Pensou
em como seria bom mudar pro centro da cidade. E então um intenso cansaço lhe
desceu pelos órgãos do corpo e da alma, talvez não soubesse viver junto aos
prédios descascados, andar por ruas onde o descaso varreu a mentira das cores,
sentir no fim de tarde raiva ou desejo sexual misturados à buzina dos carros e
aos gritos dos loucos e dos camelôs, passar fome e náusea com os churrasquinhos
gregos, olhar as sacadas com varais improvisados, assistir aos truques dos
saltimbancos nas esquinas, ouvir os autofalantes das liquidações, espiar através
de janelas sem cortinas a beleza de corpos nus, o desterro de corpos vestidos.
E depois ainda relembrar tudo isso diante do café coado e do pão com manteiga
na chapa.
Quase
sem se dar conta, estava em frente à Pinacoteca. Folheou a carteira e constatou
que não tinha dinheiro para a entrada, mesmo assim, seguiu a fila de pessoas e
entrou no museu também quase sem se dar conta. Era o tipo de lugar onde
habitualmente nunca punha os pés, mas aquele já não era um dia habitual sob
nenhum aspecto. Surpreendeu-o a leveza e a monumentalidade do interior, o chão
alternava cerâmicas delicadas nas áreas externas e parquet em madeira de lei
nas salas, passarelas e corredores suspensos aproveitavam a iluminação natural,
reforçando a sensação geral de arejamento da construção.
Havia
uma grande retrospectiva de um pintor do qual nunca ouvira falar. Os quadros da
exposição eram grandes, todos muito semelhantes, recobriam as paredes de uma série
de salas contíguas com pinturas a óleo como se repetissem uma ambição única ao
infinito. Estava ali, bem na frente do seu nariz, a prova provada de uma outra
temporalidade, uma duração que ia e voltava sem antes nem depois definidos. Sempre
havia uma pessoa, nua, e quase mais nada ao redor, em geral um quarto vazio, uma
poltrona, um canto de janela, ou corredor. Essas pessoas não eram belas, nem
tinham corpos bonitos e malhados como na televisão e nos outdoors, corpos de
pessoas ordinárias como ele, mas ostentando um desassombro incomum ― eles apenas
estavam lá, por inteiro, mais à vontade do que ele jamais estivera em toda a
sua vida.
Sentiu
vontade de tocar as telas, tinha a sensação de que estavam quentes.
Constatou
que os títulos das obras não surpreendiam nunca, regra geral simplesmente
descreviam a cena representada: Homem, Mulher sentada, Mão sobre o peito, Mãos
pousadas sobre o colo, etc.. O mais inquietante, porém, é que no centro da
sala, expostas em vitrines envidraçadas, havia fotos do ateliê do artista com
os modelos correspondentes aos quadros da parede. Como tantos, ele pensava que esses
retratos seguiam regras pré-estabelecidas: o pintor e suas tintas atrás do
cavalete, os modelos na sua pose. No entanto as fotos mostravam algo diferente,
nelas, retratista e retratado davam a impressão de esperar, cada um do seu lado
parecia aguardar alguma coisa que não estava no quadro. Como se ambos, artista
e modelo, tivessem todo o tempo do mundo até se depositar no fundo de um grande
vaso de vidro.
Quase
sem se dar conta, já não estava mais na Pinacoteca, mas sentado num banco do
parque da Luz. Ao seu lado encontrava-se a modelo de um dos quadros da
exposição, uma mulher pequena, de feições angulosas, com orelhas pequenas de
criança e sorriso muito alvo ― a nudez dela, escandalosa à plena luz do dia,
não parecia ser o efeito da ausência de roupas, antes uma espécie de condição
original, anterior a qualquer sentimento de vergonha. Então a modelo se
transformou na imagem da sua falecida mãe, ele chorava sem freios, encharcando
a camisa branca que vestia. No momento seguinte a mãe levantou vôo, se encarapitou
no alto de um abacateiro, e pôs-se a assobiar uma música antiga que ela lhe
cantava para ninar.
Saudade é canto magoado
no coração de quem
sente,
é como a voz do
passado
ecoando no presente...
Não,
nada daquilo estava acontecendo de verdade, as transformações de mulher em
pássaro, a sua mãe, nada era real. Devia estar sonhando em algum outro lugar
que não ali, em algum outro dia que não aquele. Imediatamente a mulher-modelo
do retrato desceu da árvore e retomou a forma humana, falando-lhe como se
tivesse ouvido seus pensamentos. E só então ele a reconheceu: justo ela, a
mulher que fizera tanta força para esquecer nesses anos todos. Reconheceu enfim
mais uma das artimanhas do destino, mudando a memória na mesma medida em que
mudamos no tempo. Nada está parado.
―
Por que você tá querendo ir embora?
― Porque isto
é um sonho ruim, porque eu não quero mais chorar.
― Acontece que
se você acordar agora, nunca vai saber se estava sonhando que sabia que estava
sonhando.
― Não preciso
disso pra saber que você é falsa.
Tudo parecia
com mais um dia normal de serviço: acordar, tomar café, pegar o lotação na
Cidade Ademar, depois o trem em Jurubatuba, 2 conexões de metrô, descer na
estação São Bento, andar 3 quadras a pé, entrar no edifício Cristiania, trocar
de roupa no almoxarifado, e assumir seu posto de trabalho.
4 comentários:
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