A sensação era de lidar com uma rima de toras rolando
umas sobre as outras, uma pilha de lenha instável agrupada sem lógica por mãos
apressadas. Cada pequeno movimento, a menor sacudidela, mesmo a mais imperceptível,
e a geringonça ameaçava desabar. Todavia, esta ainda era uma sensação pouco
clara, não havia nada de casual em todo aquele castelo de cartas: somente a
história secreta, a voz das paredes e do vento, o sussurro das folhas
carregadas pela viração, o reencontro do antigo e do novo improvavelmente.
Uma história de resíduos. Depositada em estratos. Feita de
tudo aquilo que não se pode contar.
― Você ao menos podia ter poupado os meus morangos, sabe
o quanto eu gosto e...
―
Poupar, poupar... Nunca vai acabar essa lenga-lenga? Os tempos mudaram, mana,
nós saímos daquele buraco.
― Mesmo?
Às vezes tenho a impressão que algumas coisas se perdem, e outras, não acabam
nunca.
Reparei
que o horizonte, para além das janelas da cozinha, se preenchia de gigantescas
nuvens escuras.
Definitivamente,
por mais turbulento e caótico que tenha sido um começo de vida, ele se
transforma com o tempo em souvenir de uma infância inexistente, e, enquanto
tal, passa a ser partilhado por essa outra comunidade fictícia: os irmãos, de
sangue ou criação, os mortos e os vivos.
Consegui
que ela me acompanhasse até à sala, mas não antes de finalizar a travessa
inteira das frutas. A menina continuava lá, sentadinha no sofá como a deixara,
porém seus movimentos haviam mudado. Agora balançava a saia, que pegava pelas
bordas do regaço, levantando-a ao nível da cabeça revelando o sexo impúbere.
― É a
própria, a mesma biscate de sempre. Não mudou nada.
Fiquei
indignada que falasse assim de uma criança, ao mesmo tempo, percebia o quanto
era impróprio para a idade o gestual da menina. Quis repreendê-la, mas temi que
o castigo atiçasse ainda mais o crime, como se a enunciação do pecado o fixasse
a jamais na memória de quem talvez ignorasse a extensão das suas culpas. A
hesitação, imagino, que sentem alguns antropólogos ao fazer contato com
indígenas isolados da nossa barbárie civilizada.
Não
conseguia também tirar os olhos daquela vagina que se oferecia em intervalos de
visibilidade e ofuscamento: lisa, rosada, a penugem lívia, sem as pregas que os
anos, os hormônios e o desejo imprimem aos lábios internos. Desviei a atenção para
um sofá revestido de curvim cujo forro de espuma branca apontava para fora no
canto descosido. Imediatamente, o pensamento se acendeu como um letreiro
luminoso na minha cabeça; “Ainda a sinto em mim”.
Um comentário:
Oh, metade apartada de mim...
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