sábado, 7 de janeiro de 2012

em 10 suaves prestações (primeira parte)

       
                Hábitos são as formas concretas do ritmo, são a quota de ritmo que nos ajuda a viver ― na elegante definição de Cortázar; talvez por hábito é que não os tenha visto chegar, e mesmo quando eles já estavam demasiado próximos, ainda tenha demorado para entender a cena.
            Até que apareceu a arma. Na minha cara. Dois caras entraram no meu carro e eu fui logo entregando a chave e a bolsa, pedindo para que me deixassem ir. Ledo, e Ivo, engano.
            ― Fica pianinha e vai ficar tudo bem. Agora passa pra trás, deita no chão do carro e aguarda instruções ― era o de camisa social falando, sempre o mais calmo de todos.
            Com uma arma apontada para você, aparece uma dimensão da existência completamente nova: o instante-já, o ser-aí irremediável; uma estação onde o tempo vai e volta, em que se está vivo e está morto simultaneamente e tudo vai depender muito das suas escolhas. A vida passa a acontecer em alta definição.
            Tentei argumentar, falava qualquer coisa que me vinha à mente.
            ― Me deixa ir, por favor. Olha, estão me esperando às duas e meia, vão sentir a minha falta. Me deixa, pelo amor de...
            ― Moça, este aqui é o seu celular? Só tem um? Vou desligar. Presta atenção: vão chegar uns camaradas nossos, são parte da equipe, nós vamos entregar seus cartões para eles retirarem a grana no caixa, OK? Escreve aqui suas senhas.
            ― Me solta, por favor, eu mesma busco quanto dinheiro você quiser...
            ― Se liga, porra! Aí mina, perdeu, porra!, tu tá a menos de meio metro de uma quarenta e cinco, se meter um teco em tu, nunca que vão acabar de limpar esta caranga de pedaço seu. Tá ligada?! ― esse era o que ficou ao volante, de camiseta, o mais nervoso e ameaçador.
            ― Faz o que a gente mandar e tá suave pro teu lado; a gente liquida logo o nosso serviço e cê vai pra casa ― camisa social me passou os cartões de banco e de crédito, papel e caneta.
            Certa vez um físico, que não me lembro agora o nome, definiu de forma crua o que havia antes do universo: nada. Não havia nem o tempo. Mas então como é que alguma coisa apareceu?, perguntou o documentarista que o entrevistava. Simples, houve uma flutuação. Aparentemente, dizia ele, as coisas “flutuam” e podem existir ou deixar de existir a seu bel-prazer. Assim: flutuando.
A vida das pessoas também está assentada nesta mesma falta de consistência paradoxal, o que fazemos é edificar tudo sobre contradições e fingir que vivemos numa outra história qualquer.
Até que um dia você entra para a estatística dos seqüestros-relâmpago. E de repente parece que a sua vida anterior era um sonho; parece então, que pela primeira vez, você está completamente desperto.
― Juro pelo que há de mais sagrado: nunca usei a senha dos cartões de crédito, não saco dinheiro com eles. As senhas de banco são estas, tá aqui, ó.
― Mas que carai, bacana tem cartão pra quê, se não é par sacar?
― Calma, mano. A mina tá cooperando, não tá?, fica na manha aí e faz a tua. Então, moça, tá no caminho certo, continua abaixadinha aí que esse teu carro não é filmado. Precisa pôr...
― Vou sim, puxa, vou fazer isso mesmo. Valeu.
Rodei por horas com estes dois personagens sem rosto, que jogaram comigo o good cop/bad cop enquanto permanecia deitada em posição fetal no banco traseiro do meu carro. Não via nada, no meu campo de visão escotomizado, apenas o teto e o céu nublado lá fora. Minha profissão é escutar os outros. Sou psicanalista, tenho quarenta anos. Fui abordada na Paracuê, uma ruazinha paralela da avenida Heitor Penteado às 14 horas de uma quinta feira quando deixava uma amiga em casa depois de almoçar com ela. Só posso lhes contar o que ouvi. E o que imaginei.