sábado, 31 de março de 2012

Versos incompletos

(Lourdes de Castro)

fito-o desatenta

quando o escuto falar

me seguro

para não me afogar

sou sol poente na ilha

gaivota gritando em rochedos

barco ancorado no mar

no reverso

estou grudada em seus pelos

sou sol do meio dia

beija flor sorvendo mel

barco singrando o mar


A Caixa (parte 2)


            Desmoronei.
Vou cambaleando para a cama e desabo nela fazendo estralar as correntes de sustentação. Afundo a cabeça nas mãos tentando fazê-la pensar com movimentos ritmados, catar fiapos de lembrança, recordar qualquer coisa que me tire desta nova prisão. O vácuo.
Não há uma história para contar, nem tesouros insignificantes guardados em gavetas ou armários, agendas, bilhetes de cinema, tecidos desfiados, roupas que não servem mais, brinquedos velhos ou uma casa familiar que me viu crescer. Tudo que tenho são pensamentos ocos, ou menos ainda, os tijolos do pensamento ― palavras ―, e as palavras não passam de cascas de coisas que eram, que foram, que vão se esfarelando pelas vielas do tempo até se tornarem o que são: murmúrio, sobras, rumor, restos de fala, gargarejo, cacareco.
Levanto, enfurecido; não há um único objeto, nenhuma pista à minha volta. Começo a dar voltas na maldita caixa onde me prenderam, sim, porque esta é a única coisa certa nisso tudo: estou preso. Curiosamente não sinto mais a debilidade nas pernas, ando sem embaraços no perímetro e também na diagonal do quarto retangular. Deve ser a raiva. Paro.
Diante da porta-espelho retomo a inspeção adiada: o cabelo e a barba me dizem alguma coisa, as unhas grossas, recém-cortadas, também: alguém cuidou da minha higiene pessoal por um bom tempo. Arranco a camisa, para descobrir um torso despelado; procuro nos braços e pernas por sinais de algemas ou picadas de agulhas. Nada.
Não possuo nenhum tipo de tatuagem ou marca característica, apenas uma cicatriz antiga de apendicite na parte inferior do abdome. Por quê me haveriam de ter cortado as unhas e raspado os pêlos? Os dentes estão em bom estado, aparentemente, o que me lembra da falta que está fazendo uma boa refeição.
Qual será o meu prato favorito?
E é então que experimento uma seqüência de epifanias microscópicas, frustras, incapazes de se unir numa narrativa, mas com a marca do vivido: a dor ambígua de tudo que deixa traço. Recupero, em fragmentos minuciosos, a textura de uma cortina, a manteiga manchada na lata, um beijo no quintal, sandálias, uma foto de grupo escolar, a alegria de correr na chuva. São memórias extremamente pessoais, que pertencem (pertencerão ainda?) a um alguém entre milhões de alguéns, porém, quem sou eu, a pessoa que as abriga?
Nada me garante que não esteja sonhando, embora contra esta hipótese sinta uma angústia bem carnal e a fé cega dos sentidos, mas, principalmente, a intuição de haver aqui um ‘fora’ que não sou eu ― a sensação de ‘outridade’, a resistência que só a realidade sem adjetivos consegue opor ao desejo.
Novamente caio no choro, mas desta vez é o aboio murcho, longo e desconsolado de quem teve a lembrança de um sonho nas mãos e a perdeu ao despertar completamente. Parece que estou sempre a correr atrás de ouro de tolo; outra imagem que me surge: o rato de laboratório fazendo girar a roda inútil. E essa merda de zumbido que não pára!
Pensando bem, deve ser da luz branca; lâmpadas fluorescentes fazem esse barulhinho chato que só.
As luminárias embutidas no teto. Estarei sendo filmado, esquadrinhado em cada reação e movimento, tendo os sinais vitais monitorados à distância por uma junta de cientistas loucos de uma raça alienígena e malvada?
Puta que pariu, se já não estava, fiquei louco de pedra. Delírios de fome, só pode. Espera, lembro de ter ouvido alguém dizer que jejuava para obter um ‘barato’, uma fonte de inspiração artística... droga, onde foi que ouvi isso?!
Um barulho de mecanismo automático sendo acionado. A caixa está se abrindo! A porta de vidro corre para cima à maneira de um alçapão, revelando a espessura descomunal da parede.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Claricianas, #2



