sábado, 8 de fevereiro de 2014

Acumulação primitiva das sombras (#1)



            E isto funciona.
            Mas funciona, como?
            Funciona, apenas funciona. Tudo funciona, e é isto o mais inquietante, que tudo funcione, e que este funcionar impulsione cada vez mais longe o funcionamento.
A organização moderna do caos.
Pode apostar.
Mas se aqui só há setecentos e poucos habitantes fixos, vá lá, que chegue a mil e trezentos no verão...
            Pensa, são setecentas pessoas, tira as crianças, o bicho gente é estatístico igual aos outros: por volta de dez por cento. Daí que temos uma metade da laranja que não interessa, e vice versa, sobram os outros trinta e cinco com gostos mais ou menos semelhantes.
            Trinta e cinco?
            Desses, digamos que dez não queiram nem pintado de ouro, ainda ficaram vinte e cinco. E sem contar os flutuantes eventuais...
            Vinte e tantos... plus extras?
            Estes últimos são menos regulares, mas mais emocionantes.
            E eu pensando que as cidades pequenas eram monótonas...
            A cidade era realmente pequena, mais para vilarejo que outra coisa. Um quilômetro de extensão ao longo de uma estrada que se bifurcava em Y na direção do sul. No entroncamento de onde partiam as três direções possíveis, ficava a capela centenária, marco zero do povoado; crescendo a partir da pista de duas mãos sem acostamento, um bordado irregular de casinhas e pequenas propriedades se esparramava rumo aos campos e montes circunvizinhos.
            A agência bancária, os correios, um posto de saúde, a igreja, a prefeitura, o mercadinho e o café, eram os pontos focais da escassa população. Apesar do extenso calendário de festejos e eventos religiosos e cívicos, havia em curso um acalorado debate público sobre qual a data mais adequada para se comemorar a fundação do município. No fundo era uma guerra santa, já que o aniversário da cidade coincidia tradicionalmente com o dia de São Simeão, santo da paróquia, embora não fossem poucos os que defendessem oficializar o dia do padroeiro da capela, São Leonardo, o que acarretaria mudar a maior festa da cidade do dia seis de novembro para o dia cinco de janeiro.
            Engana-se quem pensa.
            Não há um único homem que não seja um descobridor...
            E as mulheres são o quê, uma descoberta?!
            Bom, eu falava num sentido geral...
            ... claro, as mulheres costumam estar fora do sentido geral. É o hábito.
            Contudo, sempre há alguém que surge do nada e abre uma porta...
            ... para o infinito. Como esta discussão.
            Odeio adversativas. Contudo deveria ser com-tudo, mas, porém, todavia, no entanto, contudo sempre deixa de fora uma exceção: um mas.
            São os parasitos, partículas da disjunção, da confusão de alhos com bagulhos.
            Muito piores são os expletivos, perfeitamente dispensáveis.
            Senhores, senhoras... voltemos, assim nos perdemos no assunto principal, digo, do assunto...
            Pois é, voltemos e votemos, precisamos decidir entre o seis e o cinco.
            ... uma unidade, apenas.
            Qual, são dois meses de intervalo!
            Dois meses, menos um dia.
            Roma e Pavia...
            O fato é que não conseguimos decidir nada, está acontecendo o que acontece toda vez: não chegamos a lugar nenhum.
            Mas... se isto que chamo de lar, o chão onde descansam os ossos dos meus antepassados, é o próprio lugar nenhum...
            Nós nunca vamos sair daqui, somos os que ficaram pra trás.
            Por quê? Presos a quê?
            Ao dispositivo.
            Dispositivo?
            Não é só o sistema que demonstrou sua eficácia milenar, mas um lento, profundo e implacável enfeiamento do mundo que empobreceu a experiência de todos e cada um, substituindo-a por uma ciranda de desejos mesquinhos e jamais satisfeitos.
            Nada além de sombras, aqui nunca acontece nada.
            Todo indivíduo projeta a si mesmo no que está à sua volta.
            Quando souber de quem sou a sombra, indiferentes serão para mim vida ou morte.


3 comentários:

As Tertulías disse...

Minha querida amiga, sem palavras para expressar a gratidao por este carinho que voce tem por mim, demonstrando esse no envio do seu livro... chegou hoje! Muito carinho e OBRIGADO, amiga!

angela disse...

Mundo tão estranho

Dalva M. Ferreira disse...

Todo indivíduo projeta a si mesmo no que está à sua volta.
Quando souber de quem sou a sombra, indiferentes serão (para mim) vida ou morte.


....Cabra porreta!!!