quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

4 mulheres de perfil (I)

1. Lara

A moça do tempo. A voz da moça do tempo. Por mais de vinte anos, diariamente no ar. Duas inserções diárias na programação da maior emissora de rádio de São Paulo; uma pela manhã, com a previsão do dia, outra na edição noturna de notícias. X-FM, 109.9, o encontro marcado depois da vinheta com a música do filme Doutor Jivago.
Uma voz diferente, musical, de locuções sóbrias, mas quase cantadas. Especulavam os muitos fãs que o poder hipnotizador daquela voz talvez estivesse na dicção e cadência perfeitas, ou no andamento melodioso com discretas improvisações prosódicas. O certo é que havia perturbadoras sonoridades embutidas no timbre de Lara que a distinguiam, como um diamante ao qual as impurezas houvessem tornado mais precioso.
E um mistério também. Na era da visibilidade total, não havia uma única imagem dela circulando por aí; nem uma foto sequer, nenhuma entrevista para talk show, site, revista ou jornal. Um enorme capital midiático, além de sossego para a vida privada.
Neste pormenor sua vida era vertiginosa; seu lema: qualquer paixão me diverte. E põe diversão nisso. Lara não perdoava feriado nem dia santo, democrata social, não tinha tempo ruim, passava o rodo, pegava geral: homem, mulher, transgente, o que viesse; só perdoava criança e pé-na-cova. Um trio elétrico amoroso, e atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Toda hora era hora, todo dia, Carnaval.
Lara era assim, quem gostava, amava, quem não, detestava. Havia a decepção íntima de não ter tido coragem de ser cantora ― o que nem às paredes confessava ―, mas sobrava-lhe a nada pequena alegria de ser escutada diariamente por um público fervorosamente fiel. Nada pode tudo na vida, já dizia o Itamar.
Havia também uma outra coisa bem mais estranha: pouco a pouco, notou que deixara de ser alguém, um indivíduo único, uma pessoa claramente definida como as outras. Sem que atinasse com porquês e comos, tornara-se uma colcha de retalhos das músicas que tocavam na sua rádio-cabeça.
Começara com a música-tema da sua vida louca, vida: Folhetim, do Chico Buarque. Na manhã seguinte, qualquer grande amor da véspera já não valia nada, era página virada do seu folhetim. Ou então, vinha-lhe à mente aquela do Cazuza: você se parece com todo mundo, e Ploft!, acabava na hora a magia da paixão e Lara partia para outra.
Uma forma de amor ao próximo: tentava amar este(a), não deu, próximo. Só que perdera o controle, todo o diálogo interno, os sentimentos e pensamentos mais íntimos, vinham agora enunciados pelas canções dos seus compositores favoritos. E tome Vandré, Mautner, Tom Zé, Paulinho da Viola, Gil, Renato Russo, Geraldo de Azevedo, Milton, Caetano, Alceu, etc., a torto e a direito.
No dia em que completou vinte e cinco anos de carreira houve uma comemoração simples na rádio, a festa mesmo seria no fim de semana numa boate. De repente, o zum-zum-zum se espalhou feito pólvora, o Sr. X tinha vindo em pessoa ao estúdio; a X-FM era líder de audiência na cidade, mas não passava de uma gota no oceano de negócios do poderoso empresário. O que o trazia ali?
“Corre ligeiro escorrendo objeto vermelho/ fica suspeito gostoso objeto vermelho/ morre direito gostoso coração vermelho” ― era o Melodia tocando dentro da cabeça dela; mais uma vez, sem que conseguisse entender o motivo.
Foi chamada à sala do diretor, que se encontrava guardada por um pequeno exército de guarda-costas. O Sr. X estava sozinho lá dentro; ela sentou-se sem que ele oferecesse uma cadeira.
― Lara, me desculpe ter aparecido assim, sem avisar... sou seu admirador há muito tempo e quis conhecê-la pessoalmente.
― Puxa, obrigado, estou tão lisonjeada... nunca tínhamos sido apresentados, quer dizer, nem sabia que nós aqui éramos importantes para o senhor...
Sem lhe responder e sem dizer uma só palavra, o Sr, X começou a abrir o zíper das calças. Era a situação mais constrangedora da sua vida, queria que se abrisse um buraco no chão da sala para fugir daquela saia justa. Ele não explicava, não pedia e não mandava, mas o silêncio tenso que se estendeu por minutos deixava pouca margem para dúvidas. O que mais a assustou foi ouvir na boca dele os versos do Macalé.
― Você não passa da programadora de repertório redundante da minha dor.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A candidatura brasileira ao IgNobel de Literatura de 2012


