segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Cele... brisou (4)




Àquela altura a coisa toda não admitia meias soluções, o problema estava posto, aliás, exposto: a minha vida inteiramente arreganhada, e o titular da conta sem controle algum sobre o processo. Acontece que eu não estava nem um pouco disposto a desistir da privacidade sem luta, o resgate era alto: precisaria abrir mão das redes sociais, das facilidades da moderna comunicação, voltar ao tempo (já vintage) em que as pessoas sobreviviam sem ter todos os seus passos roteados pela internet.
Difícil? Sim, mas não impossível. Já não se tratava mais de como viver junto, mas de como viver longe de mim. Decidi-me pela amputação da minha dimensão pública, ou, pelo menos, da parte pública do que deveria ser íntimo ― dar cabo daquele software com pretensões a subcelebridade ganhou o status de missão principal, doravante prioridade máxima, topo da lista, alerta vermelho. Para dar uns fumos ritualísticos e agregar solenidade à promessa autoimposta, formulei-a em voz alta.
― Não vou deixar esse sujeitinho, que na verdade é uma parte de mim, uma parte ínfima, um energúmeno sem noção nem critério, acabar comigo. Tudo que eu sou, tudo que eu tenho, custou pra conquistar, não será um ectoplasma de merda que vai melar a porra toda. Matar é errado, mas, como essa é uma direção inevitável da evolução tecnológica, prefiro que eu mesmo o faça. Não outra pessoa.
Há sempre um trajeto circular no discurso que dirigimos a nós mesmos, não nego que agisse em mim naquele momento uma boa dose de pensamento desejante, a vontade ingênua de que o desejo, uma vez traduzido na mágica das palavras, se torne irresistivelmente realidade. Por outro lado não ignorava as contradições em que caía, minha mente buscava às pressas justificativas morais ou uma lógica que as sustentasse: assim, argumentava contra o absurdo de matar para preservar com a metáfora da poda necessária, contornando o tabu do homicídio por meio da muito mais palatável noção de suicídio. Ortotanásia com um suave tempero de autoengano e eutanásia.
Peguei oito horas de estrada rumo à Serra da Canastra, o pretexto foi visitar propriedades dos meus pais que requeriam atenção há tempos. Lira ficou sem entender porque não a quis levar junto de jeito nenhum. Era a coisa óbvia a ser feita: atrair o cara para uma região de sombra do sombrio sinal da telefonia brazuca, e dar fim nele de uma vez por todas. Que o paparazzo ia aparecer por lá não tinha a menor dúvida. O velho sítio abandonado próximo ao Parque Nacional serviria como um excelente túmulo para a aberração modernosa do meu alter ego.
Nem bem terminei de descarregar meus pertences do jipe, e lá estava o debilóide no gramado em frente à casa tirando selfies com as montanhas ao redor usando um suporte de GoPro.
― A vista é excelente, mas duvido que você consiga rede pra postar as fotos.
― Ah, oi, não faz mal, posso fazer isso mais tarde.
― Escuta, já que estamos só nós dois aqui, vamos falar de homem pra homem: você não acha meio babaca ficar compartilhando tudo que vive, em vez de realmente viver o conteúdo dessas imagens?
― Pode até ser, mas, veja bem, você é um publicitário, acha que as empresas que te pagam regiamente pra cuidar da imagem delas são também... meio babacas?
― Deixa o meu trabalho fora desta conversa!
― Eu sempre deixo seu trabalho fora, a não ser quando você mesmo posta eventos corporativos. Meu foco é o lazer.
― Sei, você é uma espécie de meu eu de férias.
― Exato. Férias, um assunto que você tem descuidado bastante em função da sua tão absorvente quanto exitosa carreira. É como se, de repente, por causa dos inúmeros compromissos sociais/profissionais, você não tivesse mais tempo ou imaginação pra levar sua própria vida.
― E é por isso que preciso de você? Não me faça de otário, pliz.
― Alguém te obrigou a instalar o CELEBRIZOU? Claro que não, você comprou esse serviço que não tinha saco de fazer sozinho. No mundo em que eu e você vivemos ninguém impõe nada, mas tudo se vende.
― Momentinho, momentinho, vamos deixar uma coisa bem clara: “vivemos” é o cu da sua mãe, eu sou o cara real por aqui, entendeu?!
― Calma, não precisa se exaltar. Você cuida da parte, digamos, logística da vida, e eu toco o resto: apartamento single com um parque de diversões na área social, viagens estilosas, festas da moda, namoros com pouco afeto, etc. Dá pra resolver tudo se soubermos dividir as...
― Dividir o caralho, meu irmão, o caralho! Tudo isto é meu, me pertence, igual à minha vida, aquela que você hackeou, seu cavalo-de-tróia do inferno! Fui eu que contratei? Pois agora eu que descontrato, morou? Vá pra puta que pariu, achando que meu ouvido é penico!
― Ei, o que você... Pára, solta meu pescoço!
― Me dá só uma razão pra eu não acabar com você agora mesmo!
― Po... por favor, chega, uff! Me solta! Meu, cê tá muito louco, se segura cara. Não sou uma ameaça, sou só uma tradução “enhanced” de você, um protótipo otimizado, se me permite dizer, é você a versão beta. Ok, você tem um ponto aí, eu sou a criatura, não o criador, mas há de concordar que sou um daqueles casos de filho melhor que o pai, de obra que supera a vida. Onde você vai?
― Vou ligar o gerador, pretendo tomar um banho quente nesta birosca. A viagem foi longa e estou cansado. Fica aí pensando, ô versão ampliada, como é que a gente faz, o que eu sei é que deste lugar só vai voltar um de nós.