sábado, 6 de agosto de 2016

A Corrente (4)



4. Sofia

Não tem dia bom no cemitério São Luís, zona sul, onde a cidade acaba e começa a terra de ninguém. Vim enterrar meu filho.
Centenas de quadras se espalham num conjunto de morros descampados, sem árvores, sem grama, a bem dizer, parece mais um terrão cortado por carreiros tortos de chão batido onde se pisa em bitucas de cigarro, ripas, sacos de supermercado, entulho, garrafas pet e embalagens de salgadinho Fofura. Acompanhei o coveiro abrir um buraco pequeno na terra vermelha e seca da quadra 10, lá ao longe, depois do verde ralo dos capoeirões e palmeiras que cercam o campo santo, dá pra ver os bairros vizinhos: Capão Redondo, Jardim Ângela, Jardim São Luís. O triângulo da morte. Não é à toa, 300 mil pessoas enterradas neste fim de mundo. Poucas lápides com nomes marcam o local das sepulturas, o mais das vezes são plaquinhas de compensado cobertas por plástico transparente com mensagens: “para um super primo”, “para um super irmão”, “para um super filho”. Os canteiros, delimitados por cercas de papelão, são simples, o pessoal prefere os gerânios e a rosa miúda. A placa do meu bebê tem uma carinha de menino com boné branco e bolas pretas. O povo da região chama isto aqui de cemitério dos homicídios.
Voltando pro barracão dos velórios, o funcionário de jaleco verde e crachá da prefeitura espanta a enxadadas um grupo de cachorros em volta de uma cadela no cio. Os cães se afastam numa ladraria insana. Há craqueiros espalhados pelos cantos das quadras, mas o homem já nem se liga mais no vaivém daqueles zumbis com olhos que atravessam feito tiro traçante. Vagueiam pelo recinto como criaturas dos dois mundos ali reunidos, parece que olham direto pro lugar nenhum deste lugar nenhum.
Você entende que tem alguma coisa diferente no lado dos vivos quando vê que o agente de velório tem um colete à prova de balas pendurado na cadeira da sala dele. A chapa aqui tá sempre quente. As famílias começam a discutir a herança enquanto velam os corpos, nem esperam o defunto esfriar. A briga explode ali mesmo, pode ser a moto do falecido, a propriedade da edícula, uma TV, até mesmo o aparelho de chapinha, às vezes a administração precisa chamar a guarda civil ou a PM pra separar os lados, do início do cortejo até a chegada ao túmulo. Igual que faz com as torcidas de futebol.
No meu caso, pelo menos, nem tem pelo que brigar: meu bebê morreu três dias depois de nascer. Não tinha nada, e agora perdi tudo. No hospital me disseram: “Você só tem 14 anos, quem sabe não foi melhor assim?” E então, me pergunto, como podem saber o que é melhor pra mim? Eu queria o meu filho, ver o Lucas crescer, eu queria que o pai dele acreditasse em mim, não na bruxa da mãe, e voltasse pra casa. O problema é que já não tenho uma casa pra ele voltar, não tenho nem pra onde ir, estou no meio da ponte entre dois nadas. Na hora que o Lucas descer pra baixo da terra, aqui em cima dela eu não vou ter nem o metro de chão onde ele vai descansar pra sempre. Mas o que é do homem, o bicho não come. Carrego um revólver na bolsa, o da minha sogra querida tá guardado. Ela que tenha a cara de pau de aparecer.
― Não vai funcionar.
― Que susto! Quem é você?
― Não sei bem, mas o nome é Admildo...
― E agora eu dei de ver assombração, é? Cê é louco, maior nóia, sai de mim espírito das trevas.
― Não sou espírito, menos ainda das trevas. Se acalme, também fiquei tenso quando aconteceu comigo. Isto aqui é tipo uma conexão, sei lá, puseram a gente em contato. Deve ter um motivo, mas ninguém me explicou nada.
― Que é que não vai funcionar?
― A arma, eu entendo disso, acredite Sofia. Você nunca pegou num 38, nem sequer destravou o berro. Quer saber? Nem tenta, você vai acabar machucando quem não tem a ver com o peixe.
― Bom, mais um que sabe o que é melhor pra mim...
Saí de casa tinha 10 anos, modo de dizer, porque não era bem uma casa o barraco de tapume onde morava com a minha mãe e os irmãos. Meu pai, lembro dele, dormia de dia e saía à noite pra trabalhar na profissão perigo. Passou uns tempos preso, depois voltou, daí sumiu de novo. Quando ele desapareceu de vez, minha mãe já não trabalhava, tinha endoidado, de pinga, de remédio pra dormir. Os vizinhos às vezes traziam comida, ou porque não tinha, ou porque ela esquecia de fazer. Eu e os irmãos mais novos fazíamos bonecas usando as garrafas de Corote que ela espalhava pelo quintal. Com as cartelas dos calmantes a gente construía carrinhos de corrida pros mais novos.
Sempre faço força pra lembrar os nomes dos meus irmãos e irmãs, mas não consigo, é uma fumaça de esquecimento que cobre toda a memória dessa época. Sei que tive um irmão chamado Lucas, por isso dei esse nome pro meu filho. Coitado desse irmão. Sumiu, como foram sumindo todos daquele cafofo, uns foram pra casa abrigo, outros, adotados, só eu fiquei pra cuidar da mãe, pra ir buscar ela de tarde no bar quando voltava da escola. Até que um dia ela não estava no bar de sempre, não estava em bar nenhum das redondezas, nessa noite não preguei o olho chorando. Nunca soube mais nada dela.
Uma tia por parte de avó me levou pra morar com ela, e foi um anjo que atravessou o meu caminho. Foram os 2 únicos anos normais da minha vida: tinha vestidos, bonecas, e um quarto só pra mim. Fui num dentista pela primeira vez. Tia Berta tinha uma doença que paralisou ela aos poucos: os braços, as pernas, até que chegou na cabeça e já não conseguia engolir comida. Os filhos dela eram adultos, na verdade, toleravam a minha presença na casa da mãe, desde que cuidasse dela como enfermeira. Quando ela morreu, deram 3 dias pra eu arranjar outro lugar pra ficar.
Então fui morar com o namorado, ou melhor, na casa da mãe dele. Em poucos meses descobri que estava vivendo com um moleque tirado na xérox do meu pai, dava perdido, ficava semanas sem dar notícia, daí, reaparecia com cara de quem tinha saído num rolê de 15 minutos. A mãe dele, por outro lado, começou a me cobrar o aluguel: “Não posso alimentar mais uma boca de graça, se vira mina”. Dizia que se eu já era mulher pra dar pro filho dela, também podia fazer uns programas com os bacanas que ela conhecia. Os caras pagavam bem pra menor de idade, e eu caí na conversa dela.
Uma coisa eu sei: eu já estava grávida quando comecei a fazer michê. Quando falei pra ele que tava de 5 meses, meu namorado respondeu que filho de puta só tem mãe.



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