            O FEBEAPÁ (Festival de Besteiras que Assola o País) não cessa de produzir pseudo-polêmicas de alto calor argumentativo e baixo teor nutritivo, porém, desta vez o caso é sério e exige medidas práticas de caráter emergencial.
            Recentemente, no bojo de um imbróglio que envolve obscuros poemas e citações cifradas, o gestor de um equipamento cultural da cidade de São Paulo foi acusado de promover um EXCESSO DE SARAUS no dito órgão público. Um despautério!
            Deixando de lado os méritos (duvidosos) da controvérsia, e visto que todos os envolvidos são (literalmente) brancos e acabarão se entendendo sobre cargos e salários, não pode passar assim, sem mais, tamanha pérola do humor involuntário
Há que se instituir investigação imediata e punição aos culpados: demissão célere, rito sumário e condenação certeira para os bagunceiros das letras. Aliás, sugerimos estender os corretivos a professores que ensinem em excesso, engenheiros que construam, juízes que julguem, médicos que curem e etc.
Propomos a criação de uma COMISSÃO JULGADORA DA VERDADEIRA POESIA, regada a dinheiro público, claro, com poderes para limitar a proliferação abusiva de saraus em todo o território nacional.
É necessário, imperioso e urgente botar tenência na Casa da Mãe Joana, afinal, todos sabemos que um país grande só se faz com uma literatura pequena, bem organizada e seletiva ― de preferência, ignorada do grande público.
Poesia é coisa séria demais para andar por aí na boca de motoboys, overloquistas, contínuos, recepcionistas, babás, rappers, popozudas, pichadores, essa “gente diferenciada” em geral. Pelo nosso projeto-lei, seriam concedidas CARTEIRINHAS OFICIAIS DE POETA apenas àqueles que fossem capazes de traduzir Anacreonte diretamente do alemão e/ou de recitar, de cor ou de cabeça, um capítulo inteiro do Finnegan’s Wake (em qualquer língua).
Neste belo e fagueiro país que resolveu tantos de seus problemas, e cuja maior luta cultural na atualidade começa e acaba em conspiratas para derrubar a ministra da Cultura, não se pode permitir que funcionários públicos andem por aí a cumprir em demasia suas funções. Ordem na caserna acadêmica, pulso firme com a senzala e pé no freio!
A partir deste pequeno, mas extremamente significativo qüiproquó do BELETRISMO nacional, cremos estarem lançadas firmemente as bases para a candidatura brasileira ao IgNobel de Literatura de 2012.
Agora vai!

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Claudicante


Refeita de rarefeito amor

retomo a vida

trôpega

anêmica


Encontro o ponto

solto

desse encontro

oco


Devagarzinho

sem pressa

caminho

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Ágaton, ou do amor à Sabedoria (parte ômega)


