3. Aretusa
Tão logo a edição da Playboy chegou às bancas, ela correu para comprar. Na capa, Milena Bumbum, ex-BBB, madrinha de bateria da Leandro de Itaquera, modelo, atriz e sabe-se lá o quê mais. Uma piranha de estilo bem bagaceira que se gabava de poder equilibrar um copo no traseiro hipertrofiado ― “genética privilegiada”, dizia na entrevista ―; corpinho esculpido na academia, tá bom, um milagre da malhação localizada!
Torcia para que o silicone dos glúteos aberrantes fosse daquelas próteses francesas bem tabajara; frequentemente imaginava a gosma gelatinosa estourando e descendo para os tornozelos da vagaba. O imbecil do ex-marido dera para desfilar com essa zinha pra cima e pra baixo, o corno. Nem a macheza dos deslumbrados teve o cagão do Walter; recém-separado, numa hora dessas podia estar comendo Deus e o mundo, mas não, se enganchou com a primeira putéfia que apareceu. A biscate da hora, a garota da capa.
Mulheres separadas, desvalorizam; homens bem sucedidos (com uma trouxa cuidando dos filhos pequenos dele), valorizam. Lógica de mercado. Milena Bumbum. Era a humilhação pública.
Aretusa descobria diariamente na vida de separada uma quota de pequenas e grandes infâmias; ora havia os aniversários das crianças, para os quais o adultescente queria levar a “namorada”; ora eram as fotos em sites e revistas; e ainda por cima os amigos que sempre a alimentavam com o último bafão da balada. O Walter que acordava cedo para treinar triatlo morrera, em seu lugar surgia o arroz-de-festa, a figurinha carimbada dos camarotes VIP e das colunas sociais.
― O amor acabou, vou atrás do meu desejo.
As duas feridas mais doídas: essa frase que ele lhe disse no dia em que saiu de casa e a revista masculina com a vadia na capa. Um tremendo babaca ― quem disse que se pode conciliar amor e desejo ao mesmo tempo? “Meu desejo”, a carapuça dele!, foi atrás é de tirar o rabo da encrenca que é criar bacuris, isso sim.
Fúria ela sente todos os dias. Abandonara a vontade de compreender, analisar, reparar as cagadas, perdoar ― sentimentos cuti-cuti só para com os filhos, decidiu que também ela tinha o direito de ir atrás do seu desejo. E o seu desejo atendia pelo nome de vingança. Seria brincadeira de criança jogar merda no ventilador com o que sabia da vida profissional do Walter; o babão do ex-marido chegara a diretor da empresa petrolífera do Sr. X à custa de muitas chicanas e trampolinagens. Certas informações privilegiadas, sopradas aos ouvidos certos, abalariam mercados e governo.
Mas não. Não era tão óbvia, sua vingança haveria de ser um biscoito fino; finíssimo, como ela. Como pudera ser tonta a este ponto?! Tudo lhe aparecia agora em perspectiva ampla e cores baixas: o rapaz bonito e brilhante, vindo do nada, sem contatos na cidade grande, encontra a moça de “boa família” que lhe abre as portas certas. Ela se apaixona por ele, ele, pela família dela; casam, têm filhos, a carreira dela encolhe, a dele decola e... fim. O salafra se manda e deixa a conta, isto é, a obrigação de manter a tal da “família estruturada”, nas costas da burra que o carregou.
A paixão a cegara, o amor a deixara caolha, mas o ódio lhe abriu a terceira visão. Retomou sua carreira nas artes plásticas.
Um limite suspenso entre violência e afeto, sua primeira individual depois dos anos de recolhimento da maternidade, foi saudada em resenha especializada nos seguintes termos: “Não seria a infância o território labiríntico do gótico, onde a travessia do diktat social inscreve no corpo uma máquina de afetos e signos, e onde a nossa sensibilidade contemporânea reconhece as modalidades do processo contra hereges, do auto-de-fé? Aretusa Veiga volta com uma série de instalações interativas que relêem as torturas medievais pelo viés eclético da cultura pop. Irônico e oportuno: reinterpretar, sob as espessas camadas de estímulos que nos atingem, as estratégias de alheamento e melancólica infantilização que o consumo massificado propõe”.
A exposição era uma jogada de risco baseada numa sacação genial: o visitante percorria ambientes virtuais e reais reproduzindo os dez principais métodos de tortura da Inquisição como se fossem de brinquedos de um parque de diversões. Horror e entretenimento. Nos dois andares da galeria, decorada como uma loja da Fisher & Price, passava-se por câmaras de suplício e masmorras com décor lisérgico e música de carrossel, onde se podia experimentar/assistir a estripações, torniquetes, esfolas, esquartejamentos, cautérios e dilaceramento de mamas. Para constrangimento geral, as instalações exerciam verdadeira fascinação sobre as crianças; pior: durante a vernissage, duas pessoas sofreram ataques de pânico.
Alguns reclamaram de encontrar o Batman, a Betty Boop, o Bob Esponja, Frodo, os Backyardigans, Goku e Super Mario sendo divididos ao meio literalmente pelo Burro Espanhol, queimados pelo Touro de Bronze, sodomizados pela Gota da Angústia e o Berço de Judas, espetados no Garfo dos Hereges ou na medonha Donzela de Ferro; mas a grita se concentrava na totalmente desnecessária e apelativa sessão em que se podia acompanhar a família Simpson ser empalada em 3D.
Tamanha fantochada, claro está, causara escândalo e dividira opiniões em páginas culturais, sacudindo o mundinho das artes. Tudo bem. Causar já é meio caminho andado. Finalmente Aretusa podia dizer a si mesma sem mentir que tinha aprendido alguma coisa que prestasse com o “processo” de separação.
Um comentário:
Quando se trata de arte, sublimação e desvios o amigo se supera.
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