domingo, 5 de agosto de 2012

O corno do Bife (parte 3)




            O professor Mortimer e o capitão Blake, da Scotland Yard, tinham ido passar algumas semanas na encantadora Ilha de São Miguel, a Ilha Verde dos Açores; uma tradição muito antiga considera-a como um dos cumes submersos de Atlântida, misterioso continente desaparecido de que fala o grande filósofo Platão; o professor e o capitão, que não tira o cachimbo da boca nem para ir à casa de banho, vivem à procura do imprevisto e de novas aventuras, por isto logo se metem a explorar as gargantas e desfiladeiros selvagens das proximidades do vale vulcânico das Furnas, dando com a entrada de uma profunda caverna na região conhecida como Forno do Diabo; assim começava o enredo do “Enigma da Atlântida” de Edgar P. Jacobs, história aos quadradinhos que tinha na capa um enxame de naves parecidas a mosquitos encarnados a fugir da Terra; assim me sentia eu, um fugitivo do planeta azul, um náufrago à deriva no Atlântico, assim passei a viver pelo resto da vida: sempre em fuga, sempre pronto a abandonar tudo e todos a qualquer hora e seguir adiante; uma vez perdido “o” lar, percebe-se que sobre a terra não existe lar, apenas hospedagem; sem pouso, nem repouso, só estadia.
            Pousamos em Portugal, aliás, no Porto; “segue sempre por bom caminho”, como dizia o Aniki Bóbó.
            Grândola, vila morena
            Terra da fraternidade
            O povo é quem mais ordena
            Dentro de ti, ó cidade
            A mui nobre, leal e invicta cidade do Porto; aqui moram tios, primos, amigos, parentes e a Avó paterna; o Menino se lembra de quando a mamã do Pai veio visitá-los em Angola e foi-lhe servido mamão: “se não precisei até hoje da papaia, não há de ser agora que a hei de experimentar”; chamam a Avó de mulher-de-armas, pois criou quatro filhos sozinha na dureza do pós-guerra depois de perder o marido para a tísica (e também, dizem, para a boêmia), ela é a senhora Directora de uma escola para meninas que abriu naquele ano para os rapazes; como o ano lectivo ainda não terminara, teria de cumprir um mês e meio antes das férias; no intervalo grande do colégio, enquanto abro a merenda, olho em volta e não vejo mais do que três gajos em todo o pátio ― jogar bola está descartado, paciência, vamos pular corda e brincar ao passa-anel pela primeira vez na vida; durante as aulas, o Menino acumula bilhetes sem assinatura contendo declarações das rapariguitas ― fartura inédita, nunca antes, nunca depois.
            ― Quero, posso e mando! ― o lema da Avó é conciso em cada palavra, verdadeiro em todas as sílabas, adamantino letra a letra; teria existido alguém capaz de a ter feito realmente abaixar a grimpa?, se calhar, nem o Marcelo Caetano, nem o próprio Salazar.
            Este último era um nome que carregava medo e fascínio e raiva e saudade; apenas um nome, mas que nunca saltava sem adjetivos da boca dos adultos: “o fascista do Salazar”, “assassino do Humberto Delgado”, ou, “respeito havia nos tempos do Salazar, não era esta pouca-vergonha”; com efeito, a metrópole mudara muito, os ventos sopravam uma brisa irresponsável, os barómetros de casinha (moça, bom tempo; rapaz, mau tempo) registavam o ar menos opresso, as passeatas a se formar espontaneamente nas esquinas, as tertúlias a brotar como cogumelos nas tascas, as cantorias, as minissaias, as bolsas de ráfia, as calças de ganga apertadas nos tomates, os saltos plataforma ― o Porto, cidade murada de ruas apertadas, de casas espremidas, de prédios unidos à ilharga e passeios estreitos, a foz bravia dos heróis do mar, capital primeira a que os mouros nunca deitaram a unha, tudo como que se tinha banhado de um colorido feérico e musical; aspirávamos inebriados o perfume efémero da liberdade, pois que ainda era tempo de cravos (“rosas em janeiro, minha rainha?”).
            Em cada esquina um amigo
            Em cada rosto igualdade
            Grândola, vila morena
            Terra da fraternidade
            Os meninos, porém, vão ficar com a família da Mãe no norte, lá na aldeia; toca a andar para Trás-os-Montes, Serra do Marão acima, e para cá do Marão, já diz o adágio, mandam os que cá estão; cá neva, mas não se esquia; cá também se fala muito de política e de muitas siglas, mas estas não parecem tão ameaçadoras como as que se ouvia em Luanda: MFA, PPD, CDS, PS, PCP, era o berda-merdas do Bochechas pra cá, o filho-da-côrta do Cunhal pra lá; tudo que consegui saber ao certo é que o Álvaro Cunhal tinha metido nos chavelhos de nos vender a Moscovo (e, Deus seja louvado, não conseguiu), quanto ao Bochechas, consta que nunca tomou a sopinha que a mamã dele tanto pedia; parecia-me ter atravessado o espelho da Alice: a metrópole era pequenina, a colónia (província ultramarina, dizia o outro), grande; Portugal era alegre e festivo, de Angola, só chegavam as notícias tristes dos combates; lá, havia uma guerra por procuração (americanos e sul-africanos do FNLA e da UNITA, contra russos e cubanos do MPLA), enquanto aqui, quase se podia apalpar a esperança; cá, construía-se uma democracia, lá, meus pais, numa cidade sitiada.
            

Um comentário:

angela disse...

Tem vezes que até da gente mesmo a gente se perde.
a vida é impermanência...