7. METALEIRO 19:15
“Que-que-que
ca-ca-cagada do carai, do-dois pi-pi-pneu estorado, mano!”, Calunga, o gaguinho
do rolê, tartamudeava resmungão no seu dialeto de sílabas truncadas sentado no
meio fio.
“Só
nóis cruzar esse alemãozinho de novo pr’ele ver o sacode que vai tomar, vô
virar ele do avesso, fazer o cu dele sair pela boca... playboizinho de merda!”,
Marquinhos Paraná praguejava agitando a camiseta para os carros desviarem na
pista, enquanto Quilô empurrava o pau-velho até o posto de gasolina mais
próximo.
O líder planeja no início, antes de começar
a agir.
Único
a permanecer dentro do Monza, o chefe mantinha o controle do volante ouvindo as
rodas ferir o chão durante a subida rumo ao Seven Eleven. Um contratempo
fodido: deu pra trocar o estepe, mas ainda faltava uma câmara pro segundo pneu.
Achar um posto de serviços aberto àquela hora, domingão, último dia do ano, já
não tinha sido mole, que dizer de um borracheiro? Metaleiro destacou o Velho e
o Berinjela pra irem na captura.
Já tamo atrasado pra caralho na ponta
marcada com o Doutor Jordão. Esse velho papa-óstia é pior que furúnculo no rabo,
mas pode adiantar muito o meu lado. Não vou desistir de passar na mansão
mal-assombrada, nem que chegue lá meia noite!, quero ter as passagens e os
ingressos na mão ainda hoje, senão, não vai ter arrego.
Metaleiro
era um sujeito acima da média, e sabia disso. Tipo aquele carneiro que levanta
a cabeça acima do rebanho e enxerga alguns palmos à frente do resto ― um
ciclope em terra de cego, mas capaz de usar todo o alcance da vista única.
Descobrira em si próprio o talento gerencial e o desenvolvia pacientemente,
aliando a pertinácia com a ambição; plenamente consciente de que a sua
expertise é a mais valiosa desde que a humanidade aboliu a primeira versão da
lei do mais forte: sabe que a força está do lado daquele que exerce controle sobre
os outros. Metaleiro é um gestor de recursos humanos, um administrador de grupos,
líder hábil e agregador.
O verdadeiro método, quando se tem homens
sob as suas ordens, consiste em utilizar o avaro e o tolo, o sábio e o
corajoso, em dar a cada um a responsabilidade adequada.
Tinha
lido a Arte da Guerra de Sun Tzu numa edição vagaba que se desfez antes de
chegar à página sete do livro, mesmo assim, conseguiu decorar uma meia dúzia de
frases nas quais pensa constantemente, sem, contudo, compartilhá-las com os
manos da sua quebrada. Fazendo uso de meio neurônio, entendeu que no seu
pequeno grupo de comandados dispunha de uma unidade compacta de soldados, e
oficiais capazes de constituir o que o general-filósofo chamava de
estado-maior. Os cinco que o acompanhavam formavam justamente o núcleo duro da
sua falange; Metaleiro precisava tirar as meias sem tirar os sapatos, ou seja, transferir
know how para que eles pudessem se apropriar das táticas de suas conquistas,
sem, no entanto, discernir a estratégia que gerou as vitórias; na prática,
significava abrir para a elite dos manipulados uma parte dos segredos do
manipulador ― algo tão difícil quanto ensinar o truque sem estragar a mágica.
Esses cinco mano é o que tem pra hoje,
quando estiverem prontos, vão trazer outros, que depois trazem mais outros.
Pela ordem. Um exército de mané e zé-ruela tocando o terror, o pesadelo da
burguesia. É assim que é, mano, mas vai ser osso impregnar as idéia dessa
rapaziada sem noiar demais o Tico e o Teco. Vamo ver: tem o Quilô, de
quilômetro, forte como uma besta, e besta como uma besta; aí o Velho, o que
fala menos groselha deles todo; o Marquinho Paraná, trafica e roleiro; depois,
vem o Calunga, nosso irmão das bombas e dos fogo; ah, tem o Berinjela que,
bem... o Birinja é o Birinja e pronto! A gente dá o perdido pra não trazer ele
no rolê, mas o mala sempre cola nas parada que nós tá, aparece ninguém sabe de
onde, e vai ficando...
