segunda-feira, 15 de setembro de 2014

a técnica perdida de achar coisas que não existem (2)



Tudo que é sólido apodrece no ar, e tudo sempre pode piorar. O trombadinha desaparecera no mundo. Para completar o roteiro do desastre, talvez também tivesse levado o celular, fora que, durante a busca na sacola e nos bolsos não havia encontrado nenhum tablet ou laptop. Depositei as esperanças cadentes em alguma etiqueta na mala que pudesse devolver-me, senão uma identidade, ao menos um nome e algumas roupas do meu número. Mas, qual mala era a minha, naquele insano arraial de modelos e cores e formatos serpenteando na passarela de borracha?
Porra nenhuma a fazer, a não ser esperar pela bagagem que sobrasse por último, ou seja, resgatar-me por exclusão. Saí do bololô de gente para aguardar sentado; com mais tempo e lucidez de espírito, comecei a investigar os dados imediatos da minha mente em estado de choque. Percebi que lembrava alguns fragmentos de fatos e cenas, mas não tinha acesso a nenhuma narrativa, verdadeira ou falsa, para costurar um sentido a eles. Eu sabia algumas coisas, por exemplo, ajudei o meu vizinho de vôo a reconectar seu smartphone na rede depois da aterrissagem, mas ignorava como, por que e, principalmente, quem sabia fazer isso com tanta desenvoltura.
O mais sensato talvez fosse procurar a polícia e comunicar o roubo, mas uma outra voz interior dizia para esperar que o conteúdo da mala revelasse mais sobre mim. E se eu fosse um ladrão, um assassino procurado, talvez até uma “mula” carregando drogas clandestinamente? Ri sozinho desta última hipótese ― mesmo que tivesse engolido papelotes revestidos de aço, estariam imprestáveis a esta hora. Passei então a escrutinar a aparência geral e os sinais particulares: uso a barba curta, cerrada, aproximadamente um metro e setenta e cinco de altura, cabelos e olhos castanhos, nem gordo, nem magro, tatuagem na omoplata direita (um ideograma), idade indefinível, possivelmente entre a quarta e a quinta década, marca de vacina, cicatriz de cirurgia no joelho esquerdo, sem aliança, pulseira ou gargantilha; relógio: Rolex falso.
Espontaneamente prestava mais atenção à parcela feminina do meu entorno, porém, a julgar pela diversidade de corpos e estilos que fixavam meu olhar, não devia ser dos mais específicos nas preferências desse tipo. Era como se me houvessem instalado uma divisória virtual no cérebro, ambas as metades permaneciam operacionais, apenas não se comunicavam entre si. A lembrança de uma tabuleta escrita à mão: “Chapéus para homens de palha”. Parecia uma cena antiga ― um trocadilho familiar, talvez ― embora descrevesse com acurácia a minha condição atual, eu era um homem oco, um sujeito recheado de memórias sem sujeito. O homem de palha.
Lentamente, o salão foi se esvaziando. Uma única mala preta, inútil e sozinha, continuava a entrar e sair pelas cortinas do compartimento de bagagens. Peguei-a e saí para a área de desembarque doméstico, onde uma nova pequena turba aguardava. Foi só quando cruzei a porta automática que entendi o absurdo da situação. Familiares se abraçavam, namorados, esposas, maridos, pais e filhos, amigos e amantes matavam as saudades ― e havia pessoas com placas, aquelas placas com nomes escritos. Várias possibilidades se abriam e fechavam, também os outros não me reconheciam, chamavam, nem abraçavam.
Os portadores de placa aparentavam querer que eu fosse o ser da placa, claro, mais para acabar com suas esperas do que pra me tirar deste limbo. Algumas, com nomes bonitos, eu fitava por mais tempo, como se, à força de olhar para aqueles nomes, pudesse me tornar o ser correspondente. Vinícius Piedade, Élio Siridião, Rogério Marques, Giulio Gabbana, Tito Lima, Mr. Vollard, Ambrose, Saulo Sakata... Porém, os seres atrás das placas logo encontravam seus destinatários, ou desviavam de mim o olhar entediado; todos menos um: o cara de bigode, óculos, sorriso, pança e um cartaz onde havia apenas 3 letras: D S K.
― Dê-esse-cá?
― O quê?!
― Quê não, cá! Seu vôo atrasou.
― Sim, claro, atrasou um bocado, faltou teto pra pousar... ― esperava que ele me esclarecesse, ou fizesse uma pergunta iluminadora, mas o camarada foi logo pegando as minhas coisas e dirigindo o carrinho para o estacionamento. Não me chamava por nenhum nome, portava-se em relação a mim com a deferência respeitosa e entrona que se dispensa às celebridades. Será que eu sou alguém famoso?
― Desculpe, esqueci de me apresentar, Viwelson.
― Prazer, Vinelson, é... pra onde estamos indo?
― É Viwelson, com “w” no segundo “v”. Vou te levar pro Marriott, padrão, né?
― Muito bom, imagino. Tarde pra você estar trabalhando, não?
― Tô de boa. Vão liberar a manhã pra mim, mas você, eles vêm pegar logo cedo. Oito da matina. O roteiro já vai estar na mesa do seu quarto no hotel.
No carro em alta velocidade pelas ruas de uma cidade qualquer à noite, eu me perguntava se não estaria roubando o destino do verdadeiro DSK, que neste momento no aeroporto procurava desesperado a plaquinha que assaltei. Não estaria furtando seu passado, sua personalidade, raptando-lhe a posição social e os sonhos, usurpando sua profissão? Teria eu despojado um legítimo cidadão de sua mulher e filhos, sua chácara no campo, seus cães de raça, arrebatado uma vida inteira num só golpe? Imbuído desse espírito pirata, comecei a me debruçar sobre a conversa do Viwelson, ele me consultava como se eu fosse uma espécie de autoridade em relacionamentos.
― Então, né, eu e essa mina temos uma relação exclusivamente física, tipo eu te uso e você me usa, saca?, mas aí vem o problema: me amarrei nela, à vera.
― Aí é que a porca torce o rabicó ― parecia-me para lá de surpreendente que aquele cara de bigode, óculos, sorriso, pança, e que ainda há pouco segurava o cartaz do D S K, tivesse relações “puramente físicas” com alguém, e isso o incomodasse ― Esses lances foram feitos pra ser simples, leves... e sem love.
― É, eu achei que agüentava, deu não. Reparei que ela só me procura entre um relacionamento sério e outro, nunca me dá a camisa de titular. Acho que, no amor, pra mim não tem jogo amistoso, é tudo final de Copa do Mundo.
― Pois então, a gente acha muita coisa que não é, sexo é fodinha, meu amigo, amor que é fodão ― nem podia crer na facilidade com que debitava tais enormidades, devia ter feito isso a vida toda.
― Mas, e aí, que é que eu faço?
― Vai por mim, você entrou pela porta errada na vida dessa mulher, às vezes o cara consegue sair e achar a porta certa, às vezes não.


Um comentário:

angela disse...

Situação surreal e assustadora, tão assustadora quanto esses nomes que você arranja...rs.