Os atletas foram generosamente recompensados pelos óbolos saídos das bolsas dos seletos integrantes daquela reunião de bacanas; não foram poucos dentre estes a louvar a destreza, e a beleza, da intrépida trupe de efebos. Aproveitando uma pausa na algazarra instalada entre os convivas durante os folguedos do interlúdio, o general Ipsípedes tomou da palavra apostrofando-os gentilmente de modo a trazê-los de volta para a conversação séria.
― Cidadãos, se me permitis retomar uma chave mais polêmica do que poética neste colóquio, gostaria de vos dizer, sem pretensão de lhes estar a contar um segredo, que dentro de poucas décadas seremos mais uma província do império romano. O que isto mudará em nosso dia a dia? A princípio, pouca coisa, já que a águia romana agarra, mas não aperta muito; trata-se de uma civilização universalista e antropofágica, relativamente tolerante, uma potência bárbara emergente como as que vão governar o mundo conhecido de agora em diante. Debalde escolhemos os nossos políticos, o verdadeiro governo está longe daqui. Vede como é desoladora a situação de dependência econômica da nossa querida Magna Grécia: estamos hoje de joelhos diante de nações gigantescas e frias a quem estendemos as mãos em pleito desesperado. E o que destes potentados obtemos? Esmola curta e chicote longo. Estamos mas é, desculpai o calão, funicados e mal remunerados! Receio mais que tudo, neste panorama sucinto que vos esbocei, o lugar que o futuro reserva à democracia, esta flor da cultura grega, conquista que tanto nos custou a nós, cidadãos da Hélade; o maravilhoso sonho de criar uma federação de cidades-estado onde cidadãos esclarecidos decidem livremente sobre o seu destino. Não chegarei ao ponto de afirmar que a nossa forma de vida atingiu a perfeição, diria antes que encontramos um delicado equilíbrio na dinâmica das formas: a mesma divina proporção que utilizamos para representar nossos deuses e construir templos, se encontra nas conchas do mar, no crescimento das plantas, na música das esferas...
― Perdoa-me, amigo Ipsípedes, se te interrompo, mas é que não posso deixar de lembrar o malogro de Platão: o grande filósofo quis mais do que a parte contemplativa do saber (gnôsis) e lançou-se por duas vezes à aventura da práxis (ação) política em Siracusa, onde reinava o tirano Dionísio, o Antigo. E no que resultaram tais aventuras? Desterro e prisão. Imaginai que ele, o homem que idealizou uma República (Politéia) ideal, chegou a ser feito escravo por tentar fazer da utopia realidade!...
― Mas, justamente, Irineu, não percebes que levas água para o meu moinho? Platão via com maus olhos a democracia, pois nela nem sempre o mais preparado recebe mais votos; como a justiça (thêmis) não era forte, quis ele educar a força (dynamis) para que se tornasse justa. Deu no que deu. Isso de querer lidar com tiranos, mesmo os esclarecidos... Como queria demonstrar, não há muito a melhorar em nosso sistema. O que me preocupa, neste momento em que nos ocupamos de disputas paroquiais, é que não há nelas lugar para a sabedoria ou a razão. Atualmente, eleições só proporcionam boas oportunidades para os astutos.
O céu perdia lentamente seus azuis, cambiando para uma paleta mais variada onde compareciam amarelos, laranjas, vermelhos e violetas em surpreendentes justaposições; as andorinhas davam seus derradeiros vôos rasantes no arvoredo próximo e nos beirais dos telhados. Ágaton, até então aparentemente ensimesmado, levantou e pôs-se a deambular para melhor dar curso ao seu pensamento peripatético enquanto falava.
― Tão tolo é aquele que de tudo discorda, quanto o que dá razão a todos; porém, Ipsípedes e Irineu, irei contra e a favor de muito do que acabastes de falar. Que a crise grega é séria até o cego Tirésias pode ver, cidadãos beócios, e a tal monta chegaram minhas preocupações com o assunto que fui ao Oráculo de Delfos consultar as sacerdotisas de Apolo; após aspirar as inebriantes emanações de gás que saem das entranhas do monte Parnaso, a Sibila entrou num transe e me contou das incríveis realidades que os tempos futuros trarão. Sim, porque, nós gregos, temos a posteridade a espiar sobre nossos ombros, tudo que dissermos e fizermos será discutido pelos séculos por vir; imaginai semelhante responsabilidade se, por um desses misteriosos acasos da História, este nosso diálogo for preservado para os homens e mulheres que viverem, digamos, dois milênios depois de nós? Notai que disse homens e mulheres, pois que chegará esse dia em que todos serão cidadãos e não mais haverá escravos, em que toda a humanidade estará interligada numa comunidade de trocas instantâneas de informação pelo éter; todos terão acesso ao conhecimento e aos meios de utilizar tal sabedoria para tornar suas vidas melhores. Pois sabei que é esta a sagrada missão da filosofia: transformar todos e cada um em pensadores e poetas; já que contemplar (theoreín) e criar (poeisín) são tarefas ao alcance do comum dos mortais, seja ele grego ou bárbaro. Entendo que o mundo será dos muitos, e é preciso que nele haja lugar para todos; digo-vos que a filosofia na verdade é uma forma de nostalgia do que ainda não existe, o impulso de sentir-se em casa em toda a parte. Amai a Sabedoria (Sophia), portanto, amai-a na alegria e na tristeza, amai-a quando estiverdes cansados, sentindo medo ou mágoa; haverá tristeza nela, mas será uma tristeza confortada; alegria, mas constante e delicada; cansaço, mas pleno de coragem, paciência e infinito perdão; e isso tudo, meus amigos, esse som mavioso e melancólico, é a voz da sabedoria.
A escuridão já reinava quando soaram as últimas palavras do filósofo. Acenderam-se as tochas; Ágaton pode ver quando o seu rubicundo discípulo Afrodísio, acompanhado de um acrobata, adentrava o bosque imerso em sombras.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

comer, beber e f...