Encostado
na mureta da loja de conveniências, espera pitando uma guimba. Passou o tempo
em que seguia os cabeças da Independente, pensa que chegou a hora de formar a
sua própria organizada, com estatutos, regras e objetivos próprios ― os seus.
Na visão de Metaleiro, uma torcida organizada não deveria fazer demais o jogo
da imprensa, nem obedecer demais à diretoria do seu time; na sua avisada opinião,
as maiores agremiações de torcedores são mais cortejadas pelos políticos,
sempre atrás de currais eleitorais, sacrificando da autonomia no processo;
porém, um grupo menor, mais bem coordenado, com o rabo menos preso, estará mais
apto às ações que necessitam de maior ousadia. Um bom exemplo é o acerto que
está prestes a fechar com o Doutor Jordão.
8. NATASHA 19:00
“Meu
nome é Natasha,
uso
saia de borracha,
meu
negócio é bolacha,
entro
na balada na faixa”
Diante
do espelho de três folhas do camarim, iluminada por uma guirlanda de lâmpadas
feéricas, Natasha se maquia metodicamente usando seu melhor equipamento: um
estojo importado da Sephora. De vez em quando, ri sozinha lembrando a falseta
dos amigos da cena S&M.
Saia de borracha, uma ova, hoje vou
trabalhar toda emborrachada!
Ela
gosta de precisão, se corrige mentalmente, seu figurino para a sessão de logo
mais com o professor Camarinha praticamente não inclui borracha: botas de couro
com perneiras acima do joelho, collant de corpo inteiro em suplex, touca com
máscara cobrindo olhos e nariz, chicote de couro com nove tiras, sobretudo em
vinil elastizado com ultra brilho... e a super maleta metalizada das mil e uma
malvadezas, único acessório a fugir do pretinho básico.
Termina
de aplicar o corretivo de olheiras e começa a espalhar a base pelo rosto;
confere o resultado no espelho, retoma suas reflexões; decididamente, está numa
veia filosófica nesta noite. Talvez influenciada pela profissão do último
cliente do ano.
O professor é o tipo de cliente que eu
gosto: sabe o que quer, não é novo no babado, tem método, é discretíssimo, não
freqüenta as baladas e festas privê do mundinho (detesto misturar prazer e trabalho),
e, o melhor de tudo, paga bem.
Confere
o relógio digital ching-ling na cômoda, impulsiona a cadeira giratória com os
pés para alcançar o pote contendo pó no tom da sua pele muito branca; Natasha
desliza seu corpo esguio pelo estúdio multiplicado no reflexo triplo do
boudoir. No rosto de traços afilados, maçãs salientes e delicado queixo pontudo,
vai desenhando aos poucos uma máscara de sedução e implacável Nêmesis. O
personagem que compõe é uma mistura da Trinity, de Matrix, e da Mulher-Gato.
Não se pode entregar só o que o cliente
pede, convém dar um toque pessoal. A fantasia do pervo deve ser rigorosamente
montada no aspecto luxúria, mas pequenas surpresas no décor são indispensáveis.
É o que separa o poser do grande artesão da dor.
Aproxima
a face do espelho para traçar uma linha reta e fina em torno dos olhos com o
delineador; depois, pincela cuidadosamente duas cores de sombra nas pálpebras; com
a esponja, dá uma esfumada na tonalidade obtida e compara ambos os lados.
Perfeito. Adiciona a máscara para cílios e aplica os postiços: um olhar
imperioso em tons de azul e cinza.
Trepada straight, fodinha missionária,
posição papai-e-mamãe, são que nem feijoada com sabor baunilha; uma boa bosta!
Sexo só é sexo quando é kinky, quando tem fetiches, escravos, carrascos, algemas, pancadão...
Dedos
longos e unhas postiças despontam das luvas brancas com aplicações de strass.
Finaliza com um banho de perfume Salvador Dalí e um toque de Lolita de Lempicka.
Sim, Natasha é lenda, mito, na comunidade BDSM (bondage, dominação/submissão,
sadomasoquismo). A melhor dominatrix que um masoquista pode encontrar em São Paulo.
“Sexo
são, seguro, sensual e consensual”, seu lema virou bordão no métier.
Um comentário:
Uma vasta fauna...
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