domingo, 24 de novembro de 2013

os apátridas (epílogo)



Na situação sem saída em que me encontro, não tenho outra alternativa que não seja pôr um fim a tudo. Será nesta pequena cidade dos Pirineus, onde ninguém me conhece, o meu ponto final. Peço-lhe que transmita meus pensamentos ao meu amigo Adorno, e lhe explique a situação em que me encontro. Não há tempo suficiente para que escreva todas as cartas que gostaria.
Nunca li nada escrito por Walter Benjamin. O que conheço das suas idéias é de ouvir falar. Mesmo estas linhas que transcrevi acima, me foram reproduzidas de memória por Henny Gurland, quando a encontrei anos mais tarde em Londres. Depois disso, perdi-a de vista, nunca soube do destino posterior dela e de seu filho. Acabei por me fixar nos Estados Unidos após a guerra, e só agora, exatos quarenta anos passados dos fatos aqui relatados, é que reuni coragem para escrever sobre algo que ainda dói como se tivesse acontecido ontem.
Acredito que sejam as últimas palavras escritas por um dos maiores pensadores do século vinte. A senhora Gurland precisou destruir a carta que as continha, premida pelas circunstâncias ameaçadoras de então. Seguindo as instruções do professor, o manuscrito da mala preta foi entregue a um homem identificado como Charles Marcel numa praça de Madrid depois de contato telefônico.
Naquele dia, retornei rápido para Port-Vendres. Não sentia cansaço algum, estava aérea, despreocupada, com a sensação de que o mundo perdera um pouco do seu peso insustentável. Lembro vagamente de ter encontrado três mulheres na volta, duas das quais conhecia de vista, que também faziam a travessia para o lado ocidental. Conversamos brevemente, trocamos informações sobre o trajeto e nos despedimos. Não dei importância maior ao fato, afinal, eram muitos os que tentavam a sorte nas montanhas naquele período nebuloso.
Poucos dias durou a minha alegria, porém. As más notícias, como de hábito, não tardaram: Walter Benjamin se suicidara em Port-Bou. As autoridades da fronteira espanhola avisaram ao grupo que eles seriam devolvidos à França, faltava-lhes o passaporte com visto de saída da França. Não havia nada a fazer, vigiam novas diretrizes aduaneiras: os vistos de entrada expedidos em Marseilles tinham perdido a validade, legalmente, não poderiam cruzar a Espanha. Os três caíram numa espécie de limbo, uma vez que não possuíam os documentos (cassados) de origem, passavam agora à condição de apatrides, ciganos, não-cidadãos sem eira nem beira.
Vivíamos na era das “Novas Diretrizes”, em que cada escritório governamental de todos os países da Europa parecia dedicar tempo integral a decretar, revogar, baixar e suspender novas ordens e regulamentos imigratórios. Era a barbárie na sua feição burocrática. Sobreviver não era só uma questão de se esconder nos sótãos, porões, campos e florestas, mas também de aprender a passar pelos buracos, desvãos e escaninhos da diplomacia em colapso. Algum funcionariozinho imbecil, em alguma repartição cinzenta, teve uma idéia... e conseguiu quebrar a espinha do Velho Benja!
Il faut se débrouiller, diziam-nos, é preciso ter a audácia e a malícia de cortar pelo nevoeiro, achar um caminho em meio à derrocada geral de valores que as guerras trazem inevitavelmente consigo. A maioria de nós se virava como podia, forjando tíquetes extras de pão e leite para as crianças, contrabandeando remédios para os doentes, ou falsificando documentos, permissões de qualquer tipo; outros, “colaboravam” com as forças de ocupação. Benjamin não era colaborador, nem débrouillard, mas uma dessas plantas frágeis que a civilização só consegue manter vivas em condições ótimas de razoabilidade e delicadeza.
A única certeza que carregava era a de que, nem ele ― e muito menos seus preciosos escritos ―, em hipótese alguma, voltariam para as mãos da Gestapo. O percurso acidentado o esgotara animicamente, estava certo de não conseguir repetir a façanha. Confessou-me durante a escalada que trazia morfina suficiente para tirar sua vida várias vezes, “caso sobreviesse o pior”. E foi o que acabou fazendo, ao ver-se acuado. Pressionadas pela repercussão do suicídio, as autoridades espanholas foram forçadas a revogar suas diretrizes kafkianas e liberaram seus companheiros de viagem.
Recentemente, o professor Gershom Scholem, melhor amigo e curador da obra de Walter Benjamin, me telefonou de Londres; falamos do seu trabalho e daquela sua última caminhada. Ele se interessou por cada detalhe que consegui lembrar, ao final, disse-me que nunca tinha ouvido falar da tal pasta preta, “até agora, ninguém sabia que tal manuscrito sequer existisse”. O mesmo me foi dito por outra amiga dele, a professora Hannah Arendt. Permanece até hoje o mistério sobre o paradeiro daquela mala cujo conteúdo era mais importante do que a própria vida.
Cada época sonha a seguinte. É incrível como um filósofo tão profundo, vivendo enfurnado em bibliotecas, um crítico apaixonado por autores do passado, tenha sido capaz de antever com tamanha lucidez as múltiplas configurações, padrões e formas do mundo contemporâneo. Vivo na América, o maior shopping center do planeta, onde o Velho Benja nunca pôs os pés, e, no entanto, este país encarna como nenhum outro a utopia destrambelhada que ele profetizou. O Hipermercado onde tudo e todos são commodities, Grandville, estão aqui: no sonho orgulhoso de liberdade, na desmesura dos arranha-céus, na imensidão das highways, no mais fútil dos modismos.
Tudo ainda me magoa tanto.
Às vezes me pergunto se a memória me pregou uma peça, depois, penso que não, poderia ter inventado tudo: os Gurland, a route de Lister, as mulheres que encontrei na volta, a patrulha nazista, mas não a maldita pasta preta à qual aquele pobre náufrago se agarrava. O que conteria? Aparecerá algum dia em um depósito velho de Madrid ou Zanzibar? Será que este livro perdido poderia ter aberto os olhos da humanidade e evitado futuras guerras?
Acontece que a sabedoria não se recebe, é preciso descobri-la por si, merecê-la ao final de um trajeto que ninguém pode fazer por nós, do qual ninguém poderia nos poupar ― porque a sabedoria representa um combate, derrota e vitória: ela é um ponto de vista pessoal sobre as coisas. Isto aprendi no alto da montanha.


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