Os grandes momentos da vida costumam pegar ao desprevenido, não poucas vezes, chegam quando já não esperávamos muito mais coisas dela. Acontece que o mundo é dos teimosos, e quem muito teima, vez que outra, alcança. Insistência é o que nunca faltou a Cirlene, 57 anos no lombo, trinta deles ralando como auxiliar de enfermagem, 4 casamentos e... nada! Nadinha, nadica, neca de pitibiribas; nem um orgasmozinho mofino sequer para constar no currículo.
O terceiro marido, o fanático por estatísticas esportivas, tinha comparado as suas décadas de frustrante vida sexual com uma partida de futebol: bem disputada, muita entrega e movimentação, mas, caminhando para o final do segundo tempo sem gols. Era o fundo do poço: além de não contribuir para a solução, o sujeitinho ainda se dava ao desfrute de fazer graça com o tesão (ou a falta de) alheio.
Atual pretê da Alemoa, apelido de Cirlene, o improvável Silvino poderia parecer à primeira vista o candidato menos adequado para realizar a façanha: funça aposentado, calvo, magricelo, barriga de cerveja e bafo de onça, ele lembrava uma coxinha espetada em quatro palitos permanentemente ensopada de pinga. Ninguém suspeitaria nele o sherpa ideal para guiá-la ao Morro dos Prazeres, que dirá, aos cumes do Everest.
Vota-se ao logro, porém, quem se fia demais nas aparências. As décadas de Silvino mediam-se em tonéis de destilados e fermentados; o álcool já havia estragado diversos órgãos e arruinado sistemas inteiros em seu corpo, no entanto, restava-lhe indene e impávida a piroca. Não era, assim, um Gigante Adormecido, uma manjuba de jegue, mas estava plenamente operacional, para orgulho do piauiense de Oeiras, pai-d’égua, macho pra mais de metro que era.
Percebendo que a mina era de responsa, resolveu investir na conquista; convidou-a para uma reunião da categoria em São Paulo, tendo previamente fechado um acordo com o hotel onde tinha reserva. Por uma quantia adicional, paga pela taxa anual dos companheiros arquivistas, fez um up grade de quarto de solteiro simples para suíte romântica. Um bem-bolado de política e amor às custas do sindicato.
O Hotel Savoy oferecia este mimo para casais em lua de mel, a suíte nupcial especialmente preparada: quarto duplo, ofurô, cama king size, velas, incenso e 3 tipos de pétalas , tábua de frios, frutas da estação e champanhe no balde. O problema foi o trânsito que pegaram saindo da Castelo para a Bandeirantes; Silvino angustiava-se no carro imaginando as pétalas murchas, o champanhe esquentando, as velas queimando o carpete e o cortinado... Fogo? Estaria o seu ninho de amor pegando fogo?
Finalmente, depois de muito anda-pára, chegaram. Contra as sombrias perspectivas, o quarto estava um brinco; a Alemoa ficou emocionada com a surpresa. Trataram de não economizar na cera, já que o defunto era bom: comeram, beberam (que dúvida!) e amaram ― não necessariamente em ordem alguma. Cirlene, que já conhecia o sexo com e sem amor, descobriu o que é trepar com sacanagem, muita sacanagem.
Raparigueiro contumaz, além de experimentado comedor de repartição, Silvino dispunha de um arsenal infindável de técnicas capazes de metamorfosear desde escriturárias a chefes de seção em lagartixas. Isto sem falar dos “brinquedinhos” e acessórios que trouxera; com a voz roufenha e arrastada à la Pereio, propunha deboches e dizia-lhe ao ouvidinho putarias que nunca suspeitou que alguém pudesse sonhar. Ela, que recorrera aos cursos de pompoarismo, massagens tântricas e até a uma estadia num ashram do Rajneesh, via-se agora apresentada, com desassombrada naturalidade, ao frango assado, meia-nove em pé, carrinho de mão, DP, chuva preta e amarela, televisão-de-cachorro, gangorrinha, etc.
― Vem meu galo doido... isso... me come bem gostoso, come a sua cachorra... au, au, AUUUU!... ― e foi assim, a cavaleiro daquele cavaleiro de triste figura, mas de lança em riste, que obteve a sua primeira epifania. Mas eis que o sétimo céu dos poetas, o clímax da excitação, o zênite do prazer, o nec plus ultra do gozo vinha para ela com o selo da graça divina e, de brinde, um susto dos diabos: o orgasmo inaugural da debutante fez-se acompanhar de uma dor de arrebentar a tampa da cabeça.
Assustada, lembrou da profissão; pensou que podia ser um derrame, estaria “fazendo” um AVC? Nunca tinha sentido algo como aquilo. Pelada como estava, correu para pegar o notebook entre os seus pertences: precisava consultar o Doutor Google. Digitou todos os sintomas e obteve várias respostas; uma delas chamou a atenção de Silvino, que acompanhava curioso a pesquisa: “cefaléia orgástica”. Leram alguns artigos, não havia dúvidas, Cirlene sofria de uma não tão rara condição em que ao gozo sexual sucedia a dor de cabeça. Podia vir a melhorar com o tempo.
Ele ficou todo crencho, coçava alternadamente o barrigão e o saco; sentia o ego inchando de tanta auto-estima, via-se no papel do porco barrão, o garanhão da meia idade, o dono da varinha mágica. Foi para a janela fumar um cigarro, num momento de enlevo, acreditou ler no maço: “O Ministério da Saúde adverte: sexo selvagem pode causar muita dor de cabeça”.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Socapa