recifes rosam escapulários gritos
deserto palácio da inabitável juventude
sorvar o fruto versejar o verso
2 gramas mar misturadas entranhas

beijar as bocas não jamais
as mãos e tantas tantas
brancas lágrimas indecisas
perfeitas acabadas carícias

não sou disperso apenas quero tudo do mundo
beleza esse espantalho prenho
serei feliz quando esquecer teu vulto

acesa a imaginação fantasma
intocado o cálice rebenta
amor que amor o amor espanca

domingo, 25 de março de 2012

A Caixa (parte 1)



Uma luz.

Branca, forte, bem na minha cara.

Luz branca, detesto luz branca. Há um zumbido fino ao fundo. Sinto dores no corpo todo, e só então percebo que estou despertando de um sono infinito.

Tenho dificuldade para abrir os olhos, as pálpebras pesam, tento desviar da luz. Parece um foco retangular embutido na parede.

Não, não é a parede, é o teto. Estou deitado, concluo, retomando contato com as pernas, os braços e o tronco. Mas não é possível movimentar nenhum deles.

Começo de pânico: sofri um acidente e estou paralisado numa cama de hospital. Tentativa de auto-consolo: bom, pelo menos acordei.

Bastou pensar nisso para descer um cansaço de larva. O que me acontece não é algo como adormecer, esse fenômeno que lembra uma imersão lenta e prazerosa, parece mais com ser arrastado.

Um puxão violento no centro do peito, a sensação de queda. Perdi o plano de apoio, não há beiras: estou caindo num buraco fundo, escuro e sem paredes. Balanço meus braços freneticamente, reagindo por reflexo.

Dormi de novo. Muito? Pouco? Não tenho como saber. A luz continua lá, batendo de chapa, incômoda como antes. Talvez não tenha realmente caído, ainda é o mesmo lugar ― mas que lugar será este?

As dores voltaram piores, viraram cãibras terríveis brotando em diversos pontos do corpo ao mesmo tempo. Grito, grito a toda voz, praguejo, urro de dor. Choro descontroladamente (minutos?, horas?), as lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos para dentro dos ouvidos.

Quando consigo me acalmar, resta pouco de gente em mim: sou uma toalha estendida no catre duro. Vejo que não estou paralisado, mas todo torto sobre uma cama por causa das dores.

A dificuldade para mexer mudou: agora é a preguiça de chumbo que toma conta, uma vontade de regredir; como se adivinhasse que a consciência recuperada traria novas dores. Não é nenhum cenário conhecido este, só a estranheza e o medo lembram aquele sentimento da infância quando acordava fora de casa.

Num esforço extra, consigo me sentar; para logo ser abalroado por uma vertigem. Vomito. Líquido puro, quer dizer, um gorgolão de baba esverdeada e amarelenta a indicar que a fome cavando o estômago é antiga.

A cama é uma chapa de ferro chumbada na parede e suspensa por duas correntes, também fixas na parede, o colchão que a recobre consiste de uma camada de espuma sob o lençol branco. O quarto deve ter uns vinte metros quadrados, se tanto, pintado numa tonalidade de cinza; dá para perceber no reboco raspado marcas e ranhuras mal preenchidas com massa corrida. No piso sintético, um linóleo de cor ligeiramente mais clara, brilha o reflexo das duas fileiras de luminárias no teto alto. À minha direita, um buraco no chão faz as vezes de privada; em frente, outro buraco na parede acima de um registro. Quarto não, suíte.

