domingo, 29 de setembro de 2013

os construtores de instantes (final)


Antes que pudesse impedi-lo, correu para o alto de um morro e pôs-se a gritar como um louco. Dirigia-se em altos brados, pregando feito profeta de rua, aos súditos daquele estranho reino. Belo de um porra doida esse meu marido, defensor dos frascos e comprimidos, um energúmeno em guerra permanente com o mundo.
― Dragotiranenses, irmãos e irmãs, plebe rude, meus iguais, meus semelhantes, hipócritas e queridos, vocês já não precisam mais se submeter à maldade do dragão! Vocês me escutam?! As mortes inúteis podem, e devem, cessar!
Saí correndo no pinote doido, pra ver se o detinha antes de chegar ao topo, gritava, gesticulava, me descabelava ― mas dizer que alguém pára esse surtado depois que ele começa? Sérgio vive lançando campanhas contra o avanço contínuo da estupidez, a qual, na sua modesta opinião, atravanca a marcha do progresso e a confraternização universal dos povos.
― Sérgio, cê tá maluco? Criando quizumba num país desconhecido, com pessoas que nunca viu?... Cala a boca, cretino! ― me esgoelei em vão.
Lembrei do revólver, procurei nos bolsos sem parar de correr. Em vez da arma, encontrei uma flor murcha, pouco útil diante da confusão que estava se armando. Uma multidão se havia reunido ao pé da montanha pra ouvir o sermão do meu marido, enquanto isso, os cortesãos confabulavam ameaçadoramente e o rei posicionava seus exércitos.
― Dragonenses, tiranianos, por que não usais o que já possuís, as ferramentas que tendes nas mãos?! Há muito que dominais os meios de vos livrar dessa opressão sinistra, esperar, por quê?
― Sérgio, mas que catso?... ah, meu Cristo, lá vamos nós, de novo...
O primeiro tiro de canhão foi seguido de uma longa salva de obuses e o silvado arrepiante de uma nuvem de flechas voando... na nossa direção! Ele virou os olhos de celerado pra mim, então acompanhei na mímica do seu rosto transfigurado a ficha caindo.
― Caralho... Sujou, Dó, e agora?
― Agora?, agora é: hit the road Jack and don’t come back no more.
Puxei-o pela camisa e escapamos dali, escorraçados até pelas pedradas do zé-povinho, descendo aos tropicões a encosta traseira do morro. Tava puta das calças com ele, e não fiz muita questão de esconder.
― Isso que dá levar luz a surdo, seu tapado!
― Só quis ajudar...
― Essa é a frase de abertura de todas as suas batatadas. Seu samba é de uma nota só?
Demos com uma trilha no meio do mato que se nivelou progressivamente até sair num descampado de onde seguimos por uma estrada de chão batido. Doralice não parava de reclamar das minhas iniciativas humanitárias. Continuávamos correndo, com as balas de canhão caindo cada vez mais perto.
― Cê viu, Dó? A estrada tá nos levando de volta.
― Mas, como?, não pegamos nenhuma bifurcação...
― Sei lá. Este limbo que nós caímos desde ontem à noite parece um ninho de tudo que existe, mais o que nunca foi sonhado... Tudo aqui é verso e reverso.
Invertemos o sentido da nossa fuga e nos afastamos do reino do Dragão Tirano. Senti que ela progressivamente voltava a confiar em mim, era como se agora fosse eu a guiá-la por uma teia de cidades que se sucediam num território instável e desconhecido.
Com uma lente de aumento e alguma atenção, bastava fixar um ponto, não maior que uma gota de sereno, pra ver em seu interior telhados, antenas, caixas-d’água, jardins, tanques, prédios, pontes, pistas de corrida de cachorros; o ponto não permanecia imóvel: em um ano, já está grande como um limão, depois, um prato de sopa, e eis que se torna uma cidade de tamanho natural, contida numa outra, invisível, uma nova cidade que abre espaço em meio à primeira cidade e a impele pra fora. O entorno cresce em esferas concêntricas como epiciclos, uma árvore-mundo cuja circunferência está em toda parte e o centro em lugar nenhum, exercendo pressão centrífuga de cidades que despontam umas de dentro das outras, mas é difícil distingui-las, as cidades originais e as vindouras, a crescer pra dentro e pra fora indefinidamente.
― Pra quê continuar, se todos os lugares são o mesmo e único?
― Sérgio, você pode partir quando quiser, mas você chegará a um outro povoado, igual ponto por ponto; o mundo é recoberto por uma única metrópole que não tem começo nem fim, só muda o nome no aeroporto.
Mas a região das cidades também acabou e atingimos setores desolados e frios, os confins longínquos. Apavorados, em silêncio, do fundo da nossa dimensão infinitesimal, experimentávamos a proximidade aniquiladora da história das galáxias e buracos negros. Bilhões de anos-luz aconteciam na duração de um piscar dos sentidos. Doralice apertava a minha mão enquanto rolavam aquelas imensidões de pesadelo.
Subitamente, uma paisagem perfeitamente normal.
Um pasto, grupos de árvores, colunas caídas e cobertas de hera, e... uma porta elegante: branca, maçaneta e dobradiças douradas. Uma porta sem sentido, que não dá acesso a parte alguma; pode-se-lhe dar a volta completa. Porém, quando aberta, vislumbra-se uma maravilhosa paisagem ensolarada, com flores estranhas, montanhas verdejantes e rios claros como diamantes.
― Bom, nós ficamos por aqui, dessa porta em diante é só você...
― Como assim?! Que história é essa de não vir comigo, Doralice?
― Vou cuidar da minha vida, e a minha vida não é com você. Toma esta flor, ela está murcha, mas não ligue: é uma orquídea, vai brotar de novo. Entre uma floração e outra, passa a vida, o tempo, o universo.
― Mas... e os nossos filhos, nossa... nossa casa, não quer nem tentar voltar?
― Sérgio, nada daquilo existia: nosso casamento, a casa, os filhos... Eu sou uma fantasia sua, achei que tinha percebido, meu nome é composto, como a minha personalidade é uma mistura das mulheres da sua vida. Vá atrás de uma mulher real, não de uma que você criou.
― Você... só existe na minha cabeça?
― Sim, e lhe agradeço muito ter me inventado. Ganhei existência, sou uma criatura sua, mas agora eu preciso me criar, me reinventar. É a minha chance de ser alguém, e a sua também.
― Vou sentir saudades, Dora...
― Eu também.
― Como sempre, você está certa. Melhor tomarmos cuidado: sentir saudades é puxar conversa com os mortos. E precisamos ficar bem vivos.
― Lembre-se disto: salvar os outros não vai salvar você, nem vice versa ao contrário. Encare de frente o que tiver de fazer, beije no coração, ame rolando no chão, não esqueça de manter objetivos, e não esqueça de os trocar de vez em quando. Cuide bem do seu amor.


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