São tantas as formas

de por e dispor

compor e repor


Que a víbora consegue

disfarçar no sabor do mel

o saber do fel.



domingo, 12 de fevereiro de 2012

Não tenho fuga, sou poeta trova/dor: para vocês o meu poema como mulher expulsa do paraíso

Ágaton, ou do amor à Sabedoria (parte beta)


Saíram cedo. A viagem até à Beócia era relativamente curta, poucos eram os cânions e desfiladeiros do caminho, mas precisavam aproveitar a luz do dia porque as estradas andavam infestadas de perigosos salteadores. O grupo incluía três homens e duas mulas; o prebusteroi (professor) Ágaton e o aluno (neaniskoi) Afrodísio seguiam montados, escoltados por um escravo armado e a pé. Ágaton não podia deixar de refletir sobre a condição do servo que os atendia ― estranhas são as forças que fazem um sujeito (hypokeimenon) forte e armado curvar-se voluntariamente a dois intelectuais que ele não teria dificuldade alguma em eliminar!
Chegaram com sol declinante a Lavadeia, importante cidade beócia onde os aguardava Irineu, o demagogo. Após serem banhados pelos escravos do anfitrião, foi-lhes servido o lauto banquete que abria a conferência pública. No terraço, sombreado pela cerca viva de uma pérgola recamada de hera e vinha, reunia-se a platéia de apenas nove cidadãos; delicadas viandas, assados, vinhos e licores eram servidos em abundância aos convidados reclinados nas espreguiçadeiras. Irineu pediu silêncio tomando a palavra:
― Senhoras e senhores, ou melhor dizendo, andres Boitikoi (homens da Beócia), como sabeis, estamos às vésperas de um plebiscito para escolher a forma de governo que adotaremos de ora em diante: disputam nosso sufrágio a tirania (governo de um só), a aristocracia (governo dos melhores) e a democracia (governo do povo). O ilustre filósofo ateniense Ágaton, cuja fama o precede, aqui está para nos mostrar como a prudência (phrônesis) deve guiar a ação correta (spondata práxis).
― Amigos, não ficarei com tertúlias flébeis para acalentar bovinos (conversa mole para boi dormir, em greco-aramaico); dado o número reduzido em que nos encontramos, proponho transformar minha palestra em diálogo ― e Ágaton afastou de si o pergaminho de anotações do seu discurso. ― De mais a mais, quem pretende defender as virtudes do governo da maioria, melhor fará se não vos tratar como leigos (idiôtai), mas como legítimos interlocutores e adotar o modo dialético.
― Disseste-o com muita propriedade, ó Ágaton, e eu, Hiparco, cidadão beócio, gostaria de começar fazendo um reparo: é verdade que o tirano foge das eleições como o diabo da cruz; certo é também que, na aristocracia, as votações tendem a se tornar meros referendos dos interesses das classes dominantes; porém, acreditas tu que a democracia seja a panacéia universal da política? Acaso os governantes democraticamente alçados ao poder mostram-se mais prudentes que os tiranos, ou menos defensores das elites que os nobres? Os ditos representantes do povo (demagogos), não seriam antes servos dos altos interesses, dito de outra forma, não seria a democracia na verdade uma plutocracia (governo dos ricos)?
― Amigos ― interveio Afrodísio ―, dentre todos os tipos de governança, o que distingue a democracia é a capacidade de fazer escolhas, não a qualidade delas. O motivo pelo qual continuamos a jogar os dados, a depositar os votos e apostar nas novas forças que surgem na pólis, é justamente manter esta roda girando. Só quando as multidões são convocadas é que o sistema tenderá para a renovação, mais do que qualquer outra forma de organização social, a democracia tem o poder de absorver as formas do novo.
― Eloqüente Afrodísio, caros colegas, tal como os deuses do Olimpo deixaram a Discórdia se instalar na eleição da mais bela deusa, os homens temem o Pomo de Ouro da decisão, toda escolha traz em si o impensável, o não previsto, a divisão de opiniões (dogmata). Por isso, nós gregos, utilizamos o conceito de tyké, palavra que carrega os sentidos de sorte, azar e acaso; sabemos que, em maior ou menor grau, o juízo (epokhê) que antecede a ação é formado em meio às brumas das paixões e do arbítrio. Tal e tanta é a nossa responsabilidade ― assim falou o arconte Midomeneu, comovendo os circunstantes com suas palavras doces e modos decididos.
― O discurso de Midomeneu conjura tamanho enxame de idéias em meu pensamento!... ― Ágaton se levantara para falar e agora caminhava por entre os divãs dos ouvintes. ― Se Éris (a Discórdia) obteve sucesso em dividir os olímpicos foi porque os desviou do Bom para o Belo, trocou a essência pelo fenômeno, elevando a bem supremo (ariston agathon) as aparências em lugar da virtude. Chegará, talvez, o dia em que o grito de Pan silenciará nas florestas, e as pessoas não mais buscarão o conselho dos filósofos, mas, se algum préstimo houver neles e em suas metáforas, cidadãos beócios, será o de lembrar que a todo encontro falta sempre a deusa ausente da Verdade (Alethéia). O filósofo ama a Sabedoria (Sophia) por ter ido além do egoísmo (philautía), pois toda a filosofia é um poema de amor à humanidade, já que pressupõe em todos a capacidade de se fazer as grandes perguntas (e de assumir o colossal abismo da ignorância). Lembrai daquele angustiante momento em que toda a criança se depara com o infinito e pensai como cada um de nós já teve de emprestar, do seu próprio corpo, o ser da palavra ser. A filosofia é uma medicina da alma, não por curar a melancolia essencial da existência, mas por ser uma verdadeira filantropia. Um sincero e utópico projeto de amor ao próximo.
A um gesto do dono da casa, irrompeu pelo terraço uma trupe de acrobatas. O torso nu dos atléticos kourós (adolescentes) em arriscadas piruetas e volteios, os óleos perfumados a ressumar daqueles corpos jovens, somados às profundas elocubrações do ateniense, causaram a mais vívida excitação na assembléia.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Ágaton, ou do amor à Sabedoria (parte alfa)