Estou descalço. Levanto com a intenção de dar uma geral mais detalhada no ambiente. Tateando ao longo dos muros rústicos, descubro uma superfície fria e brilhante situada na face localizada à esquerda do leito. Do tamanho de uma porta padrão, a placa interrompe a mesmice pálida das paredes — um homem de cabelos compridos e barba, vestido num uniforme amarelo me olha desde uma cela absolutamente idêntica a esta.

O vidro espelhado apresenta ligeiro recuo em relação à parede; começo a bater nele para ver se obtenho alguma resposta, até que reparo que estou aos berros chutando e pedindo socorro. Inútil, é como se fosse mais duro que o concreto.

— Alguém... quem está aí? Eeii!! Abre essa porta, me tira daqui! Tem alguém aí? Abre essa porra dessa porta! Aaah!! Já deve ter gente preocupada comigo, vocês precisam avisar...

Quem?

Uma pontada aguda no coração. Não faço a menor idéia de quem sou, a quem avisar, ou o que eu fiz para estar aqui. Não reconheço a pessoa que vejo no espelho.


sexta-feira, 23 de março de 2012

ARE YOU A BANDEIRANTE MAN?





No dia 28 de outubro de 1978, o presidente general Ernesto Geisel inaugurou a rodovia BANDEIRANTES. É por ela que se chega a São Pedro, cidade premiada pela ONU e UNESCO como lugar de bem estar e excelência. Não há criança fora da escola, ou que tenha a saúde desassistida.
Portugal perdeu, em 1580, três reis na batalha de Alcacer´quibir. Desfirmado na dinastia de AVIS, re-fundiu-se à Espanha.
Por aqui, os BANDEIRANTES aproveitaram a ocasião para avançar o Tratado de Tordesilhas (vi o documento na MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO). Esticaram pelo Mato Grosso, dobraram no Acre e estabeleceram o paraíso na Amazônia. Fronteiras externas e povoamento do interior do país com seu passeado irritado. São Os paulistas de Gilberto Freyre, os tropeiros da CISPLATINA. Fernão Dias, as esmeraldas. MINAS GERAIS e o barroco: tortuoso, insistente, declamativo. Argúcia de explorador e insanidade de entendimento. Wissenschaft.
Are you a BANDEIRANTE man?
Muita força, muita morte. foram a PARIS buscar putas para as cidades que fundavam. Bons propósitos com o máximo da vilania. Entender a natureza do lado em que a gente a domina.
Desde a idade trevosa das capitanias, da face que a Europa espia, vieram gentes, tendências e formações: portugueses, italianos, franceses, alemães, holligans... Brasa, Brás. O bon vivant , sendo mulher ou homem, vive na corte. Hoje é BRASÍLIA. Já se chamou Rio de Janeiro. Deste tempo vive de lembranças a Bahia. O desespero das infindáveis terras hereditárias: dava asco tamanha vastidão. E a Inquisição replicando ética.
Are you a BANDEIRANTE man?
Há ainda coisas imponderáveis, pex. a queda para o conservador, que faz suportar Salazar e outras ditaduras longevas. O paulista é só mais um tipo estúpido de humano: odeia a origem e refunda a geografia em cidades imaginárias.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Oficina de Poesia Viva - Casa das Rosas

Casa das Rosas

Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura

OFICINA POESIA VIVA (Módulo 1)

Oficina de criação poética

Com Eunice Arruda.

Terças-feiras, 3, 10, 17, 24 de abril, 8, 15, 22 e 29 de maio, 19h30.

Esta oficina apoia-se na importância do estímulo para a criação de textos. Apresenta alguns elementos teóricos e, ainda, o haicai como exercício de concisão.

SERVIÇO

Casa das Rosas

Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura

Av. Paulista, 37

De terça-feira a sábado, das 10 às 22 horas;

domingos e feriados, das 10 às 18 horas

Tel.: (11) 3285-6986 / (11) 3288-9447

E-mail: contato@casadasrosas.org.br.

