Há muitos anos o ritual se repete
entre eu e o meu irmão, dois solteirões à deriva na noite de Véspera: jantamos,
conversamos, chegada a meia noite, trocamos presentes e voltamos cada um para a
sua casa. Sem filhos, amigos ou família próxima, numa cidade grande demais,
apressada demais para prestar atenção em dois velhos amargos e solitários, passamos
o serão a brincar com as nossas vicissitudes, e sempre terminamos por repetir a
piada interna de que somos dois pedaços de DNA suicida. É cômico sem chegar a
ser trágico, um costume de natalino algo incorrigível, mas inocente.
Ontem, porém, não foi uma noite igual
às outras, alguma coisa aconteceu.
Um acontecimento que não parece ter
realmente ocorrido. Para mim, um pesadelo sem os traços do real, porque os
acontecimentos reais deixam restos, marcas, dão uma certa concretude à
experiência. Deste acontecimento, o único traço reconhecível é uma faixa — dessas
que a polícia usa para isolar uma área por algum motivo — em volta de algumas
árvores em cima do canteiro central da avenida na qual eu vivo.
Foi provavelmente o dia mais chuvoso
do ano. Ouvi um homem berrar, demorei para prestar atenção (há uma escola em
frente e sempre acontecem muitos eventos e festas por lá nesta época o ano). Não
era um grito qualquer. O homem gritava em intervalos regulares, um grito de
horror. Debruçado na varanda, vi um rapaz falando com o porteiro, pedi
informações dali mesmo e me disseram que alguém estava preso ao fio de alta
tensão. Os bombeiros já tinham sido chamados.
Desci. Será que não havia nada a ser
feito, apenas esperar?
Embora fosse quase em frente ao meu
prédio, estava escuro e eu só podia ouvir os urros subumanos, os pedidos de socorro.
Estava quase na hora de ir encontrar meu irmão no restaurante que sempre
reservamos para a ceia de Natal. Saí com medo, medo de ver, medo de ligar o
grito à pessoa — se pessoa ainda houvesse. Naquele momento explodiu o
transformador do poste de iluminação, o clarão súbito revelou a silhueta escura
presa aos cabos. Nitidamente, senti o cheiro da carne queimada.
Um cheiro inconfundível de
antigamente, do tempo distante quando meu avô matava algum leitão na engorda. O
cheiro da pele do animal queimado vivo, o desespero demasiado humano do porco pendurado
pelas patas traseiras, o ventre aberto de onde se arrancavam as tripas,
esvaziadas para fazer lingüiça, os gritos lancinantes enquanto era dessangrado.
Muitos anos depois, vim a saber que entre a facada fatal no coração do bicho e
a sua morte decorriam escassos minutos, mas na minha memória infantil eram
horas de agonia.
Não conseguia me mover do lugar, no
bolso do paletó, o celular soou furiosamente incontáveis vezes antes que
pudesse avisar que estava tudo bem... comigo. Havia umas duas ou três pessoas
ali, é verdade que estava escuro e ainda chovia. Só umas duas ou três pessoas. Aquilo
não acabava nunca, não achei que se pudesse agüentar tanto tempo, sempre
imaginei que o choque por descarga elétrica era algo fulminante. Quando voltei,
horas depois, a polícia e o corpo de bombeiros ainda não tinham conseguido
remover o corpo. O homem já não existia, mas agora o acontecimento estava ali,
ruidoso, iluminado, presente.
Meu irmão escutou atentamente o
relato que, naturalmente, dominou a conversa daquela ceia de Consoada; deixou
que eu esgotasse a excitação dos nervos em pandarecos falando sem parar. Contrariamente
aos nossos hábitos, pedimos uma segunda garrafa de vinho, perto do momento da
despedida ele aproveitou para observar: "É uma pena. Deveríamos estar comemorando
a vida, afinal, toda esta história de Natal diz respeito ao nascimento de um
menino. Mas nem tudo deu errado, acertei meu presente para você: a gravação
completa dos quartetos de cordas de Beethoven, são as últimas composições, o
lamento maravilhoso, pungente (e eterno), de um moribundo".
Pela manhã bem cedo a rua estava
vazia e havia uma viatura da polícia que logo depois foi embora. Perguntei
sobre o acidente de ontem. Parece que um homem tentou roubar os fios e foi
eletrocutado. Mas chovia tanto. Como alguém tentaria roubar os fios em meio a
um temporal daqueles? Hoje não tinha gente na rua. Nenhuma notícia no jornal,
na internet, no Facebook, apenas um Twitter do corpo de bombeiros. Nem mesmo no
grupo de moradores do bairro que costumam publicar acontecimentos que
interferem ou preocupam em relação à segurança ou cotidiano dos moradores havia
alguma menção ao ocorrido.
No aparelho de som o quatuor número
15 chegava aos delirantes acordes finais, um dolente allegro appassionato.
Alguém morreu.
Um homem gritou desesperadamente muito
tempo antes de morrer. Tudo que sobrou são umas poucas árvores decoradas por
luzinhas de LED, isoladas por uma fita amarela e preta.
Um comentário:
Que triste!
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