domingo, 26 de outubro de 2014

Perivaldo e Cecivânia (#2)



A festa do Praquemquer, sob a batuta do MC da Santiago rolava o som e um programa de primeira, atraindo gente da Piraporinha, Jardim Pirajussara, Morro do Ingá, Parque Regina, Ararinha, São Luís, Buraco do Rato, Jardim Fernanda, e de várias outras quebradas, já que os bailes e rolês da perifa vivem na mira do proibidão. No terreno do lava-rápido se espalhando pelo capoeirão baldio ao lado, até duas mil pessoas já se haviam reunido, misturando as lagartixas ninja do break e do free style, com os pagodeiros mela-cueca, os rappers risca-faca, as cachorras do funk e as bichinhas rebolando no puts-puts do DJ.
Peri deveria se apresentar por volta da uma da manhã, mas daquela vez a coreografia afinada e acrobática do seu quinteto de street dance estava destinada a acabar mal. Tinha sido encomendado pelo gerente do seu pedaço por causa de um mal entendido, uma tremenda cagada. Emprestou a cabrita pro bróder ir buscar a avó no hospital, os polícias güentaram o moleque na saída da favela, tudo limpo, documento e tal, deixaram seguir. Os soldados do movimento filmando tudo à distância. No dia seguinte, os homens da lei dão uma batida-monstro na biqueira, fora do arrego habitual. Ligando (errado) os pontinhos, os traficas concluíram que o dedo nervoso tinha sido o dono da moto.
A lei da pedra não tem perhaps, sentencia rápido: morte ao traíra. O menino de dezessete anos, filho de pai desconhecido e órfão de mãe do crack, era agora um cara marcado para morrer. Dona Jovina, líder comunitária do Capão, criou o neguinho sangue-bom na rédea curta e no temor a Deus, sentia muito orgulho de vê-lo estudando e trabalhando, lutando pelos seus sonhos. Os bicos de delivery pra pizzarias da região pagavam a prestação da scooter e ainda sobrava algum pra ajudar nas despesas de casa. Pouco bebia, não fumava, não usava drogas, seu único vício era dançar ― e ele mandava bem, arrancava gritinhos das minas durante os solos do grupo Black tipo A.
No entanto, o que salvou Peri foi justamente o pó, o combustível do capitalismo. Biqueira é que nem padoca, você compra o pão, e na caixa decide também levar um maço de Hollywood. Drogas e armas. Magaiver, o encarregado de mandá-lo para o país dos pés juntos, comprou uma pistola e um revólver a prazo, mas à vista teria de matar o suposto cagüete: o acordo com o gerente da boca incluiu de brinde a munição da mente. Cocaína, a Rainha Branca das noites viradas. Malandro cafungou a carreira de cortesia e foi armar sua campana no bar do Neco, ficou por ali, tomando umas na mesa, dando uns tecos no banheiro do bar, só esperando na tocaia.
Só que a branquinha faz dessas coisas, acende as luzinhas do cérebro como se fosse Natal o ano inteiro, mas também solta a língua do freguês como se todos fossem amigos da vida inteira. Dopamina e noradrenalina, a paz e a força convivendo em total equilíbrio. Em pouco tempo a clientela do Neco já sabia a fita que ia rolar logo mais, alguns já até apostavam com quantos furos o moleque ia acabar. Todos riam, jogavam sinuca e entornavam a breja gelada, menos um, o Tiziu, amigo do Perivaldo. Ele fez cara de paisagem, se fingiu de morto pra comer o cu do coveiro, grudou a cara no chão e ficou ali moscando, até que achou uma brecha pra escapar sem ser visto.
― ‘Noite, dona Jovina, Peri tá?
― Lá dentro, tá dando um cochilo antes de sair pro baile...
― A senhora me desculpa, mas vou acordar ele.
― Que cara é essa Tiziu, viu a mula sem cabeça?
― Ih, tia, acho que eu senti foi o budum do Capeta bem do meu lado. A bênção.
Entrou apressado na casa de tijolo sem chapisco e já foi acordando o rapaz dando bica nas pernas dele.
― Acorda mano, rapidinho fio, que a tua batata tá assando. Fizeram tua caveira com o William, mano, teu nome tá pregado no poste, anda porra!
― Caralho Tiziu, que porra de quizumba é essa? Tu chega aqui virado no cão, me chutando, véio, que parada é essa?
― Peri, meu bróder, tava até agora no bar do Neco ouvindo um maluco que tá com a bala que tem teu nome na agulha. O pessoal do movimento tá achando que tu cagüetou eles, e mandaram esse tal de Magaiver te apagar, mano.
― Que loucura, véi... mas, como? Caraca, emprestei minha vespa pro Gabriel, ele me falou que os gambé deram uma dura, mas ele não...
― O caso é que maluco filmou a fita, e fez a idéia. Arruma tuas coisas e cai no mundo, Peri, já costuraram teu nome na boca do sapo, irmãozinho.
― Eu não tenho parente, Tiziu, minha mãe é tudo pra mim, não tenho aonde ir. Vou lá levar uma idéia com o William, acho que consigo explicar...
― Tá bem louco, Perebas? E se malandro não dormir no teu barulho, tu faz o quê? Já vai tá ali no jeito, na boca do lobo cercado de cupincha dele, mano, eles vão te matar várias vezes. Lembra aquele nóinha que eles meteram no “microondas”, e aquele outro que pregaram as mãos e os pés no muro? Dedo duro, à vera ou não, ninguém da profissão perigo perdoa.
― Mas, mano, vou pra onde? E deixo mãe Jovina aqui?
― Com ela não mexem, sossega, o problema é tu, Peri, prestenção, hoje começa o resto da tua vida, sai deste lugar e nem pensa em voltar, mano. Vacila não, foi mó sorte sua que eu tava ali sobrando, iam te subir enquanto você dançava no palco, igual ao Daleste. Não força a amizade com teu anjo da guarda, ganha a estrada véio. E já.