quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Leviathan melanophyllus (#1)




            Além disso, era um daqueles homens que preferem observar a própria vida, julgando impertinente qualquer ambição de vivê-la. Deve-se acrescentar que Ernaldo observava seu destino pessoal da mesma maneira como os outros, mais numerosos, costumam olhar pela janela um dia de chuva.
            Pouco antes que saíssem, começou a cair uma chuva miúda. Expedição suspensa, por enquanto.
            Se tivessem lhe perguntado, Ernaldo teria respondido que a sua vida continuaria assim para sempre até o final previsivelmente abrupto.
Na certa acabaria devorado pelos bichos, ou morto por algum bando de saqueadores rivais, como, de resto, tinha visto acontecer ao longo dos anos a toda uma geração de companheiros. Perdas em ações externas, segundo o discurso oficial. Toda a sua geração. Era o mais velho, mais experiente, o chefe da operação.
            Um grupo sem novatos, Dárius, Rebeca, Pernilla, e ele. Dois em cada veículo, sem blindagem, mas equipados com canhões de grosso calibre. Sem pressa, terminaram de carregar equipamentos e víveres no caminhão: lasers, granadas, lança-chamas, mochilas de alpinismo, latas de embutidos, anfetaminas, se precisassem passar a noite fora, além de ampolas de propofol, caso fossem capturados.
            Pernilla e Rebeca são casadas, motivo pelo qual pôs a primeira para dirigir o caminhão-caçamba, e a segunda com ele na off road. Adotava esse sistema quando havia mais de um carro, se um veículo se perdesse do outro no meio da missão, a relação forte entre dois soldados sempre funcionava como estímulo adicional na hora de se decidir pelo resgate.
            Ernaldo tinha mais tempo de comando do que os outros de correria, mas não era isso que o preocupava naquela manhã. As meninas eram muito boas de serviço: firmeza, lealdade e, sobretudo, um tipo de coragem sem o tempero da estupidez. Dárius era o cabelo na sua sopa. Temerário, descuidado, conduzia-se por hábito no limite da insubordinação, fazia parte dos desperados, aqueles que entram na milícia faltos de opções e vocação.
            Perdera toda a família num ataque das feras.
            ― Naldo, nós só estamos aqui porque somos “diferentes”.
― Caramba, preferia que você estivesse decorando os caminhos alternativos no mapa, em vez de fazer filosofia...
― Bah, isso o GPS faz sozinho... tou falando dessa vida que a gente leva, dizem pra nós: “não há mais nobre profissão dentro da Colônia”, “vocês são a reserva moral da comunidade”, e por aí a fora. Puta hipocrisia...
― Bom, se você quer tanto saber, também reconheço a falsidade social, não vivo numa bolha... só que, não inventei e não gosto desse jogo, nem existe a hipótese “não-vou-jogar-nunca”, mas há coisas que são reais. Sobreviver é uma delas, meu foco tá aí.
― Certo, é bem isso que se espera de um comandante: foco, disciplina, deixar fora todo o resto...
― Numa coisa você tá certo, é uma pérola do humor negro, agora que estamos todos igualados na mesma lama, nego ficar com essas baboseiras de subespécies, raças, aptidões inatas...
― Era disso que tava falando... nós vivendo na duranga, e só se fala merda por todo lado, um monte de gente afirmando isto, negando aquilo, e vice versa, enquanto a garra aperta, o cerco se fecha à nossa volta!
― Ok, Dárius, mas, qual a alternativa? As pessoas só conseguem levar em frente se alguém estiver o tempo todo a lhes aparar as arestas do mundo com histórias da carochinha... faço o quê com isso? Agora, quando a gente entra em ação, é preciso apagar as ideologias, limpar os sentidos para se deixar guiar pelos instintos, o medo carnal. Acredito no que sinto, não no que minto.
― Hoje, quando olho pra dentro, descubro pouco medo em mim.
― Já tinha percebido. Vou ser muito direto. Isto não me agrada, não ouça como julgamento sobre você e suas motivações, só não quero minha equipe correndo riscos desnecessários.


Um comentário: