domingo, 5 de fevereiro de 2012

Ágaton, ou do amor à Sabedoria (parte alfa)


            O filósofo Ágaton caminhava pelas trilhas (peripatós) da orla do bosque dedicado a Apolo Lykeios, os agradáveis sendeiros que valeram à escola fundada por Aristóteles o apelido de peripatética. O grande mestre tinha esse hábito, ensinava andando junto com os discípulos; mas isso fora há mais de cem anos, naquela tarde as preocupações do atual administrador do Liceu eram bem mais comezinhas. Acompanhava-o seu discípulo Afrodísio, cujo rotundo corpanzil tornava-lhe a caminhada bem menos prazenteira e o impedia de apreciar devidamente a bela paisagem.
            ― Mestre, peço-lhe que faça uma pequena parada acolá, onde o azinheiro derrubado por um raio de Zeus nos dará assento à sombra daquele calhau...
            ― Hmm, caro Afrodísio, deverias freqüentar mais o ginásio de esportes do que os teatros e as orgias... Lamento que gastes tanta energia com o agape hêdonê (amor aos prazeres) e deixes de lado a philia (amor fraterno) em favor de éros (amor sexual). Não te percas pelo nome...
            ― Disseste-o bem, Ágaton, meu mestre, mas também é certo que Platão preferia o amor (éros) à amizade (philia), e o melhor do amor, dizia ele, é que nos deixa sem lugar (atópos), quer dizer, completamente perdidos...
― Ó Afrodísio, retórico sutil, lembra-te porém que o amor jamais nos deixa áporos (sem caminhos), pois que o amor é o único caminho e verdade da sempre frágil vida ― desconsolado, Ágaton contemplava o reboco descascado da casa de banhos do Liceu. A idade de ouro da filosofia grega dava lugar a um outono melancólico: com o declínio do império macedônico e as subseqüentes insurreições, os atentados a edifícios públicos não poupavam nem mesmo as escolas de filosofia; a instabilidade política e as lutas entre facções rivais haviam feito de Atenas, a auto-intitulada Escola da Hélade, um lugar inóspito para o livre pensar naquele ano de 200 a.C.
― Mudando de tópico, vim te suplicar que aceites o convite da Academia da Beócia, senhor; assim, tanto podemos divulgar os ensinamentos do Liceu, como receber um bem vindo dinheirinho para reformar o nosso anfiteatro, que foi destruído por um incêndio criminoso...
― Segundo dizem, há uma intenção política no tal simpósio dos beócios...
― Bem, é fato que os beócios não gozam de uma grande fama no mundo grego, mas o pleito é razoável: querem que faças uma apologia da democracia contra a tirania, tão em voga nos dias de hoje. E, como dizem os romanos, que em breve nos dominarão, pecunia non ollet, o dinheiro não tem odor...
Calaram-se. O olhar do mestre vagueou na direção do monte Himetos, onde a vegetação sofria com a prolongada estiagem do verão helênico. Até mesmo o bosque de Apolo que outrora cingia o Liceu, tão pródigo em sobreiros, pinheiros, cedros e ciprestes, recuara para dar lugar às plantações de oliveiras e videiras de cuja colheita a escola dependia para se manter. Matas virgens onde antes podiam ser avistados linces, cabras montesas e lebres, tinham sido substituídas por charnecas em que proliferavam o medronho, o louro-bravo, urzes e giestas.
Ágaton meditava, profundamente absorto. Percebia, com meridiana clareza, a loucura (manía) que atingira o espírito ateniense: haviam perdido a justa medida (métron); toda arte, ciência e pensamento gregos estiveram, até ali, baseados na virtude (aretê), que nada mais era que o sóbrio equilíbrio das paixões. O atual estado das coisas era um desarranjo devido ao excesso (húbris) que acometera os orgulhosos habitantes de Atenas; ele não se deixava enganar pelo maravilhoso conjunto de templos construídos na colina rochosa da Acrópole, sabia que há muito seus concidadãos reverenciavam com sinceridade a um único deus: o Mercado (ágora). O princípio do fim foi a condenação de Sócrates; naquele momento a serpente punha o ovo: embriagados pelo triunfo ante os persas, os atenienses simplesmente roubaram o ouro da Liga de Delos para embelezar sua cidade, enfurecendo Esparta e arrastando todas as cidades-estado da Grécia para Guerra do Peloponeso. Depois vieram os macedônios, com seus delírios de criar um grande império multiétnico onde a herança grega se misturaria aos bárbaros costumes persas e asiáticos. Deslumbrado por suas impressionantes vitórias militares, Alexandre, que nada aprendeu com seu preceptor Aristóteles, teve o desplante de exigir que cidadãos gregos o reverenciassem como a um deus!
Tudo isso, como não poderia deixar de ser, refletiu-se também na seara especulativa. Infiltrara-se no pensamento grego uma nem tão sutil desesperança, e a filosofia de Epicuro (340-271 a.C.) era o sintoma mais proeminente dessa anarquia espiritual, já que seu materialismo estrito dizia que devíamos nos limitar a procurar a paz da alma (ataraxía) em nossas vidas privadas como se fosse um balanço entre dores e alegrias, isto é, viver sem temer aos deuses. Nem agora, nem depois da morte, uma vez que a alma não seria imortal. Que Zeus nos perdoe!, para cúmulo dos cúmulos, um filósofo do próprio Liceu, Estratão, chegara recentemente a professar abertamente o ateísmo!
Ágaton constatava a quebra da síntese perfeita que guiara a relação dos seus compatriotas entre si e para com os deuses; fora-se o tempo em que o grego contava com as respostas antes das perguntas, em que o erro acontecia por falta ou excesso, o saber era apenas o alçar dos véus da ignorância e a virtude, um conhecimento perfeito dos caminhos ― um mundo homogêneo, onde a separação entre homem e mundo, entre tu e eu, não eram capazes de perturbar um cosmos sem fissuras, em adequado equilíbrio. O mundo ia-se tornando infinitamente grande e rico, com recantos mais perigosos e maiores dádivas que se pudesse sonhar, mas esta mesma riqueza encontrava-se destinada a suprimir o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade. O novo mundo que se anunciava era uma coleção, quase sempre informe, de fragmentos. Um museu de tudo de onde estava excluído o Todo.
Aceitou a proposta do discípulo, iria dar sua palestra aos beócios.

Um comentário:

angela disse...

Qualquer semelhança...
Aguardo o omega..rs