Convênio com o estacionamento Patropi: Al. Santos, 74.


sábado, 17 de março de 2012

máximas poéticas, poesias mínimas


Louco é quem
sempre tem
razão.

Grandes defeitos
só ficam
bem
em pessoas grandes.

Há só uma réplica
do amor,
e bilhões de amores
verdadeiros.

Temos mais
vontades
do que força
de vontade.

O fraco que se conhece
governa
os fortes que se ignoram.

Na amizade somos felizes
pelo que conhecemos;
no amor,
pelo que ignoramos.

A religião fala toda a espécie
de língua,
e representa toda a espécie
de personagem,
mesmo o ateu.

Crer é poder.

Quando pararmos de enganar
uns aos outros,
deixaremos certamente de viver
em sociedade.

Se ama dando
o que não
se tem,
para receber o que não
existia.

A boa cópia
revela
o mau original.

A sabedoria triunfa
sobre as dores passadas
e futuras,
mas sucumbe
a uma coceira do presente.

A felicidade está em amar
e não no que amamos;
e é por ser o que se ama
e não por ter
o que os outros acham
amável.

O pior mentiroso
acaba dizendo
as maiores
verdades.

Nada se pode amar
senão
em relação
a si.

A paixão primeira
ama o amante;
a paixão madura,
o amor.

O humano não é seguro,
o seguro não é certo,
o certo não é provável,
o provável não é garantido
e
até o combinado pode ser
caro.

Há certos defeitos
que confessamos mais alegremente
do que a virtude.

Antes de cobiçar,
indagar:
quem possui
é feliz?

quarta-feira, 14 de março de 2012

4 mulheres de perfil (IV)

4. Val

            Val é uma outra coisa, um problema bem maior.
Para começar, o que se tem é só um pedaço de palavra: não é improvável que ‘Val’ seja somente um diminutivo, parte de um outro nome ou apelido. Faltam informações básicas sobre a sua origem. E também tem esse detalhe de ela mesma não ser inteira, melhor dizendo, não ter sido como todas as outras mulheres.
É realmente decepcionante constatar quão pouco resultou da busca descabelada que ela empreendeu atrás do seu passado, dos vestígios que poderiam tê-la guiado ao porto seguro de uma identidade. Ainda mais quando se leva em conta a delicadeza de alma e a generosidade que se desprendem dos seus escritos confessionais e, principalmente, da sua poesia de forte acento clariciano.

Seus braços tinham pêlos dourados
e o valor
que as coisas douradas têm

seu corpo mantinha um lugar
abafado e escuro
como o fruto que aguarda

e precisa atravessar
incólume
uma estação adversa.

            Alguns chegaram a comparar sua prosa com a exasperação límpida de um Caio Fernando Abreu, outros, mais afoitos, viram na estrutura despojada e no prosaísmo dos seus versos uma citação direta de Ana Cristina César. Com esta última, certamente partilhou o destino trágico, abreviador de uma carreira tão curta quanto intensa. Absurdos boatos circularam na época dando como certo que teria sido amante do dramaturgo Campos de Carvalho. Teorias delirantes e despropósitos à parte, o que parece certo é que se tratou de um caso único nas letras nacionais.
            No início todos pensaram que era spam. Recebia-se a mensagem, a foto e a pergunta: Você sabe quem ela é? Depois, como quase tudo na internet, virou bagunça e se espalhou como um meme viral nas redes sociais. ‘Você sabe quem é Val?’ tornou-se sinônimo de gozação, de mulher que está caçando, e por aí vai; apareceram sucedâneos masculinos, transexuais, falsas pistas, enfim, o drama pessoal na rede ganhou ares bufões de farsa cruel ― a dimensão e o peso dos faits divers. Embora fosse previsível.
           
O mundo passa em imagens, fotografias em fuga, moção em vez de mundo; image-in-ação ― pois não há acesso extra-poético ao mundo, nada que não seja: contingência, falha, risco, provisoriedade...

