quarta-feira, 20 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (II)




3. OSSADA 19:08

            O carro, um Monza de cor vinho, vidros filmados, vinha a toda pela avenida; seus ocupantes urrando o nome do time de coração, atirando latinhas vazias de cerveja nos outros carros, assobiando, xingando, braços pra fora, batiam na lataria marcando o ritmo dos seus cânticos de guerra, em suma, faziam um escarcéu capaz de acordar as almas antes do juízo final.
            “Sou Independente, eu sou,
            vou, vou dar porrada eu vou,
            e ninguém vai me segurar...”
            Os demais motoristas abriam espaço para o veículo apinhado de hooligans de uma das mais temidas torcidas organizadas da cidade: a Torcida Independente são-paulina. Que besta ninguém é.
Não havia motivo aparente para tanta festa, já que a final da Copa João Havelange (arremedo de campeonato brasileiro) ocorrera bem longe dali no dia anterior, em São Januário, subúrbio do Rio de Janeiro. O jogo entre Vasco e São Caetano, interrompido por causa do desabamento de um alambrado aos vinte e três minutos do primeiro tempo, logo após Romário sair contundido, deixou um saldo de cento e dezessete feridos, dois em estado grave.
Por um desses azares do azar, o Monza dos ultras deu uma fechada num motoqueiro que também vinha numa pressa de quem vai tirar a mãe da zona. Pilotando a CB 400, lá estava a figura esquálida do Ossada; que não se fez de rogado: gesticulou sugerindo-lhes uma prática sexual pouco ortodoxa, insinuando, en passant, que as genitoras dos rapazes eram praticantes assíduas.
Uma temeridade. Ossada tinha mais colhões do que miolos, mais sorte que juízo; assim que parou no farol, atiraram sobre ele um morteiro que quase arrebentou moto e motoqueiro junto. Com os ouvidos zumbindo da explosão e sangue nos olhos, Ossada passou a perseguir os fanáticos, ziguezagueando alucinadamente na avenida Giovanni Gronchi.
Que é que eu posso usar contra esses caras? Deixa pensar o que tenho dentro da mochila... Ah, já sei, o refri!
Lembrou da garrafa pet com refrigerante que carregava, tirou uma das alças da mochila, girando-a para a frente do tronco ― tudo isso sem diminuir a velocidade nem se distrair da louca perseguição. Chacoalhou a garrafa, emparelhou com o carro, abriu a tampa e esguichou o conteúdo gasoso no parabrisas do Monza, cegando momentaneamente o motorista. Desgovernado, o carro subiu na ilha da avenida estourando os pneus dianteiros.
“Aí seus cuzão, chupa que é de uva!”
“Nóis ainda te pega, alemão do caralho!”
Frederico Sassaki Heilbron, conhecido como Ossada era uma figuraça: galalau de um metro e noventa de altura praticamente desprovido de gordura, donde o apelido, que ficava mais irônico por seus pais serem ortopedistas. Da herança materna oriental, só o cabelo farto e liso, mas no restante era um perfeito viking... doidão. Segundo constava, desde os quinze até seus vinte anos atuais, teria passado no total uns cinco minutos sem estar sob os efeitos de algum entorpecente.


4. PROFESSOR CAMARINHA 19:10

            Osmar Camarinha, professor e doutor em filosofia, um dos maiores especialistas na Escola de Frankfurt, estava sentado no trono do banheiro esvaziando seus intestinos para a sessão marcada com Natasha. Havia tomado, como de hábito nessas ocasiões, uma mega dose de laxantes.
            Uma questão de higiene. E também de ordem, algo que preza acima de tudo.
            A atenção dele se fixava uma gota de água parada no bocal da torneira do lavatório. A gota não caía nem aumentava de tamanho, como um batimento cardíaco suspenso entre a sístole e a diástole. Ou como a sua carreira acadêmica.
            Um novo arranco de cólicas desentranhou os últimos restos de conteúdo das suas torturadas tripas. Só líquido, e já quase incolor. Pensou com raiva nos seus inimigos dentro da Universidade — uma carreira até então brilhante, doutorado defendido na Alemanha, artigos publicados em importantes revistas européias —, pra vir um bostinha, que mal conhece Hegel, bloquear sua mais que merecida ascensão!
            Descuidara do aspecto partidário, apesar de ter feito a lição de casa na política institucional. Networking é tudo hoje em dia, mas não ser de esquerda nas humanidades é uma merda. Ontem, hoje e, talvez, sempre.
            Acabou de largar sua livre-docência no meio, decisão custosa, dolorida, mas necessária. Sem essa de ficar malhando ferro frio. Mas a vida também traz suas compensações: estava em processo de se transformar num intelectual midiático, um alargador das fronteiras do pensamento, desses que escrevem em jornais e revistas de prestígio suas prestigiosas reflexões sobre os impasses da contemporaneidade.
            O telefone toca na sala, ele se levanta e corre a atender marchando como um pingüim por causa das cuecas, arregaçadas até os tornozelos.
            "Alô, morzão?, tá tudo bem com você? Estão todos aqui em Guaxupé perguntando por você, quando chega, etc., é, eu sei... sei como é importante pra você participar dessa reunião, pra sua carreira e tudo mais, o Theodoro só fala que quer o pai..." a pentelha da mulher e da família dela não se conformavam com a ausência do famoso professor Camarinha no rastapé de fim de ano da caipirada.
            Que estopada aquilo deve estar, santo Deus.
            "Também tô morrendo de saudades de você môre, te ligo amanhã pra contar como foi, tá? Reza muito por mim, você sabe, é só uma festinha, um sarau na modesta cobertura duplex do editor-chefe... É, meu nome saiu na primeira página da edição de hoje, cê viu? Tá, môre, beijão, te ligo amanhã, beijo...", desligou aliviado, pegou o jornal para reler seu artigo. A repercussão do texto já era intensa; saboreou a releitura em pé, antes mesmo de limpar a bunda.
            Na perspectiva prevalente da modernidade ocidental, ao menos desde o romantismo aos nossos dias, o amor configurava um ideal de realização afetiva que ensejava um tipo de felicidade no qual o êxtase da dissolução no outro era compatível com a transcendência do desejo individual. Atualmente, nestes nossos tempos de narcisismo feroz e consumismo desenfreado, o amor se encontra como que privatizado, dessacralizado; pouco a pouco, aceitamos a noção de que a experiência amorosa pouco mais é que uma função fisiológica, um encontro fugaz regido pelo acaso e cujo destino inelutável é a provisoriedade.


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