            O filósofo Ágaton caminhava pelas trilhas (peripatós) da orla do bosque dedicado a Apolo Lykeios, os agradáveis sendeiros que valeram à escola fundada por Aristóteles o apelido de peripatética. O grande mestre tinha esse hábito, ensinava andando junto com os discípulos; mas isso fora há mais de cem anos, naquela tarde as preocupações do atual administrador do Liceu eram bem mais comezinhas. Acompanhava-o seu discípulo Afrodísio, cujo rotundo corpanzil tornava-lhe a caminhada bem menos prazenteira e o impedia de apreciar devidamente a bela paisagem.
            ― Mestre, peço-lhe que faça uma pequena parada acolá, onde o azinheiro derrubado por um raio de Zeus nos dará assento à sombra daquele calhau...
            ― Hmm, caro Afrodísio, deverias freqüentar mais o ginásio de esportes do que os teatros e as orgias... Lamento que gastes tanta energia com o agape hêdonê (amor aos prazeres) e deixes de lado a philia (amor fraterno) em favor de éros (amor sexual). Não te percas pelo nome...
            ― Disseste-o bem, Ágaton, meu mestre, mas também é certo que Platão preferia o amor (éros) à amizade (philia), e o melhor do amor, dizia ele, é que nos deixa sem lugar (atópos), quer dizer, completamente perdidos...
― Ó Afrodísio, retórico sutil, lembra-te porém que o amor jamais nos deixa áporos (sem caminhos), pois que o amor é o único caminho e verdade da sempre frágil vida ― desconsolado, Ágaton contemplava o reboco descascado da casa de banhos do Liceu. A idade de ouro da filosofia grega dava lugar a um outono melancólico: com o declínio do império macedônico e as subseqüentes insurreições, os atentados a edifícios públicos não poupavam nem mesmo as escolas de filosofia; a instabilidade política e as lutas entre facções rivais haviam feito de Atenas, a auto-intitulada Escola da Hélade, um lugar inóspito para o livre pensar naquele ano de 200 a.C.
― Mudando de tópico, vim te suplicar que aceites o convite da Academia da Beócia, senhor; assim, tanto podemos divulgar os ensinamentos do Liceu, como receber um bem vindo dinheirinho para reformar o nosso anfiteatro, que foi destruído por um incêndio criminoso...
― Segundo dizem, há uma intenção política no tal simpósio dos beócios...
― Bem, é fato que os beócios não gozam de uma grande fama no mundo grego, mas o pleito é razoável: querem que faças uma apologia da democracia contra a tirania, tão em voga nos dias de hoje. E, como dizem os romanos, que em breve nos dominarão, pecunia non ollet, o dinheiro não tem odor...
Calaram-se. O olhar do mestre vagueou na direção do monte Himetos, onde a vegetação sofria com a prolongada estiagem do verão helênico. Até mesmo o bosque de Apolo que outrora cingia o Liceu, tão pródigo em sobreiros, pinheiros, cedros e ciprestes, recuara para dar lugar às plantações de oliveiras e videiras de cuja colheita a escola dependia para se manter. Matas virgens onde antes podiam ser avistados linces, cabras montesas e lebres, tinham sido substituídas por charnecas em que proliferavam o medronho, o louro-bravo, urzes e giestas.
