quarta-feira, 23 de setembro de 2015

a menina sentada (3)




            A sensação era de lidar com uma rima de toras rolando umas sobre as outras, uma pilha de lenha instável agrupada sem lógica por mãos apressadas. Cada pequeno movimento, a menor sacudidela, mesmo a mais imperceptível, e a geringonça ameaçava desabar. Todavia, esta ainda era uma sensação pouco clara, não havia nada de casual em todo aquele castelo de cartas: somente a história secreta, a voz das paredes e do vento, o sussurro das folhas carregadas pela viração, o reencontro do antigo e do novo improvavelmente.
            Uma história de resíduos. Depositada em estratos. Feita de tudo aquilo que não se pode contar.
            ― Você ao menos podia ter poupado os meus morangos, sabe o quanto eu gosto e...
― Poupar, poupar... Nunca vai acabar essa lenga-lenga? Os tempos mudaram, mana, nós saímos daquele buraco.
― Mesmo? Às vezes tenho a impressão que algumas coisas se perdem, e outras, não acabam nunca.
Reparei que o horizonte, para além das janelas da cozinha, se preenchia de gigantescas nuvens escuras.
Definitivamente, por mais turbulento e caótico que tenha sido um começo de vida, ele se transforma com o tempo em souvenir de uma infância inexistente, e, enquanto tal, passa a ser partilhado por essa outra comunidade fictícia: os irmãos, de sangue ou criação, os mortos e os vivos.
Consegui que ela me acompanhasse até à sala, mas não antes de finalizar a travessa inteira das frutas. A menina continuava lá, sentadinha no sofá como a deixara, porém seus movimentos haviam mudado. Agora balançava a saia, que pegava pelas bordas do regaço, levantando-a ao nível da cabeça revelando o sexo impúbere.
― É a própria, a mesma biscate de sempre. Não mudou nada.
Fiquei indignada que falasse assim de uma criança, ao mesmo tempo, percebia o quanto era impróprio para a idade o gestual da menina. Quis repreendê-la, mas temi que o castigo atiçasse ainda mais o crime, como se a enunciação do pecado o fixasse a jamais na memória de quem talvez ignorasse a extensão das suas culpas. A hesitação, imagino, que sentem alguns antropólogos ao fazer contato com indígenas isolados da nossa barbárie civilizada.
Não conseguia também tirar os olhos daquela vagina que se oferecia em intervalos de visibilidade e ofuscamento: lisa, rosada, a penugem lívia, sem as pregas que os anos, os hormônios e o desejo imprimem aos lábios internos. Desviei a atenção para um sofá revestido de curvim cujo forro de espuma branca apontava para fora no canto descosido. Imediatamente, o pensamento se acendeu como um letreiro luminoso na minha cabeça; “Ainda a sinto em mim”.



Um comentário:

angela disse...

Oh, metade apartada de mim...