Este trecho faz parte da última postagem feita por Val no seu blog pessoal, aqui constatamos a sua conhecida obsessão com as imagens e a vertigem que elas provocam na vida contemporânea; mas é numa passagem logo a seguir que muitos encontram, por assim dizer, seu bilhete de despedida: “Quero a palavra transparente e total de uma consciência sem segredo, essa palavra-objeto equipada com toda a violência da sua explosão, capaz de convocar os piores terrores do sagrado: o inferno, o céu, a infância, a matéria bruta, a loucura, etc. Aspiro ao que é só natureza e só a natureza tem: o poder do fim”.
Val desapareceu desde essa data, e com ela desapareceram todas as imagens ― e não eram poucas ― que havia dela na web. Nunca mais foi encontrada.
Os fatos conhecidos são estes que seguem.
Tudo teria começado com uma série de fotos íntimas (“mulheres vulvares”) iniciada há anos pela fotógrafa Celiara, que vem a ser filha do mega empresário, o Sr. X. Poucos hoje ainda se lembram do fato, mas houve nos anos de 1970 um caso célebre que envolveu jovens de famílias ricas numa festa de embalo em que uma menina menor de idade foi estuprada e morta depois de ser drogada com cocaína e alcoolizada. O caso não deu em nada: seis testemunhas morreram ou se mudaram do país, e os rapazes, entre eles o jovem Sr. X, foram inocentados na justiça. Este evento mudou definitivamente os rumos da vida dele, que decidiu se dedicar de corpo e alma ao trabalho nas empresas do pai; start da mais bem sucedida carreira de um homem de negócios brasileiro.
Celiara foi educada num escola suíça em que as colegas lhe mandavam links para a página da Wikipédia que mencionava os detalhes do crime do pai. Hoje, depois de três rehabs, ela se dedica às causas feministas; as fotorreportagens ousadas, focadas na denúncia dos maus tratos e exploração das mulheres, lhe renderam fama e prêmios internacionais. Só ela poderia dizer quem é Val. O problema: Celiara desapareceu quando fazia uma reportagem sobre tribos que praticam a circuncisão feminina, a clitorectomia. Há grande chance de que esteja morta: a região onde foi capturada por guerrilheiros, entre o Chade e o Sudão, é uma das mais perigosas do mundo. Nunca foi pedido resgate.
Durante anos ela vinha fotografando mulheres ao redor do mundo; a todas sempre pedia para lhes fotografar a xoxota. Da coleção armazenada em milhões de pixels nos arquivos da fotógrafa, saiu a imagem apenas identificada por três letras, ‘Val’, e uma data de 2009. Val era apenas uma entre muitas combinações de bits em um arquivo de dados digitais; como se tornou consciente, capaz de sair em busca de si mesma e, finalmente, se deletar, é o que resta por esclarecer.
Val é a mulher quintessencial ― um xibiu cabeludo em meio a milhares de raspadinhas, bigodinhos de Chaplin e moicanos ―, a fêmea resumida ao órgão sexual. Menos que uma buceta, ela é apenas a foto de uma buceta. Não admira, assim, que a sua demanda na internet tenha dado margem a tantos equívocos. Como guardião legal dos arquivos da filha, o Sr. X afirmou que não revelará o material inédito lá contido.

Renda-se
como eu me rendi
não se preocupe
em entender

mergulhe
como eu mergulhei
viver é desconhecido

mistério
que ultrapassa todo
entendimento

domingo, 11 de março de 2012

Claricianas, #1



se eu for tudo
o que penso
então

sou muitas

quando penso no que sou
pergunto

sou enquanto penso
sou aquilo que penso
sou aquela que pensa
sou a palavra que se pergunta

e quando penso
que estou pensando
sou/estou
pensamento
?

quinta-feira, 8 de março de 2012

sumário



Sentada na sala

você no colo

e agora o que faço?