Ágaton meditava, profundamente absorto. Percebia, com meridiana clareza, a loucura (manía) que atingira o espírito ateniense: haviam perdido a justa medida (métron); toda arte, ciência e pensamento gregos estiveram, até ali, baseados na virtude (aretê), que nada mais era que o sóbrio equilíbrio das paixões. O atual estado das coisas era um desarranjo devido ao excesso (húbris) que acometera os orgulhosos habitantes de Atenas; ele não se deixava enganar pelo maravilhoso conjunto de templos construídos na colina rochosa da Acrópole, sabia que há muito seus concidadãos reverenciavam com sinceridade a um único deus: o Mercado (ágora). O princípio do fim foi a condenação de Sócrates; naquele momento a serpente punha o ovo: embriagados pelo triunfo ante os persas, os atenienses simplesmente roubaram o ouro da Liga de Delos para embelezar sua cidade, enfurecendo Esparta e arrastando todas as cidades-estado da Grécia para Guerra do Peloponeso. Depois vieram os macedônios, com seus delírios de criar um grande império multiétnico onde a herança grega se misturaria aos bárbaros costumes persas e asiáticos. Deslumbrado por suas impressionantes vitórias militares, Alexandre, que nada aprendeu com seu preceptor Aristóteles, teve o desplante de exigir que cidadãos gregos o reverenciassem como a um deus!
Tudo isso, como não poderia deixar de ser, refletiu-se também na seara especulativa. Infiltrara-se no pensamento grego uma nem tão sutil desesperança, e a filosofia de Epicuro (340-271 a.C.) era o sintoma mais proeminente dessa anarquia espiritual, já que seu materialismo estrito dizia que devíamos nos limitar a procurar a paz da alma (ataraxía) em nossas vidas privadas como se fosse um balanço entre dores e alegrias, isto é, viver sem temer aos deuses. Nem agora, nem depois da morte, uma vez que a alma não seria imortal. Que Zeus nos perdoe!, para cúmulo dos cúmulos, um filósofo do próprio Liceu, Estratão, chegara recentemente a professar abertamente o ateísmo!
Ágaton constatava a quebra da síntese perfeita que guiara a relação dos seus compatriotas entre si e para com os deuses; fora-se o tempo em que o grego contava com as respostas antes das perguntas, em que o erro acontecia por falta ou excesso, o saber era apenas o alçar dos véus da ignorância e a virtude, um conhecimento perfeito dos caminhos ― um mundo homogêneo, onde a separação entre homem e mundo, entre tu e eu, não eram capazes de perturbar um cosmos sem fissuras, em adequado equilíbrio. O mundo ia-se tornando infinitamente grande e rico, com recantos mais perigosos e maiores dádivas que se pudesse sonhar, mas esta mesma riqueza encontrava-se destinada a suprimir o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade. O novo mundo que se anunciava era uma coleção, quase sempre informe, de fragmentos. Um museu de tudo de onde estava excluído o Todo.
Aceitou a proposta do discípulo, iria dar sua palestra aos beócios.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

