domingo, 11 de agosto de 2013

die Präparatoren (parte 1)



            ― Não há síntese que faça ponte entre os contrários. A história do mundo acontece aos trancos e barrancos, tropeçando em contradições não resolvidas, mas disputadas até que haja vencedor e vencido. O todo pode ser pensado, não vivido. Só se pode viver aumentando ou suportando os dilemas, cada um experimenta desde sempre o dilaceramento de contrastes hostis. Nascemos de um determinado lado dessa contradição, isso faz parte da contingência do existir, assim como não escolhemos o próprio corpo, a comunidade da língua, nem aquelas comunidades de corpos chamadas família, povo, etc. Não escolhemos nosso lugar, apenas o podemos aceitar. E, no entanto, é preciso permanecer fiel à terra...
            Fez uma pausa.
Respirou fundo. Virou o rosto, semi-encoberto pelo chapéu de abas largas e os óculos escuros, desviando o olhar do verde da paisagem coado pela renda branca das cortinas. Afastou-se da janela, descobriu os olhos faiscantes.
Era a primeira vez que Fidencio Estigarribia se encontrava com um deles. Sentia os pêlos do braço se eriçando contra a sua vontade. Diante dele estava um homem pequeno e encurvado, de voz débil, vestindo roupas antiquadas alguns números acima da sua envergadura franzina.
Um macaquinho usando um grosso casaco escuro naquele calor. Sim, parecia um monito de jaleo, movendo-se ridiculamente pela cabana de madeira em despropositado estilo bávaro. Sem embargo, pressentia nele o aço de uma determinação desconhecida. Lembrou do que sempre lhe haviam dito sobre aquela gente: nunca andavam desarmados.
Aguardava, sabia que ainda não era a sua vez de falar. Não deveria se iludir com a aparente fragilidade física.
― E exatamente por ter permanecido fiel a nós em todos estes anos de colaboração, é que vim conhecê-lo pessoalmente. É, desde cedo percebemos que havia um talento incomum em você... desde que era um Präparator...
O desgraçado golpeava no ponto mais dolorido. Sem pressa: consciência, autocontrole e cálculo. Aquilo era uma referência direta ao passado que não queria lembrar, ou seja, precisamente o que não podia esquecer.
― De fato, Herr Silberblick, trabalho com vocês desde os tempos do meu saudoso pai. São bons negócios: quando o senhor ri, eu rio também. E são business variados, sempre trazem proveito e aprendizado, devo dizer.
― Desculpe se o corrijo, mas você não trabalha com-nosco, e sim para nós. Não somos o seu único negócio, Fidencio, somos o seu cliente indispensável, o cliente que é seu dono. Sem nós você está falido, perde a proteção policial e o apoio político. Uma vida difícil, não? Agora me diga: como é que você imaginava a minha aparência? Um gigante de três metros, ou uma criatura de orelhas longas, olhos vermelhos e presas salientes?
― É verdade, são essas as lendas que correm por aí... Mas não sou de acreditar em chupa-cabra, senhor. Aceito o que vejo.
― Ah, muito bom, muito sensato de sua parte. Há nisso uma grande ironia do destino, veja, nós, que pertencemos a uma raça superior, nos tornamos seres diminutos, de ossos frágeis e quebradiços, intolerantes à luz, encurvados e frágeis como símios. São os azares da história... Foi necessário que nos escondêssemos, passamos a viver ocultos; os índios nos chamam de avá yvýpe: os homens do fundo da terra!
― Sim, mas aí já não existe fantasia: onde e como vocês vivem é um segredo completo. Nem mesmo eu, que trabalho há tantos anos pra...
― Perdão, Fidencio, mas... em que você acredita?
― Como assim? O senhor quer dizer, se a sua gente vive mesmo embaixo da terra? Ou se são...?
― Monstros? Mas claro que vivemos sob a terra, como acha que sobrevivemos mais de cem anos em perfeito anonimato? Negociar conosco é seguro porque não aparecemos, não fazemos barulho, nem incomodamos ninguém... Não lhe parece? Só que a minha pergunta é sobre as suas crenças mais, digamos, espirituais...
― Bem, sou devoto da Virgem de Caacupé...
― Que interessante, muito importante ter uma crença... Presta-se um grande desserviço ao espírito quando o separamos dualisticamente da vida material. Assim não o podemos defender. Bem ao contrário, o espírito deve ser reintroduzido na vida cotidiana, antes, a vida espiritual era o objetivo natural, o supremo valor. Isso acabou nos tempos modernos. O complicado e imprevisível mecanismo da sociedade tornou-se um universo de meios, que não se relaciona mais com um centro de significados. A consciência moderna fica perdida nesse emaranhado de meios, porém, a atividade humana pede que haja fins, valor em suas ações. Se queremos liderar um grupo qualquer, seja ele uma cidade, uma empresa, ou um povo, devemos criar um mito adequado a unir tal coletivo em uma visão comum. A religião tradicional simplesmente empalideceu, não se crê mais, apenas há a vontade de acreditar. A existência do mais valioso para o humano, a eterna eficácia daquelas forças que transformam o homem em homem, depende de que em algum lugar do mundo exista um mistério, isto é, uma força espiritualmente geradora que ligue as almas, que seja exercida e transmitida adiante. Que em algum recinto sagrado do mundo, e repetidamente, uma matriz formadora de mistério reúna dois ou três em nome do deus vivo. Só isso preserva o mundo.
As palavras ressoavam na cabana de decoração sóbria, mas Fidencio perdera o fio da conversa e havia retornado a uma época remota. Mesmo que tivesse vivido mil anos não teria conseguido esquecer aquela garota.

* Do alemão, die Präparatoren, os taxidermistas.

Um comentário:

angela disse...

não importa se moram no céu ou no inferno patrão é patrão.