De algum jeito a falta de jeito

arrumou um jeito de se ajeitar

o sossego e a calma

rodeia e volteia

traçando o caminho

de se encontrar


Sem sinal ou palavra

nossa respiração entoa

antigas cantigas

de ninar


4 mulheres de perfil (III)

3. Aretusa

            Tão logo a edição da Playboy chegou às bancas, ela correu para comprar. Na capa, Milena Bumbum, ex-BBB, madrinha de bateria da Leandro de Itaquera, modelo, atriz e sabe-se lá o quê mais. Uma piranha de estilo bem bagaceira que se gabava de poder equilibrar um copo no traseiro hipertrofiado ― “genética privilegiada”, dizia na entrevista ―; corpinho esculpido na academia, tá bom, um milagre da malhação localizada!
            Torcia para que o silicone dos glúteos aberrantes fosse daquelas próteses francesas bem tabajara; frequentemente imaginava a gosma gelatinosa estourando e descendo para os tornozelos da vagaba. O imbecil do ex-marido dera para desfilar com essa zinha pra cima e pra baixo, o corno. Nem a macheza dos deslumbrados teve o cagão do Walter; recém-separado, numa hora dessas podia estar comendo Deus e o mundo, mas não, se enganchou com a primeira putéfia que apareceu. A biscate da hora, a garota da capa.
            Mulheres separadas, desvalorizam; homens bem sucedidos (com uma trouxa cuidando dos filhos pequenos dele), valorizam. Lógica de mercado. Milena Bumbum. Era a humilhação pública.
            Aretusa descobria diariamente na vida de separada uma quota de pequenas e grandes infâmias; ora havia os aniversários das crianças, para os quais o adultescente queria levar a “namorada”; ora eram as fotos em sites e revistas; e ainda por cima os amigos que sempre a alimentavam com o último bafão da balada. O Walter que acordava cedo para treinar triatlo morrera, em seu lugar surgia o arroz-de-festa, a figurinha carimbada dos camarotes VIP e das colunas sociais.
            ― O amor acabou, vou atrás do meu desejo.
            As duas feridas mais doídas: essa frase que ele lhe disse no dia em que saiu de casa e a revista masculina com a vadia na capa. Um tremendo babaca ― quem disse que se pode conciliar amor e desejo ao mesmo tempo? “Meu desejo”, a carapuça dele!, foi atrás é de tirar o rabo da encrenca que é criar bacuris, isso sim.
            Fúria ela sente todos os dias. Abandonara a vontade de compreender, analisar, reparar as cagadas, perdoar ― sentimentos cuti-cuti só para com os filhos, decidiu que também ela tinha o direito de ir atrás do seu desejo. E o seu desejo atendia pelo nome de vingança. Seria brincadeira de criança jogar merda no ventilador com o que sabia da vida profissional do Walter; o babão do ex-marido chegara a diretor da empresa petrolífera do Sr. X à custa de muitas chicanas e trampolinagens. Certas informações privilegiadas, sopradas aos ouvidos certos, abalariam mercados e governo.