tudo que eu achava que não


adeus palavra
saudades me despeço de ti
não sei se tornarei a ver
o Ser
e o Tempo
caminhar de braços
dados além dos abraços
e a minha mão em vôo solo
minhas explicações a sair
pelos cotovelos
o perdido sentido das coisas não é mesmo
para guardar
quero caminhar procurando cheiros
de metáforas
torcidos lençóis ensangüentados
nadas
vais achar
mais dor se fores
forte mesmo assim não olhes
para acasos ou desígnios
meus sonhos contaminam outras casas
que já não são minhas nem roubadas
uma lembrança que já não há
por acaso calarias o silêncio do silêncio
ou pouparias da dor o desespero?
o vazio na mesa da sala ocupa
implacável o central
e a ruas adormecem sem ti
adeus sem
palavra
Entremos.

Terapia de Grupo


            Mineirim, cabadim de chegar a Sumpaulo, foi que foi tentando se misturar ao povim desta cidade-gado, deste povo marcado e feliz. Mas o que tava pegando mesmo era que num pegava muié niúma, nem gripe ele tava pegando, aliás, mineirim tava que nem mega-sena: só acumulava.
            Vai ver era a o um-sete-um, parecia que o xaveco dele não entrosava com essas minas ariscas da capitar; resultado: tava feito largatixa, subindo pelas paredes e praticando, dia sim outro também, justiça com as próprias mãos. Achou nos classificados a solução: Consultório psicológico, venha resolver seus problemas sexuais e de relacionamento. Terapia de grupo.
            Perfeito. Ligou e marcou a consulta num endereço descolado da Vila Madalena. Umas cinco pessoas se achavam sentadas formando uma roda em torno do terapeuta, que tirou os mocassins e se sentou na poltrona cruzando as pernas na posição de lótus.
            ― Bem, acho que estamos todos. Poderíamos começar com cada um se apresentando brevemente e falando um pouco da questão que o trouxe aqui.
            ― Certo. Meu nome é Thiago, trabalho com design, sou casado e venho ultimamente ficando com um amigo e achei que precisava trabalhar melhor a minha bissexualidade.
― Eu sou o Nelson, advogado de direito ambiental, estou vivendo uma situação no meu casamento em que a minha mulher está tendo um caso extraconjugal e estou aqui para transar melhor isso na minha cabeça...
― Olá todo mundo, me chamo Mara e trabalho como tatuadora e piercer, vim porque, desde pequena, quando vejo as bundinhas e peitinhos das meninas, fico louca. Resolvi assumir que sou lésbica.
― Meu nome é Antônio, cabei de chegar de Minas e até hoje pensei que eu era pedreiro, mas ouvindo ocês, descobri que eu sou mesmo é lésbico!