Além
disso, era um daqueles homens que preferem observar a própria vida, julgando
impertinente qualquer ambição de vivê-la. Deve-se acrescentar que Ernaldo
observava seu destino pessoal da mesma maneira como os outros, mais numerosos,
costumam olhar pela janela um dia de chuva.
Pouco
antes que saíssem, começou a cair uma chuva miúda. Expedição suspensa, por
enquanto.
Se
tivessem lhe perguntado, Ernaldo teria respondido que a sua vida continuaria
assim para sempre até o final previsivelmente abrupto.
Na certa
acabaria devorado pelos bichos, ou morto por algum bando de saqueadores rivais,
como, de resto, tinha visto acontecer ao longo dos anos a toda uma geração de
companheiros. Perdas em ações externas, segundo o discurso oficial. Toda a sua
geração. Era o mais velho, mais experiente, o chefe da operação.
Um
grupo sem novatos, Dárius, Rebeca, Pernilla, e ele. Dois em cada veículo, sem
blindagem, mas equipados com canhões de grosso calibre. Sem pressa, terminaram
de carregar equipamentos e víveres no caminhão: lasers, granadas, lança-chamas,
mochilas de alpinismo, latas de embutidos, anfetaminas, se precisassem passar a
noite fora, além de ampolas de propofol, caso fossem capturados.
Pernilla
e Rebeca são casadas, motivo pelo qual pôs a primeira para dirigir o
caminhão-caçamba, e a segunda com ele na off road. Adotava esse sistema quando
havia mais de um carro, se um veículo se perdesse do outro no meio da missão, a
relação forte entre dois soldados sempre funcionava como estímulo adicional na
hora de se decidir pelo resgate.
Ernaldo
tinha mais tempo de comando do que os outros de correria, mas não era isso que
o preocupava naquela manhã. As meninas eram muito boas de serviço: firmeza,
lealdade e, sobretudo, um tipo de coragem sem o tempero da estupidez. Dárius
era o cabelo na sua sopa. Temerário, descuidado, conduzia-se por hábito no
limite da insubordinação, fazia parte dos desperados,
aqueles que entram na milícia faltos de opções e vocação.
Perdera
toda a família num ataque das feras.
―
Naldo, nós só estamos aqui porque somos “diferentes”.
― Caramba,
preferia que você estivesse decorando os caminhos alternativos no mapa, em vez
de fazer filosofia...
― Bah, isso o
GPS faz sozinho... tou falando dessa vida que a gente leva, dizem pra nós: “não
há mais nobre profissão dentro da Colônia”, “vocês são a reserva moral da
comunidade”, e por aí a fora. Puta hipocrisia...
― Bom, se você
quer tanto saber, também reconheço a falsidade social, não vivo numa bolha...
só que, não inventei e não gosto desse jogo, nem existe a hipótese
“não-vou-jogar-nunca”, mas há coisas que são reais. Sobreviver é uma delas, meu
foco tá aí.
― Certo, é bem
isso que se espera de um comandante: foco, disciplina, deixar fora todo o
resto...
― Numa coisa
você tá certo, é uma pérola do humor negro, agora que estamos todos igualados
na mesma lama, nego ficar com essas baboseiras de subespécies, raças, aptidões
inatas...
― Era disso
que tava falando... nós vivendo na duranga, e só se fala merda por todo lado,
um monte de gente afirmando isto, negando aquilo, e vice versa, enquanto a
garra aperta, o cerco se fecha à nossa volta!
― Ok, Dárius,
mas, qual a alternativa? As pessoas só conseguem levar em frente se alguém
estiver o tempo todo a lhes aparar as arestas do mundo com histórias da
carochinha... faço o quê com isso? Agora, quando a gente entra em ação, é
preciso apagar as ideologias, limpar os sentidos para se deixar guiar pelos
instintos, o medo carnal. Acredito no que sinto, não no que minto.
― Hoje, quando
olho pra dentro, descubro pouco medo em mim.
― Já tinha
percebido. Vou ser muito direto. Isto não me agrada, não ouça como julgamento
sobre você e suas motivações, só não quero minha equipe correndo riscos
desnecessários.
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