Mas não. Não era tão óbvia, sua vingança haveria de ser um biscoito fino; finíssimo, como ela. Como pudera ser tonta a este ponto?! Tudo lhe aparecia agora em perspectiva ampla e cores baixas: o rapaz bonito e brilhante, vindo do nada, sem contatos na cidade grande, encontra a moça de “boa família” que lhe abre as portas certas. Ela se apaixona por ele, ele, pela família dela; casam, têm filhos, a carreira dela encolhe, a dele decola e... fim. O salafra se manda e deixa a conta, isto é, a obrigação de manter a tal da “família estruturada”, nas costas da burra que o carregou.
            A paixão a cegara, o amor a deixara caolha, mas o ódio lhe abriu a terceira visão. Retomou sua carreira nas artes plásticas.
Um limite suspenso entre violência e afeto, sua primeira individual depois dos anos de recolhimento da maternidade, foi saudada em resenha especializada nos seguintes termos: “Não seria a infância o território labiríntico do gótico, onde a travessia do diktat social inscreve no corpo uma máquina de afetos e signos, e onde a nossa sensibilidade contemporânea reconhece as modalidades do processo contra hereges, do auto-de-fé? Aretusa Veiga volta com uma série de instalações interativas que relêem as torturas medievais pelo viés eclético da cultura pop. Irônico e oportuno: reinterpretar, sob as espessas camadas de estímulos que nos atingem, as estratégias de alheamento e melancólica infantilização que o consumo massificado propõe”.
            A exposição era uma jogada de risco baseada numa sacação genial: o visitante percorria ambientes virtuais e reais reproduzindo os dez principais métodos de tortura da Inquisição como se fossem de brinquedos de um parque de diversões. Horror e entretenimento. Nos dois andares da galeria, decorada como uma loja da Fisher & Price, passava-se por câmaras de suplício e masmorras com décor lisérgico e música de carrossel, onde se podia experimentar/assistir a estripações, torniquetes, esfolas, esquartejamentos, cautérios e dilaceramento de mamas. Para constrangimento geral, as instalações exerciam verdadeira fascinação sobre as crianças; pior: durante a vernissage, duas pessoas sofreram ataques de pânico.
            Alguns reclamaram de encontrar o Batman, a Betty Boop, o Bob Esponja, Frodo, os Backyardigans, Goku e Super Mario sendo divididos ao meio literalmente pelo Burro Espanhol, queimados pelo Touro de Bronze, sodomizados pela Gota da Angústia e o Berço de Judas, espetados no Garfo dos Hereges ou na medonha Donzela de Ferro; mas a grita se concentrava na totalmente desnecessária e apelativa sessão em que se podia acompanhar a família Simpson ser empalada em 3D.
            Tamanha fantochada, claro está, causara escândalo e dividira opiniões em páginas culturais, sacudindo o mundinho das artes. Tudo bem. Causar já é meio caminho andado. Finalmente Aretusa podia dizer a si mesma sem mentir que tinha aprendido alguma coisa que prestasse com o “processo” de separação.

