domingo, 22 de novembro de 2015

os culpáveis (4)


Acontece que para designar o desejo de fazer (ou se fazer) sofrer, torturar, e até mesmo matar, em todos esses casos a crueldade seria extremamente difícil de determinar ou delimitar; uns reconhecem aí a essência astuciosa da vida: a crueldade como força vital sem fronteiras e sem oposição, quer dizer, sem fim nem contrário; outros já sustentam que o derramamento de sangue é contínuo, mas não há história sem contraposição, sinto muito pela bolha de segurança que o mundo ocidental construiu à sua imagem e semelhança, a guerra ao terror e às drogas, o ecoapocalipse nos acachaparam no ground zero das Torres Gêmeas, Nova Iorque ou Cabul?, Paris ou Tijuana?, Jacarta ou Osasco?, o futuro é um lugar onde o centro e a periferia chafurdam na mesma lama depois da bomba explodir, do drone focalizar a mira, do avião cair, somos todos iguais e indiferentes antes do fanático/maluco/milico entrar na cena metralhando a esmo.
            E acontece também que o Uzodima não teve papas na língua quando se tratou de explicar por que me queria: segundo ele, eu sou o “homem circunstancial”, um cabra totalmente marcado pelas condições do entorno, ou seja, totalmente determinado pelos parâmetros do aqui e agora, sem a mais leve réstia de princípios éticos universais ou uma moral própria, portanto, um “objeto antropológico” ideal para estudar o tal mundo pós-pós, dá pra agüentar amigos assim?, ele parece muito interessado na nossa cultura das margens, organizou uma visita a um “fluxo” na periferia de São Paulo, e continuou filosofando: o Brasil não é como a África, onde a barbárie reina sem máscaras, aqui temos eleições livres, a justiça dos ricos, imprensa livre, liberdade de ir e vir... só que não.
            Só que não foi o que eu e o Tomate pensamos logo, não que o Tomate tenha dito alguma coisa (ele nunca fala nada), mas não gostei de cara do cheiro da mexerica: um gringo negão e dois manes no Valo Velho?, e o Uzo nem conhecia direito o cara que era o contato dele lá na quebrada, mano, zona sul de Sampa não é para os fracos, além do mais ele alugou uma barca enorme pra nos levar ao pico, afinal, aquele corpanzil beirando os duzentos quilos não cabia em qualquer carrinho mille mais discreto, a balada toda tinha jeito de programa de índio, mas, o cara tava pagando.
            ― Que cara é essa, bro, estás aburrido?
― Quase nada meu irmãozinho, só tô deixando de ver a minha mina hoje pra pagar um mico tamanho família, num lugar perigoso que nem o waze sabe onde fica, tirando isso, tô bem sussa...
― Enton stay cool man, sussa, right?. Esse cara no habla nada?
― Suave na nave, my brother Uzo, o Tomate não faz mal a ninguém, é o nosso pé de coelho nesta doideira, relaxa, não ia deixar o broder moscando em casa sem fazer nada.
― Exacto, yo, ainda non vi fazer nada esse cara.
Batata, nos perdemos numas quebradas sinistras, até que parei a caranga num boteco de porta de garagem pra pedir informações, enquanto e não, decidi dar um pulinho no banheiro do pé sujo, que no caso era um terreno baldio ao lado do bar, precisava urgentemente dar uma cheirada.
Quando voltei ao balcão, senti uma sombra cruzando meu campo visual, achei que iam assaltar o boteco, mas o dono olhava por sobre o meu ombro com uma expressão mais curiosa do que preocupada, a cena acontecia à minhas costas, fora do bar, pedi um maço de derby, paguei, e só então me virei pra olhar também, um cara pra lá de mal encarado puxava o Uzodima pra fora da van alugada e lhe apontava uma arma pra cabeça, um segundo cara de boné imenso saiu em seguida de dentro da van dando tapas e coronhadas no Tomate, após deixar o pobre desacordado no chão, dirigiu-se a nós dentro do bar.
― Todo mundo no chão, seus zé-ruela do caralho!
Como se não tivesse sido suficientemente claro, começou a disparar na nossa direção, atirei-me ao chão caindo entre latas, copos, garrafas, caixas e uma chuva de vidro quebrado, um projétil atingiu a mesa de sinuca atrás da qual me escondera, a balaceira nos manteve cinco longos minutos colados ao chão, quando saí do meu esconderijo as portas da van continuavam abertas, as luzes internas acesas iluminando o desamparo do veículo recém vandalizado, do Uzodima só restava um botão da sua bata afro, desprendido provavelmente na difícil saída do carro do obeso amigo, uma nuvem subia ao céu estrelado inundando a noite com o cheiro inconfundível da pólvora.