domingo, 15 de abril de 2012

Os filhos da cabeleireira (parte 1)


            O Mini Cooper, modelo Countryman de cor verde Oxford metálica, pára na frente do sobrado na zona norte. O motorista buzina três vezes, impaciente. A luz do corredor lateral por onde se acessa a habitação principal e a edícula acende, um rapaz desce lentamente a escada. Os degraus margeiam o pequeno jardim da frente da casa e angulam suavemente para a esquerda, dividindo-se em dois ramos: um vai diretamente para a porta da rua, o outro dá na garagem. O Mini estaciona ao lado de um Passat antigo de frente rebaixada.
            Os dois irmãos miram-se silenciosamente na luz desmaiada da lâmpada de 40 watts da garagem; o mais novo, que ainda mora na casa onde passaram a infância, segue na frente. Chuvisca de leve, a noite caiu há pouco.
            ― Uff, que frio! Tinha esquecido como aqui é mais frio que na cidade ― o mais velho, Lucas, tem trinta e nove anos e leciona filosofia da religião numa importante universidade privada.
            ― A cidade é a mesma pra todo mundo. O frio também. Pois é, faz tempo... nem sabia se você ia acertar com a igreja ― André tem três anos a menos, o torso hipertrofiado exibe tatuagens coloridas até o punho direito; no topo do crânio, raspado com máquina zero, tatuou o símbolo do Yin-Yang. Disputa rinhas clandestinas que lhe rendem mil reais de cachê e as orelhas deformadas típicas dos lutadores de vale-tudo. É diretor de uma torcida organizada de futebol e faixa marrom de Muay Thai.
            ― Talvez você não acredite que isto é difícil pra mim também... Achou que eu não lembrava mais onde era a Santa Zita? Também fui criado na Brasilândia, irmão, só não esperava uma missa de sétimo dia tão cheia...
            ― É o cheiro do sangue que atrai, mano, tragédia é que dá audiência, desgraça na casa dos outros é novela. O que não faltava lá era urubu, as boca-de-maria, umas comadre com ar de quem tá de rosca, fazendo cara de “tinha-que-dar-no-que-deu”. Olha, ainda bem que sou evangélico, esse povinho de missa só sabe é de dar moral nos outro...
            Gildair pesava como um buraco imenso, pesava como as sombras no salão de beleza vazio que ambos atravessavam rumo à cozinha. Na penumbra desolada, viam-se passar por espelhos acostumados ao alarido das clientes e à iluminação intensa dos LEDs e lâmpadas dicróicas ― as macas de massagem, as estantes, os secadores, os consoles e prateleiras repletos, as cadeiras hidráulicas, os lavatórios de marmorite preta, chapinhas, pincéis, escovas, tesouras, tudo parecia ter ido embora junto com a dona. A manicure que trabalhava com a mãe deles há mais de vinte anos a encontrara pela manhã, caída no chão junto a uma garrafa de uísque, um frasco de xarope de cereja silvestre e o bilhete. O Gilda Beauty, estética e cabeleireira, nunca mais voltaria a abrir.
            ― A vida da dona Gildair era isto aqui... educou três filhos se matando de segunda a domingo nos alisamento, manicure, cremes rinses e tonalizadores, uma guerreira!
            ― O que chamamos de beleza tem muito de reencontro: um alumbre da primeira visitação do horror na infância. E ainda nos jogamos aos pés dessa deusa bárbara e cruel para lhe agradecer o desprezo e abandono com que nos destrói... um pouco de Rilke em sua memória, dona Gilda.
            ― Maninho, tu é bico doce que é o carai, com esse xavequinho cansado daí, a mulherada dorme no barulho que eu tô ligado. Caranga da hora, professor e tal, tu tá bonito na foto, só no filé...
            Lucas foi para a geladeira; na falta de algo razoável, serviu-se de um copo de água. Os gostos da casa eram calóricos demais para ele; a sua imagem nos reflexos do salão veio-lhe então, junto com a constatação dolorosa do avanço da calvície. André retirou o paletó apertado (era do outro irmão), afrouxou a gravata e passou a observar os gestos do irmão escanchado numa cadeira com revestimento de fórmica igual ao da mesa. Lucas sentou-se do outro lado da mesa. A cozinha tinha sido para eles o centro emocional do lar, o parlamento e o supremo tribunal da família Letorazzi, ou do que sobrou dela depois que o pai abandonou a mulher com três filhos pequenos, deixando-lhes um sobrenome e explicação nenhuma.
            ― E o pai? Depois de todos esses anos desaparecido... como é que ele, quer dizer, quem...?
            ― Ah, esse tranqueira, veio ver se come algum, com certeza... fiquei no veneno de ir lá e dar uma no cara de pau! Quanto mais reza, mais aparece assombração: nego toma um chá de sumiço de mais de trinta anos e aparece, assim, do nada, na cara mais lavada do mundo! Dizem que estava na Itália, pra variar, vivendo nas costa de mulher; deve ter umas dez família espalhada por aí, esse mala sem alça...
            Pater familias et Mater dolorosa...
            ― Que foi?
            ― Nada.

Um comentário:

angela disse...

Imaginação não lhe falta...