgimento do Leviathan
m. muito havia mudado lá fora, para além dos muros lacrados dos viveiros
humanos ― tínhamos perdido o território.
A cidadela
caiu em toda parte, sob o impacto da catástrofe biológica, o conjunto da
humanidade experimentava um retorno dramático às condições reinantes na origem
da espécie: isolamento, população reduzida, escassa dominância sobre os outros
animais.
Alguns milhões
de pessoas foram devoradas pelos seus próprios pets antes que a nova situação
religasse nas massas o pavor da natureza selvagem. A expansão sem freios da Natura naturans.
Abrem-se os
portões da Colônia Cecília.
Os veículos
saem rapidamente para o meio do asfalto, executam uma curva à direita em alta
velocidade, acelerando no aclive suave da rua curta. Pilotando o jipe, Rebeca
dá cobertura andando na frente do caminhão carregado de frutas e grãos.
― Uhu! Barra
limpa, mano, a hora é essa!
― É bom começar
sem vento contra, mas a viagem á longa. Difícil não ter problemas com os penosos
levando tanta comida...
― Hmm,
certo... até galinha virou problema. Escuta, este corre é food for drugs, não é? ― Beca não se gastava em voltas pra chegar
onde queria.
― Food for aid. Estamos com baixos
estoques de medicação contínua, sou contra arriscar soldados nisso. Nem mesmo
acho bonito gastar estoque com bagulho, por mim, só mandaria drones atrás
dessas pragas.
― Ah, você
sabe que aqui perto só tem mercadoria de baixa qualidade... mas não é o que
falam do Galpão, lá rola o isômero D, o mais, mais.
― Sei que
falam do Dr. W toda essa asneira de metanfetamina, mas comigo nunca nem me
propuseram missões do tipo ― Ernaldo mentia, a verdade é que não lhe deram
muita escolha.
― Pô cara, queria
te dizer, mó respeito...
― Que é isso,
tá me estranhando?
― Nem um
pouco, mano, cê sabe que cê é uma lenda viva.
― Sai pra lá
Rebeca, corta esse mimimi, não tem lenda não, só tem estar vivo. Estrela neste
esporte não chega a vovô.
― Você chegou
aonde ninguém chegou.
― Pode ser,
mas juro, não foi me achando o rei da cocada que fiquei vivo até agora.
― E esse
Dárius, hem? Não parece amar demais a própria pele, tem pinta de maluco de dar
com pau em pedra...
― Por isso que
resolvi não ir no carro com ele, vou dormir na mira desse cara. A conta dele
não fecha.
― Se pisar na
bola com a Pernilla, deixa eu finalizar ele. Trato?
Riram.
Mas a
mortadela insistia em voltar à sua boca, odiava ter de mentir para os seus
homens. Já não podia escolher muito, lembraram-no disso. Estava ficando velho.
Tinha de engolir Dárius e tudo mais que lhe mandassem, compreendera que não ia sobreviver
a uma sala fechada com a mesa cheia de papéis, não se via vinte e quatro horas por
dia enredado na política da Colônia.
Os problemas
começaram ao deixar as ruas secundárias, perto do entroncamento da via
principal, ao sul, o asfalto quase desaparecia no primeiro trecho aberto do
caminho. O off road precisou abandonar o seu posto de observação na esquina
para ajudar no desatolamento.
Neste momento,
ouviram os latidos vindos do fundo da avenida. Uma matilha enorme, faminta e em
disparada.
Rebeca pulou
na cabine, Ernaldo se trancou no cockpit traseiro, testando duas vezes a
ignição do lança-chamas. Ajustou o laser. Arrancaram na direção do bando, dispunham
de pouco tempo até serem alcançados e precisavam criar uma distração ― sem se
deixar capturar, o que era menos evidente, já que a velocidade do carro era um
nada superior à dos cães.
Poucos pilotos
executavam tão bem a manobra em U: Rebeca dirigiu a toda a velocidade na
direção da cachorrada, trafegando bem aberta pela direita do asfalto; a poucos
metros deles, deu um cavalo de pau de trazer o café da manhã junto com os bofes
pra fora. Naldo ficou de frente para um mar de focinhos arreganhados, rosnando
enlouquecidamente.
― Quipariu,
Rebeca, cê precisava chegar tão perto?!
― Vamo, cara,
aciona logo essa porra de apito!!
Mandou um jato
de chamas nos vira latas que quase encostavam na carroceria, e se virou para
alcançar o Silent Dog Whistler. Rosqueou o tubo na posição três, soltou dois
silvos curtos, agudíssimos, praticamente inaudíveis: pii-pii. A matilha parou
de repente, como na brincadeira de estátua.
― Força Beca,
pé embaixo mulher, a bobeira deles não vai demorar pra passar...
― Segura,
peão, que nós vamo fritar pneu!
Refeitos do
susto, os cães retomaram a perseguição. Problemão: os companheiros só agora
conseguiam pôr a jamanta em marcha no atoleiro deixado pela chuva. A falange
canina se dividira em duas, a maior parte perseguia-os de perto, um grupo menor
dava caça ao caminhão. O lança-chamas de Dárius falhou, obrigando-o a gastar
toda a sua cota de granadas nos mais próximos. Equilibrando-se com dificuldade
na caçamba, ele lutava no corpo a corpo, golpeando com arpões e lâminas,
alvejando o laser nos olhos da canzoada.
Um comentário:
Ô vida de cão!!
Postar um comentário