domingo, 8 de setembro de 2013

os construtores de instantes (parte 1)



            Sérgio chegou em casa à noite bastante cansado. Tomou banho, mudou de roupa e só então se juntou a Doralice na sala de visitas. Tendo acabado de ligar a TV quando a empregada os chamou para jantar, não a desligou quando foram sentar-se à mesa.
― Não gosto desse tom, o foco excessivo em você!...
― Que tom? Que foco? Do que é que cê tá falando, Doralice?
― Aí em cima, no primeiro parágrafo: Sérgio isso, Sérgio aquilo, chegou, tomou banho, se trocou, ligou a TV... parece que só você trabalha, que eu passei o dia inteiro em casa coçando!
― Mas... eu não falei nada disso! Tá louca?
― Claro que não foi você, Pedro Bó. Quem falou, ou melhor, escreveu isso, foi o narrador neutro em terceira pessoa que nos observa.
― Como assim, que terceira pessoa? Cê tá me dizendo que tem um amante, ou que tem alguém espiando a nossa vida?
― Não, Sérgio, quem espia as nossas vidas é o Obama. Esse cara, ou essa cara, escreve a nossa história porque ela acontece, e a nossa história acontece porque alguém a escreve. Vai ver nem podemos decidir nada na trama...
― Da minha parte, declaro que, tirando o meu chefe, a minha mulher, os filhos, a mãe, o cachorro, a sogra, ah, e a empregada, mais ninguém manda em mim ― sacou o celular e pôs-se a checar mensagens.
― Viu só, viu só? Você não ia pegar o celular, “ele” precisou colocar a informação aí porque deve ter alguma função na história em que nos meteu!
― Sabe o quê, meu amor? Você anda tomando aperitivos a mais antes do jantar, não cai bem com os antidepressivos... estava pra dizer há algum tempo. Eu quis pegar o celular e ponto, ninguém decide por mim, lhe garanto.
A empregada já dera o jantar das crianças e supervisionava seus banhos quando Sérgio se levantou da mesa sem terminar de comer para lhes dar o beijo de boa noite. Doralice deixou-se ficar ali, o olhar perdido, sem escutar o noticiário mundo-cão que vinha da sala de TV.
― Tá mais calma agora, meu bem? ― ele adotava um tom conciliador, temia mais uma das freqüentes brigas que irrompiam depois das crianças serem postas para dormir.
Qual a diferença entre este homem e qualquer outro? Pertencemos àquele grupo com renda acima da média, filhos em colégio particular, duas viagens por ano, casa de campo em condomínio privado, um círculo de amigos amplo... Não falta nada, nossa vida é quase tão simples e protegida como parece ser. Estamos casados há dez anos, não se pode dizer que o Sérgio dê a impressão de ser mais jovem do que é, mas ao menos ele dá a impressão de se sentir mais jovem do que já foi. Mantém curtos os cabelos que começam a ficar grisalhos, veste as mesmas roupas e adota o comportamento dinâmico, expansivo e superficialmente cínico do seu grupo de amigos motoqueiros. Born to be wild.
― Ei, ei, ei, não precisa pegar pesado comigo assim! Temos sempre que brigar depois que as crianças vão pro quarto?
― Ah, então agora cê tá acompanhando a narração em “off”? Quando você ficava bonito na foto não te incomodava tanto, né?
― Doralice, por que você sempre tem que complicar tudo? Por que tudo entre nós acaba virando uma tragédia grega, um dramalhão mexicano?
― Porque estou tentando te abrir os olhos, Sé... Toda vez que proponho um assunto sério, você vem com essa de que tô pegando pesado. Fora do teu trabalho, cê desenvolveu uma alergia a qualquer coisa que te lembre da realidade!
― Pronto, lá vem a sua acusação de costume: o Sérgio não entra em contato com a parte difícil da vida, o Sérgio não liga, o Sérgio vive num mundo só dele... Talvez seja melhor me plugar como você, aí nos tornaremos a família faixa preta, depois de você e das crianças, só falta eu também tomar remédio controlado!
― Sérgio, a gente se parece com todo mundo. Não somos diferentes de ninguém à nossa volta, já reparou nisso?
― E isso é tão ruim assim?
― Amor, talvez nem sejamos gente de verdade, mas personagens de alguma história que não nos pertence! Isso é suficientemente grave pra você dar alguma atenção?
― Está tarde, vamos dormir Dodô. Paz...
Não adianta, nunca adianta. Sérgio deixa toda a energia de que dispõe na mesa de trabalho, todo o resto deve deslizar sobre trilhos e não dar trabalho. A vida íntima para ele é um playground, nunca um assunto sério demais, uma questão. Tomei o remédio pra dormir e deitamos. Ele adormeceu antes de mim.


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