segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

a polícia das famílias - II




A Luzinete, a moça que cuida da minha irmã, falou que já acabou a hora do parquinho, é a hora que eu menos gosto do dia: voltar pra casa. Pra começar a gente mora num apartamento diferente das outras pessoas, grande, vazio, nunca toca música, ninguém faz barulho, e a mamãe deixa tudo muito arrumado.

Arrumado DEMAIS, nada na nossa casa nunca sai do lugar certo. Um lugar pra cada coisa, cada coisa em seu lugar, ela vive falando. Mamãe é muito, muito nervosa, tem mania de arrumação e limpeza, toda vez que ela tá no computador eu vejo ela estudando sobre germes e bactérias. Ela se tranca no quarto pra chorar.

Tem três moças que trabalham aqui, a Luzinete, a Marilda e a Cida, elas têm que lavar as mãos a toda hora com álcool-gel senão vão pra rua. A Cida é a mais faladeira, que eu gosto mais também, outro dia ouvi ela dizendo que a mamãe não tem vida, que ela vive encaramujada neste apartamento.

Encaramujada, nunca tinha ouvido essa palavra mas entendi na hora o significado. Tem palavras que são assim, explicam logo de uma vez, outras a gente nem percebe de tão fáceis, e algumas são como as bolhas de sabão: quando a gente acha que pegou elas, elas estouram na nossa cara e fazem cócegas no nariz.

Eu acredito nas palavras, mas não acredito nas pessoas porque as pessoas têm a mania de falar uma coisa e fazer outra. Se o mundo fosse feito de palavras que só querem dizer uma coisa não seria todo torto como é. A minha mãe não deixa ninguém falar palavrão, ela diz que é muito feio. Só o papai às vezes fala um monte de palavrões.

Quando eu era bem pequena, minha irmã ainda era bebê, eu ficava tentando fazer o tempo parar. Nunca consegui. Tudo por causa da Cida que ficava me dizendo que eu podia fazer a mágica de “sumir com a hora”, ela me dava um relógio velho e me dizia pra ficar quietinha dentro do armário. O tempo que eu agüentasse não tinha passado de verdade, era pra sempre só meu.

Demorei muito até entender que os outros relógios não tinham parado enquanto eu me escondia, as coisas todas continuavam a acontecer e só comigo não tinha acontecido nada. Acho que era o jeito da Cida me proteger, ou sei lá, ela é assim mesmo, cheia de potocas e histórias da loira do banheiro.

Mas não desisti, mudei só o caminho de chegar aonde eu quero: se não posso parar o tempo do relógio, vou parar o tempo em mim. Porque ficar igual aos adultos é que não vou, de jeito e maneira, não vou namorar, não vou casar, não vou ter filhos, não vou ficar velhinha ― se deixarem, nem morrer eu vou porque viro estrela de purpurina.

Se fosse perguntar ninguém gostaria de crescer e virar grande, as pessoas apenas deixam isso acontecer por falta de imaginação e cansaço e também preguiça. Quando eu olho à minha volta vejo que as crianças são todas diferentes, mas os adultos parecem muito iguais, como se tivessem desaprendido a coisa importante que sabiam.

Gente grande parece que gosta de resolver um problema criando outro maior ainda. Não falha nunca. As coisas estão dando errado? Faz mais um pouco do mesmo que estava fazendo antes, e se mesmo assim tá zoado, continua, porque o importante é que uma idéia esteja certa mesmo se o mundo tem que ficar de ponta cabeça.

Pois é, mas foi direitinho o que aconteceu aqui em casa quando a minha irmã acabou criando uma baita confusão. Eu tenho certeza que aquele moço não fez nada, mas ninguém nem quer me ouvir.


Um comentário: