quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cuidar da infância: um enigma contemporâneo






Até surgir a psicanálise, a infância morava num um estágio do entendimento humano pelo qual passam os objetos de existência virtual: a presença sensorial é acompanhada de retardo conceitual numa condição de pouca representação. Com os esclarecimentos e confusões advindos da psicanálise, a singularidade infantil ganhou relevância anteriormente inédita; o mundo encantado da criança mostrou ser povoado por medos, inibições do desenvolvimento, complexos e passou a se discutir abertamente o tabu da sexualidade infantil. A teoria psicanalítica, que se completou no começo do século XX contemporânea de uma era de intensa agitação política e criatividade tecnológica, conseguiu estabelecer algum conhecimento técnico acerca da criança.

A subjetividade da criança ganha o nome de infans, aquele que se constitui como pessoa enfrentando a imaturidade orgânica; tal subjetividade constitui-se como um depósito de sucessivas identificações executadas à maneira de um antropófago cujo pragmatismo não vacila em apropria-se de produtos sociais, sejam estes pessoas, coisas animais ou representações coletivas. Cada biografia particular realiza um percurso único no qual as pulsões parciais se organizam em circuitos, sendo o sujeito do inconsciente produto destas travessuras regido pela ética do ‘perverso polimorfo’[1].

Ator e autor apostado por um narcisismo absoluto que o capacita a escrutinar a validade dos ensinamentos das pessoas que freqüentam sua ambiência, o infante está obrigado a investigar, a propor experimentos, buscar parceiros para realizá-los, até que em algum momento possa depositar para si uma condição que compatibilize as representações que forja com os mundos que habita. Num segundo momento, em que se torna biógrafo de sua própria história, ele deverá acompanhar as conseqüências de seus atos, assumir responsabilidades, bem como ser recompensado por suas ações – o chamado reconhecimento social.

Ao apresentar um panorama deste sujeito, tão infinitamente mais complexo do que antes se imaginava, a psicanálise atualizou uma problemática que não poucas vezes causa horror aos adultos: as crianças dão muito trabalho na sua construção. Freqüentemente confundem-se suas reações disfuncionais com doença, muitas crianças são levadas a tratamento porque os ‘cuidadores’ (pais, tios, avós, professores, terapeutas, outros agentes, etc.) não alcançam a extensão dos problemas, tampouco as dificuldades enfrentadas pelas crianças.

Estes ‘cuidadores’ enfrentam uma série de dilemas que podem ser agrupados em três categorias: primeiramente, precisam criar um ambiente de formação protetor e ao mesmo tempo desafiante para a criança; em segundo lugar, há um conflito de narcisismos entre cuidar de si próprios e atender às exigências de um ser exigente em meio a uma sociedade em rápida mutação; por fim, há a dificuldade estrutural que se baseia numa barreira de comunicação de base: os adultos, justamente porque precisaram tornar-se adultos, esqueceram o que é ser criança.

Por que os infans de hoje são tão chatos e exigentes? Sem pretender uma resposta única e definitiva, diria que este é um daqueles casos em que, contraintuitivamente, reconhecido o tamanho do problema, a solução fica mais difícil. O mundo em que não existia a infância era mais ‘simples’, mas era mais simples porque simplesmente se reprimiam as demandas da infância, da feminilidade, das classes desfavorecidas e assim por diante. É isso aí: o mundo em que vivemos é mais complexo, mais informado e, conseqüentemente, apresenta demandas muito maiores para crianças e adultos ― mas supõe-se que estes últimos têm uma responsabilidade maior

Pais queixam-se de filhos que não são ou não fazem o que deveriam; quando a criança é muito chata quer dizer que para ela o mundo não coincide com o que precisaria ser. É preciso tornar-lhe mais agradável o mundo!
Use a psicanálise para fazer isto.









[1] Equivale dizer que opera com uma série de permissões que posteriormente serão reprimidas, p.ex.: beijar os animais de estimação, quebrar objetos, sujar-se, etc. O termo ‘perverso’ não nos deve extraviar para o fato de que este sujeito está comprometido com uma busca de sentido na construção da pessoa.


5 comentários:

angela disse...

Ideias interessantes que rendem "pano pra manga". Gostei.

Júlia disse...

a clínica vive nisso de dar "pano pra manga". bom que vc gostou, bjs

Dalva M. Ferreira disse...

Como eu disse alhures, gostei da foto. Bem bonita, a Dasdoida!

Júlia disse...

que bom que tb vc gostou Dalva. vou propor um desafio aos colegas de blog: que tal desfiar em prosa ou poesiA o "pano da manga" da infância, da mulher, do casal?

angela disse...

Julita,bem no Natal!? Rasga coração...rs