1. Lara
A moça do tempo. A voz da moça do tempo. Por mais de vinte anos, diariamente no ar. Duas inserções diárias na programação da maior emissora de rádio de São Paulo; uma pela manhã, com a previsão do dia, outra na edição noturna de notícias. X-FM, 109.9, o encontro marcado depois da vinheta com a música do filme Doutor Jivago.
Uma voz diferente, musical, de locuções sóbrias, mas quase cantadas. Especulavam os muitos fãs que o poder hipnotizador daquela voz talvez estivesse na dicção e cadência perfeitas, ou no andamento melodioso com discretas improvisações prosódicas. O certo é que havia perturbadoras sonoridades embutidas no timbre de Lara que a distinguiam, como um diamante ao qual as impurezas houvessem tornado mais precioso.
E um mistério também. Na era da visibilidade total, não havia uma única imagem dela circulando por aí; nem uma foto sequer, nenhuma entrevista para talk show, site, revista ou jornal. Um enorme capital midiático, além de sossego para a vida privada.
Neste pormenor sua vida era vertiginosa; seu lema: qualquer paixão me diverte. E põe diversão nisso. Lara não perdoava feriado nem dia santo, democrata social, não tinha tempo ruim, passava o rodo, pegava geral: homem, mulher, transgente, o que viesse; só perdoava criança e pé-na-cova. Um trio elétrico amoroso, e atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Toda hora era hora, todo dia, Carnaval.
Lara era assim, quem gostava, amava, quem não, detestava. Havia a decepção íntima de não ter tido coragem de ser cantora ― o que nem às paredes confessava ―, mas sobrava-lhe a nada pequena alegria de ser escutada diariamente por um público fervorosamente fiel. Nada pode tudo na vida, já dizia o Itamar.
Havia também uma outra coisa bem mais estranha: pouco a pouco, notou que deixara de ser alguém, um indivíduo único, uma pessoa claramente definida como as outras. Sem que atinasse com porquês e comos, tornara-se uma colcha de retalhos das músicas que tocavam na sua rádio-cabeça.
Começara com a música-tema da sua vida louca, vida: Folhetim, do Chico Buarque. Na manhã seguinte, qualquer grande amor da véspera já não valia nada, era página virada do seu folhetim. Ou então, vinha-lhe à mente aquela do Cazuza: você se parece com todo mundo, e Ploft!, acabava na hora a magia da paixão e Lara partia para outra.
Uma forma de amor ao próximo: tentava amar este(a), não deu, próximo. Só que perdera o controle, todo o diálogo interno, os sentimentos e pensamentos mais íntimos, vinham agora enunciados pelas canções dos seus compositores favoritos. E tome Vandré, Mautner, Tom Zé, Paulinho da Viola, Gil, Renato Russo, Geraldo de Azevedo, Milton, Caetano, Alceu, etc., a torto e a direito.
No dia em que completou vinte e cinco anos de carreira houve uma comemoração simples na rádio, a festa mesmo seria no fim de semana numa boate. De repente, o zum-zum-zum se espalhou feito pólvora, o Sr. X tinha vindo em pessoa ao estúdio; a X-FM era líder de audiência na cidade, mas não passava de uma gota no oceano de negócios do poderoso empresário. O que o trazia ali?
“Corre ligeiro escorrendo objeto vermelho/ fica suspeito gostoso objeto vermelho/ morre direito gostoso coração vermelho” ― era o Melodia tocando dentro da cabeça dela; mais uma vez, sem que conseguisse entender o motivo.
Foi chamada à sala do diretor, que se encontrava guardada por um pequeno exército de guarda-costas. O Sr. X estava sozinho lá dentro; ela sentou-se sem que ele oferecesse uma cadeira.
― Lara, me desculpe ter aparecido assim, sem avisar... sou seu admirador há muito tempo e quis conhecê-la pessoalmente.
― Puxa, obrigado, estou tão lisonjeada... nunca tínhamos sido apresentados, quer dizer, nem sabia que nós aqui éramos importantes para o senhor...
Sem lhe responder e sem dizer uma só palavra, o Sr, X começou a abrir o zíper das calças. Era a situação mais constrangedora da sua vida, queria que se abrisse um buraco no chão da sala para fugir daquela saia justa. Ele não explicava, não pedia e não mandava, mas o silêncio tenso que se estendeu por minutos deixava pouca margem para dúvidas. O que mais a assustou foi ouvir na boca dele os versos do Macalé.
― Você não passa da programadora de repertório redundante da minha dor.
Um comentário:
Oh céus! Bem que dizem que pra toda panela tem uma tampa...rs
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