domingo, 24 de agosto de 2014

Sezefreo Taveira (2)


Ignoro se ele era alagoano ou mais um dos muitos imigrantes portugueses estabelecidos em Maceió que enriqueciam no ramo de tecidos, passamanaria, secos e molhados, e terminavam comendadores antes de se retirar para a terrinha. Porém, no bangalô da rua do Farol, na exuberância equatorial do jardim, caminhando pela sombra de árvores tronchas com o mormaço equatorial, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota ― a esposa do Sezefredo Taveira.
O passado é esse animal que nunca termina de agonizar, até hoje me maltrata não ter retido o nome daquela deusa, a jovem senhora que a cidade, uníssona, proclamava adúltera. A mulher do Sezefredo. As coisas sem forma são as mais pronunciadas por crianças: recordo-me especialmente de seus olhos garços, cintilando infixos entre esverdeados e azuis, uma cor na fronteira de céu e mar. Toda vestida de branco, ela se aproximava da varanda do sobrado e seu olhar seguia o trajeto do amante que vinha caminhando pela calçada defronte, pausado, elegante, insaciavelmente feliz.
Quando ele passava diante da varanda, ela lhe sorria, e nesse sorriso, que tornava mais oscilante a cor dos seus olhos, fremia um universo de desconhecidas volúpias, toda a glória da carne à espera. Possivelmente, a memória, com suas tintas falsárias, pintou-a para mim de branco, envolta em sedas e tafetás na antecipação do êxtase vespertino numa alcova misteriosa. A cama larga, de patente, haveria de ter travesseiros altos e rendados e castos lençóis de linho cheirando a alfazema, e não faltaria mesmo um mosquiteiro para resguardar o idílio da investida dos piuns vindos dos mangues e sarjetas.
Inclinando levemente a aba do chapéu chile, roupa de imaculado linho cru e sapatos de duas cores, o amante dobrava a esquina saudando-a uma última vez. Ela se retirava da janela (e da vista da molecada escondida e à espreita), ia dedicar-se aos afazeres domésticos, cuidar do de-comer do marido manso; sumia no interior do sobrado cheio de vasos de flores e bibelôs sobre o piano.
Ninguém perdoava ― embora muitos, silenciosamente, compreendessem ― Sezefredo Taveira por dividir a beleza deslumbrante da mulher, usufruindo a meias (quiçá a quintas) o lânguido pestanejar daqueles olhos garços. Não ousava separar-se dela ou matá-la, apesar da tradição local assegurar aos machos traídos em seus brios pronta absolvição no tribunal do júri, caso resolvessem, como então se dizia, “lavar a honra com sangue”.
Nisto residia o mais arcano aspecto que o mundo confrontava ao olhar e à fantasia de menino: mal podia imaginar como era possível aos adultos viverem na confusa amálgama de putaria e moralismo em que, efetivamente, vivem. Mas é inegável que o arranjo do casal a três bafejou aqueles anos distantes com a doce maciez da infância dos curumins; a mansão Taveira, crivada de sacadas, cegas janelas e vitrais coloridos, em sua rotina devassamente plácida, no balançar das copas das mangueiras e cajueiros do seu jardim com a viração no fecho da tarde, foi assim me ensinando paciente cada rococó da inesperada arquitetura do desejo.
E foram aquelas duas palavras, tão imbuídas para mim de misturados sentidos, que tiveram o poder de extorquir a única opinião política que cheguei a ouvir de meu pai. O grande silêncio gravado na parede da memória, a mudez rombuda e obstinada de papai. Foi na época de uma grande eleição, a nossa casa, normalmente pacata, estava cheia da parentada vinda do sertão brabo; alguém comentou que Sezefredo Taveira declarara publicamente seu apoio à candidatura Góis Monteiro.
― Quem, o corno? Belo incentivo o Silvestre teve, um monte de bacharelismo em papel de jornal... Parolagem!
― Se ao menos ele botar comida nos comícios do Góis Monteiro, já é alguma coisa. Mas rapaz, é verdade verdadeira, fato sabido e havido por certo, a bandalha no palacete do Comendador come solta e sossegada?
― Dizem que ele gosta demais da ingrata; tem o coração mole, é o que é. E depois, fazer o quê, se nos particulares do amor, tudo que não pode, manda?
― Ah, mas não se preocupem, cornos somos todos ― fosse pelo teor da assertiva, fosse por papai ser orador bissexto, fez-se pesado silêncio ― Não se iludam: nas eleições, todo mundo é corno.
― Oxe, mas que conversa é essa, macho velho? E como é isso?
― É simples, na política o chifrudo é o povo, sempre o último a saber.



Um comentário:

angela disse...

Vai que vai longe essa história. ..rsrs