sábado, 3 de março de 2012

4 mulheres de perfil (II)

2. Heloísa

Suponhamos que fossem duas mulheres habitando o corpo de uma só; uma delas, chamemo-la Helô, mora em São Paulo numa cobertura do bairro Panamby e leva uma vida convencional ao lado do marido Gimeno, antigo colega de colégio, e do filho de oito anos, Matheus; a outra seria Isa, executiva de um banco internacional que mora em Londres com a companheira Callista. Confuso? Sim, mas para uma pessoa organizada e eficiente como Heloísa, uma vida dupla bastante possível de ser vivida e desfrutada intensamente.
Heloísa subiu por méritos próprios na hierarquia do conglomerado de empresas do Sr. X, e se tornou a darling do décimo homem mais rico do mundo quando o convenceu a transformar a financeira do grupo em banco e provê-lo de uma base internacional de operações. Na crise de 2008 a holding do grupo X saiu às compras num momento em que todos estavam de calças curtas, obtendo uma expansão inédita de sua carteira de negócios e posicionando-se como credora da concorrência. Como prêmio, o Sr. X deu-lhe toda a operação financeira off shore para administrar, instalando-a no seu próprio apartamento em Londres.
O magnata tinha essa superstição de enfiar a letra X no nome de todas as suas empresas, o que deu margem a muitos melindres na hora em que Heloísa precisou abrir a agência do X-Bank nas Ilhas de Jersey. São as delicadezas dos paraísos fiscais: ninguém liga para uma conta em nome de Leo Green, Red Ruby, Düsseldorf, Blue Diamond ou Beacon Hill, já um banco chamado X... A semana de Heloísa ficou dividida entre Europa e Brasil; de segunda a sexta, trabalha na City londrina e mora em Kensington num duplex de cobertura com paredes envidraçadas e vista deslumbrante para o Tâmisa e o Hyde Park; nos fins de semana, vai de rio Pinheiros e Parque Burle Marx mesmo.
Não há choro nem ranger de dentes. Heloísa gosta do que faz, da vida que leva e se autojustifica com os mesmos argumentos que um digno pai de família do século passado usaria: não vive na farra, ou seja, a zona é bem organizada; ninguém fica desassistido e, exceção feita a Matheus que gostaria de ter a mãe em casa durante a semana, ninguém chia. As férias são salomonicamente divididas entre as duas, vá lá, famílias e o corolário de tudo vem de uma frase do pai dela: “Quem paga os músicos, escolhe a música”.
E la nave va.
Ou melhor, ia. Já dizia o velho deitado: não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.
Heloísa e Callista acabaram de transar; a saudade era grande depois de um feriado prolongado que a primeira vinha de passar num resort com o filho e o marido na Bahia. A jovem inglesa ignora por completo a parte brasileira da vida dela, as ausências da parceira caem invariavelmente na categoria das exigências do seu mais do que exigente cargo ― até isto a situação tem do enredo clássico: dois dos vértices do triângulo amoroso se ignoram solenemente.
Lois, bring my book willya? ‘Guess I left it there near the mirror…
Heloísa dirigia-se para o banheiro, voltou o olhar para o pedação de fêmea estirada na cama entre os lençóis acetinados. Não se cansava daquela paisagem de carnes longilíneas e alvas; abriu a porta e logo avistou na penteadeira o livro que ela lhe pedira: Where are you going, where have you been?, de Joyce Carol Oates. Levantou os olhos para espiá-la novamente pelo reflexo do espelho.
― Minha nossa, credo, aiiiii! ― o coração de Heloísa quase que lhe salta pelos gorgomilos: ali no espelho, em vez de Callista, ela via Gimeno, despido na cama atrás dela.
Honey, what’s up? You’re scaring me!...
Virou-se lentamente na direção do leito, mas ali encontrou apenas a amante com os olhos arregalados e cara de interrogação. Sentou-se na cama e pediu que lhe buscasse uma água na cozinha, disse que não era nada, que melhorava já, apenas estafa de trabalho. Burn out, uma síndrome comum em CFOs.
De volta para São Paulo, andava inquieta. Aconteceria de novo? Por dúvida das vias, cobriu o espelho do quarto com uma toalha quando o marido começou a agarrá-la com segundas intenções; não podia estar menos “ligada” para a sacanagem, mas deixou-se ir ao ver a cômoda devidamente coberta. No meio do bem-bom, o susto: Plunkt-Plakt!
― Ave, Mãe! Não, de novo não... não pode ser!
― Calma amor, é só a porta do armário que abriu. Preciso consertar... ― na folha interna do armário que era espelhada, horror dos horrores, o reflexo de duas mulheres na penumbra do quarto.
Foi consultar uma psicanalista bam-bam-bam da Tavistock Clinic. A decana lhe explicou que provavelmente estava sofrendo de alucinações visuais provenientes do retorno do Complexo de Édipo; resumidamente, ela disse que, muito embora não sentisse culpa conscientemente, a situação se tornara conflitiva porque reencenava a possibilidade nefanda de transar com papai e mamãe alternadamente. Depois dessa, pagou a conta e não voltou mais ao consultório da Dra. McDougall.
Decidiu deixar como estava, até porque, só ela via o que se passava do outro lado do espelho; o que os olhos do marido e da namorada não vissem, o coração não sentiria. Até que...
Oh no, not this mirror thing again, Heloïsa! Now what?
Pobre Callista!, se pudesse ver pelos olhos da outra, veria duas figuras reproduzidas na superfície da janela do apartamento; porém, ao lado de Heloísa estaria um menino sardento usando aparelho ortodôntico. Devia ter uns oito anos de idade.