segunda-feira, 21 de julho de 2014

Blecaute (4)



O pior engano é a certeza, as viravoltas do imprevisível espreitam nas cercanias da vida. E, se parece patética a preocupação constante de isolar e prevenir cada pequena minúcia, é porque estas são infindáveis, como a água de um mar que transbordasse, em pequenas quantias mas por toda parte e ao mesmo tempo.
Chegaram ao abrigo fortificado na madrugada de terça feira.
Dormiram nove horas seguidas de pura exaustão. Luz e internet ainda não haviam voltado quando acordaram. Os cinco sentaram nas cadeiras de campanha, dobráveis como a mesa onde foi servida a primeira refeição. Ele distribuiu à mulher e aos filhos os pacotes da ração de exército estocada que poderia sustentá-los pelos próximos dois ou três meses.
“De qualquer maneira, não podemos nos alimentar só com isso.”
“Como assim? Essas gororobas não são balanceadas, e tudo mais?” Bob sofria para abrir a embalagem marrom da MRE, a mítica ração de combate dos marines americanos. A namorada o ajudava derramando cuidadosamente a água pra reação química no aquecedor exotérmico.
“Acontece que esses kits são pensados pra situação de stress, daí os caras atocham sal e tempero flavorizante. É uma carga pesada nos rins de quem vai ficar relativamente inativo como nós. Mesmo em combate, eles não recomendam alimentação exclusiva com a MRE por mais de vinte e um dias.”
“O senhor acha que precisamos ficar aqui enfurnados muito tempo?”
“Bob, imagino o quanto é difícil pra você ficar longe da sua família, mas aqui nós temos que seguir uma estratégia...”
“Pai, ele tá mais perdido que cachorro em tiroteio, nunca fez os nossos acantonamentos, não tem nenhuma habilidade sobrevivencial, zero bush craft.” A menina tocava o dedo na ferida: os próprios filhos, e até a mulher no começo, reclamavam dos constantes períodos de treinamento. Ficou feliz com a ponta de orgulho que transparecia nas palavras da filha.
“Puá!! Esse suco tem gosto de maçã podre, eca!”
“Hmm, meu bem, põe um mel. Tem ali, naquele pote.” A mãe se desdobrava em cuidados com o caçula depois do ataque que sofrera. Ajudou-o com a tampa.
“Prova o frango com feijão. Sugestão do chefe: chicken fajita.”
“Pai, porque tem esse gosto de mofo em tudo?”
“É do processo da conserva, pelo menos não é liofilizada e o aquecedor químico funciona bem. Por um tempo é melhor a gente não cozinhar: a fumaça denunciaria a nossa posição. Precisa ficar claro que segurança total, só temos aqui dentro, será necessário esperar, monitorar, e só fazer saídas planejadas. Pelos próximos dias ainda pode haver gente por aí atrás de comida, depois vai diminuir, esta é uma zona rural.”
No dia seguinte começaram as ações externas, primeiro, foram pequenas excursões exploratórias nas imediações ― só iam os adultos. Não havia ainda uma situação clara na opinião do chefe do grupo, ou seja, o pai. Bob ficou indignado com a rígida hierarquia da família: o pai era o comandante; a mãe, a capitã; a namorada, sargenta; o irmãozinho, soldado... e ele, a mosca do cocô do cavalo do bandido. Sequer havia um cachorro que pudesse chutar.
Mas aí vieram as “missões” mais importantes.
Dividiram-se em duas equipes de dois integrantes cada, a mãe ficaria na base, controlando as operações a partir do bunker, acionando-os de cinco em cinco minutos pelo talk about. Palavra-chave: João de barro, só João, sinal de problemas. O pai e a filha desceriam até à chácara para verificar o estado da roça, colher o que pudessem no pomar e recolher o que ainda houvesse de útil na casa. Pelo lado oposto da encosta, Bob e o caçula iriam à nascente próxima com a missão de desobstruir a bomba d’água.
Por decisão do alto comando e estado maior, os dois namorados não iriam juntos em missões externas. Mais um sapo que o rapaz teve de engolir: na hora da saída, entregaram-lhe um facão de mato, mas a balestra Panzer ficou com o menino. Coronha de polímero, quatro flechas de dezoito polegadas (com ponta) e aljava acoplada. Do alto dos seus dezoito anos, não se conformava que não o deixassem nem chegar perto das facas de aço carbono, e ainda lhe pespegassem como superior um pirralho de onze!
“Cara, não conhecia direito teus pais... cheios de regras, né? Achei que a sua irmã exagerava um pouquinho nas histórias, mas é tudo verdade.”
“O que é que é verdade, Bob?”
“Bem, essa coisa de... sei lá, ordens, senhas, cronometrar tudo que faz...”
“Olha bem isso”, o menino levantou a blusa expondo o ferimento no abdome, “Você acha que eles tão exagerando? Véio, tá todo mundo muito pirado.”
“Certo. Ói lá, chegamos.”
“Deixa que eu sei o que é, são algas que entopem o comando de válvulas do carneiro hidráulico. Enquanto eu limpo, dá uma vigiada em volta.”
“Ok, parece que aqui todo mundo é fã do Bear Grylls...”
“Aí mano, você tem aí pendurado no pescoço um apito e duas pederneiras, você sabe a diferença, né?”
E assim, tendo que chupar mais essa manga sem tirar os fiapos, lá se foi o Bob dar um rolê nas adjacências só pra fingir que fazia alguma coisa. Não que esperasse encontrar uma loja de conveniências aberta. Se pelo menos pudesse levar a balestra, ainda dava pra caçar um que outro preá.
O garoto rapidamente desincumbiu sua tarefa, preparava-se para ir procurar o companheiro, quando soou o rádio.
“Alô, base, câmbio.”
“Câmbio, grupo dois, João de barro, câmbio.”
“Ok, câmbio, desligo.”
Deu de cara com uma cena apavorante: o Bob abria a mochila, tirava alguma coisa lá de dentro e entregava pra uma mulher molambenta e curvada como um tronco seco. A mendiga sumiu como um espectro na mata densa da montanha. Puxou o cunhado paspalho dali e também deram o fora quase correndo.
“Tá louco, bro?! Que é que cê tava fazendo, maluco?”
“Calma, meu, não precisa gritar comigo. Só dei umas barras de cereal pra coitada. Nós temos bastante...”
“Cala a boca, não, não acredito que você fez uma merda dessas...”
“Pô, mano, não é porque a situação tá pastosa, que a gente não vai ajudar quem tá passando fome!”
“Pois agora ela não passa fome, mas nós estamos passando peri...”
Antes que conseguissem acionar o rádio, ou mesmo engatilhar a besta, viram-se cercados por um bando de maltrapilhos.



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