domingo, 22 de abril de 2012

Os filhos da cabeleireira (parte final)




           André se levantou com os punhos fechados pronto para socar a cara do irmão; a meio do caminho, pensou melhor. Pôs-se a andar em círculos pela cozinha como um tigre de circo. Pisava duro, parecia esperar por uma oportunidade melhor enquanto o irmão remexia o café na caneca com a maior calma do mundo.
            ― Quer saber? O Tiago morreu fazendo aquilo que mais gostava, cercado de amigos, irmãos de afinidade. Ele acreditava no que fazia. E você, bródi, qual é a tua mesmo? Pensa que não te filmei lá na Santa Zita, fingindo que rezava? Rapá, tudo na tua vida é fake, teu carro é o falso smart car, o cavanhaque, cê pintou de loiro, anda pra cima e pra baixo com esse cachimbinho de boiola que tu faz que fuma... fala sério, mano, tu é o maior espuma de chope, nada é à vera, até a filosofia é de araque... como é que é mesmo?, religião pros ateu, fé pra leigo... que porra é essa, hem? Mano, tu é falso que nem nota de três real.
            ― Bom, bom, chega; não vamos a lugar nenhum nessa toada. Nós dois estamos abalados... é uma seqüência de tragédias, mas precisamos esfriar a cabeça e falar a mesma língua, agora que a mãe... não está mais aqui. Ninguém tem o monopólio da dor.
            André parou na frente da pia, inclinou-se para alcançar a alavanca do vitrô basculante da janela. O frio havia piorado.
            ― Falando em monopólio, parece que temos um aqui... não é irmão?
            ― Como assim? Que é que você está querendo dizer?
            ― Não estou querendo, estou dizendo. Dona Gildair fez uma doação pra um de nós dois. E não foi pra mim.
            ― Como é que você...? Quer dizer, você está invertendo as coisas; não é bem assim...
            ― Ah tá, não deve ser assim, deve ser assado. Agora diz você pra mim: que é que eu vou pensar de um Judas que vê a mãe de luto, na pior, tomando uns tarja preta bem nervoso, e cola nela pra ficar com a casa onde ela mora?
            ― Não admito que você me fale desse jeito, não é...
            ― Não é, mas parece, meu bróder. Ainda mais quando a gente lembra que esta região valorizou muito depois da chegada da estação de metrô... diferente de tu, meninão, que nunca valorizou nem o bairro, nem a família de onde veio ― estendeu ambos os braços, virando de frente para o irmão mais velho ― Este cafofo agora vale uma gaita da boa.
            ― Pois foi pensando na família que a dona Gilda me chamou. Foi ela que me procurou. E quer saber? Ela estava muito preocupada com você, queria que eu cuidasse do patrimônio porque sabia que você não tem responsabilidade pra cuidar nem de um canário-da-terra.
            Logo após a morte do irmão, efetivamente, Lucas se reaproximara da mãe. Foi nesta breve convivência que acabou por descobrir a galinha dos ovos de ouro; a mãe falou-lhe da oferta de uma empreiteira que pretendia derrubar meio quarteirão da rua para construir um condomínio de luxo. Cardiopata, extremante abalada com o assassinato de Tiago, Gildair temia morrer de uma hora para a outra; receava, sobretudo, que André dissipasse a herança que deveria lhe garantir algum futuro.
            Lucas contratou um advogado de sua confiança que sacramentou na letra da lei a doação dos cinqüenta por cento do imóvel de que a mãe poderia dispor em vida. Assim, Lucas passava a ter direito sobre três quartos do valor do imóvel; o que ele não tinha como saber: a funcionária do cartório onde lavraram a operação era cliente do Gilda Beauty e revelou a tramóia toda para André.
            ― Luquita, tá ligado que a Cleide tá de barriga?...
            ― Sim, a mãe também me contou essa: mais uma das suas... já deve estar pra nascer, né? Por essas e por outras é que ela me pediu pra...
            ― Desliga a fita, meu, comigo não precisa fazer o número do arrimo-de-família, comigo não violão! Tu só serve de arrimo é pra ti mesmo... Acontece que tenho novidades: o brasilino não é meu, é do Tiago ― André fez uma pausa e esperou que a revelação fizesse efeito.
            ― Tá doidão? A Cleide sempre foi treta tua, Dé, que merda é essa agora?
            Na mosca.
            ― Olha aê, assim tu parece que foi criado na quebrada, não aquele mauricinho que põe blusa de gola rolê pra pagar de papo-cabeça...
            ― Pára de falar asneiras e me explica essa história, André.
            ― Acontece, Luqueta, que, sem herdeiros, nosso irmão Tiago sairia da frente na linha dos herdeiros, não é? Mas, e se ele tiver um filho?, e se a mãe desse filho me deixar administrar a parte dele enquanto ele for menor? Daí, queridão, a tua porcentagem da bolada, mesmo com a doação da mamãe, muda um pouco, precisa dividir mais, né não?
            ― Deixa de ser idiota, o filho é teu!
            ― É verdade. Mas você ainda deve lembrar que eu e o Tiago éramos gêmeos... como provar? Vai valer o que a Cleide disser.
            Lucas se encaminha na direção da saída com as chaves do carro na mão; treme de nervoso, mas procura disfarçar a comoção.
― Não acredito que você é capaz de uma coisa destas!...
            ― Dona Gilda também não acreditava que você ia me esfolar, Lucas, aliás, ela nunca soube avaliar os homens direito. Nem mesmo os próprios filhos. Já você, mano, acha que porque tem um canudo é mais ligeiro que todo mundo; é o problema dos inteligentes: acham que só eles são inteligentes.

2 comentários:

Anônimo disse...

parabens pelo seu texto. poliu bem as palavras para descrever sua narrativa. muito lindo gostei. abraços lamarque

angela disse...

É sempre bom quando um esperto leva uma rasteira de outro mais esperto mesmo o mundo continuando deles...