domingo, 17 de julho de 2016

A Corrente (1)



1. Norma Blandy

            Nem me dei ao trabalho de saber quem tinha enviado aquilo, sequer guardei, dessas tantas correntes que alguém lembra de te mandar de tempos em tempos, uma mensagem até muito convencional, quer dizer, ao menos começava abusando dos salamaleques costumeiros do gênero:

Aos que me desejam o Bem, eu desejo em dobro! Aos que me desejam o mal, eu desejo luz, para que assim eles possam sair da escuridão e compreender que aqui nessa vida se colhe exatamente o que se planta...

            Daí em diante descambava para um tom místico-brega, falando do “círculo que se fecha”, desaguando numa conversa loucona de “visitações” das cinco almas-irmãs do outro plano, quando o “conselheiro” passa a ser o “aconselhado”, e vice versa, enfim, uma bobajada sem tamanho que não pedia que a enviasse a ninguém, não recomendava uma oração, nem nada, apenas dizia para aguardar. Em geral não leio ou presto atenção a essas coisas, eventos banais destinados ao rápido esquecimento, não fosse pelo fato daquelas palavras terem se confirmado completamente logo a seguir.
            Estava me marimbando um monte pra tudo que não fosse a minha confusa vida sentimental, separada pela segunda vez, uma filha de cada casamento pra criar, ambas pequenas. Na verdade, o segundo ex marido e eu vivíamos numa relação iô-iô com recaídas periódicas: a cada três meses, aproximadamente, voltávamos a sair de novo pra ver se a gente conseguia remendar a relação, mas acabávamos retornando ao mesmo ponto do rompimento ― pior pra mim, que sobrava com as duas pequenas numa casa sem homem naquele bairro de ruas desertas.
            Foi um pouco antes de começarem os alumbramentos.
Mas não tinha nada de especial nessas visões, uma sala, o rapaz que dormia no sofá dessa sala, a janela do apartamento em frente dele, e sempre a mesma cena toda noite: ele não conseguia dormir, se levantava, abria a janela, e ficava ali olhando a rua mal iluminada, o casario em volta com poucas luzes acesas. Somente isso, noite após noite. Também apareciam lampejos de uma moça também jovem, mas aí já era uma situação bem outra.
Nunca senti medo dessas manifestações, afinal, minha mãe era parteira no interior, acostumada a entrar em todo tipo de casas, no segredo das pessoas mais diferentes que se possa imaginar. Por falta de ter com quem deixar, mamãe era obrigada a me levar junto nas suas andanças, de modo que fui acostumada desde sempre a ver de tudo, a lidar no natural desarranjo do mundo. Aceito o que a vida traz, do que não entendo, não falo, e do que não creio, também não duvido.
Só que tudo isso ― visões, avisos, correntes ―, é diferente do que me aconteceu naquela noite.
Aquilo foi muito real, físico, no sentido carnal da palavra. Tinha acabado de pôr minhas filhas pra dormir, botei o pijama, escovei os dentes, passei um creme no rosto e achei que ainda precisaria ler um pouco antes do sono vir. Em vez do sono, porém, veio um brilho muito intenso do corredor onde acabara de desligar as arandelas, só tinha deixado a luminária do banheiro pras meninas não dormirem sem luz nenhuma. A luz foi aumentando até que três figuras entraram no meu quarto, diria três homens, se eles não tivessem a aparência de alienígenas, extraterrestres pra ser mais clara.
Dois deles usavam roupas brancas e máscaras que lhes cobriam o rosto, a impressão era de médicos acompanhando o sujeito nu que avançou pra cama na minha direção. Ele teria 1,60 m, a pele acinzentada e desprovida de pêlos, inclusive na cabeça, onde se destacavam os enormes olhos negros sem pálpebras ou pupilas, amendoados como os de um oriental. Não possuía nariz, mas apenas dois furos no local onde são as narinas humanas, a mandíbula estreita se afilava em V, emoldurando a boca pequena e sem lábios, os braços finos chegavam à altura dos joelhos descendo pelo torso magro e sem costelas, terminando em mãos de três dedos surpreendentemente fortes.
Bem, órgão sexual não se via, mas depois que o danado se enfiou entre os meus lençóis, deu pra sentir que nada lhe faltava neste quesito. Fizemos sexo em silêncio, sem que “ele” tenha pedido licença pra me despir, sem conversa telepática, sem preliminares, em momento algum a criatura pareceu se preocupar em me proporcionar prazer, ou obter a minha aceitação da bizarra situação. Assim que terminou a função, tombou pro lado exausto à maneira dos coelhos, ao que os outros dois se prontificaram em carregá-lo para fora do quarto. A luz havia se extinguido, e eu dormi profundamente.
Três semanas após este fato (que não revelei a ninguém), descobri que estava grávida. Entrei em pânico, como explicaria esta gravidez pros outros? Já é ruim quando se conhece o pai, se tem uma relação com ele, imagine na situação em que me encontrava. Quem iria acreditar? Além do mais, havia um complicador: naquele momento em que tentava voltar pro meu segundo marido, era ele quem me ajudava a manter as contas de casa. O pai da minha filha mais velha simplesmente sumira no mundo.
O duro era ver a história se repetir com um cara que talvez morasse a milhões de quilômetros daqui!
Pra terminar de complicar estava na fase off da relação com o ex, ou seja, não tinha nem como alegar que o filho poderia ser dele. Estava num tremendo beco sem saída, a barriga crescendo, as meninas também, e as contas chegando todo mês, inevitáveis como as marés, a morte e os impostos. Quando estava a ponto de fazer uma besteira (já tinha até combinado o preço com a aborteira), os dois acompanhantes do alienígena apareceram e realizaram um novo procedimento, desta vez me puseram pra dormir antes. Dias depois, voltei a menstruar.

― Hmm, essa não é uma história muito bonita da sua vida, Norma...
― Eu sei, mas é algo que nunca contei a ninguém.
― E por que você está me contando isso?
― Porque, tal como você, num momento de desespero, eu estive a ponto de fazer uma grande cagada.


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