domingo, 7 de abril de 2013

O último fim de mundo do milênio (VI)






OSSADA & REINALDO 20:02

            A última balada do milênio corria perigo.
            A casa do amigo ficava próxima da sua, na rotatória do Sunrise Village; nem trocou de roupa, foi só o tempo de estacionar a moto, largar a mochila, bolar o back e já batia na porta do quarto de Reinaldo. Ossada estava sem planos e sem grana para cair na night; uma reunião do alto comando era necessária para restabelecer a estratégia, já que os objetivos eram cristalinos: erva, perva e cerva.
            “E aí pé-de-pano, ah não, ainda de pijama?! Vai ver que a Cinderela precisa que a minha rola lhe dê o beijo do verdadeiro amor pra despertar...”, embora o desânimo do parceiro fosse previsível, Ossada não aceitava derrotismos mesmo com perspectivas tão sombrias.
            “Cê viu a presepa que a minha mãe tá armando? Sinistro, mano, jantar com um monte de gente que eu não conheço, ou que conheço o bastante pra não gostar”, sentou-se apoiado no espaldar da cama vendo o parceiro laricado se entupir de filhoses roubadas à cozinha da mãe, “Meu, que porra é essa na tua calça? Tá zoado... vixe, a perna tem uma queimadura”.
            “Ah, isso?, foi uns rosca lá na avenida, me jogaram um morteiro; mas dei o troco: esguichei refri no parabrisa da barca dos maluco, foi mó louco, apavorei, dei petê nos malaquia...”, Ossada enfiou o tapete na fresta inferior da porta do quarto e acendeu um baseado grosso como uma vela de sete dias, de deixar rastafári envergonhado: jamaican size. Puxou uma cadeira para si. “Hahaha, se fuderam, mas e aí nóis, onde vamos festar essa noite? Mano, cê sabe que eu tenho uns lances, tô sentindo que hoje é dia, vamo dar uma, meu broder, vamo me-ter, tá ligado?, me-ter, furunfar, fincar a estaca, descarregar a pistola, dar um picote, arreganhar a chapeleta, escalavrar a piça, sacudir o joão-bobo, esganar a gata, descabelar o palhaço, passar o rodo, descascar o palmito, maltratar o pirata, arregaçar o freio, desentortar o toucinho, estrunchar a alcachofra, apontar o lápis, ralar o bilau... muleque, hoje eu tô a fim de botar uma roupa de couro na estrovenga... couro de buceta, copiou?”
            Acompanhava as palavras de manejos que se pretendiam eróticos, balançando os quadris em sintonia com os braços; Ossada simulava uma trepada com o ar, ‘sensualizava’, como ele mesmo dizia, mas tudo que conseguia era a mímica de uma lombriga lúbrica e desconjuntada tendo um ataque epilético. O grandalhão não conseguia ficar parado meio minuto, um mapa do Chile com déficit de atenção e hiperatividade; nem bem terminou sua dança do acasalamento das enguias pré-históricas, e já estava vasculhando o quarto. Atrás sabe-se lá do quê.
            “Aí garanhão, se liga na facada que tão as balada: Flag, cento e vinte cinco pilas, bebidas à parte; Gallery, cento e oitenta; Maksoud, cenzão; Avenida, sessentinha com consumação; Disco Fever, vintinho sem convite, quinze com...”, Reinaldo se interrompeu, deu um pega na charuleta. “Na boa, Ossada, tamo sem um tusto, vamo acabar é fazendo justiça com as próprias mãos...”
            “Caralho, mano, deve ser por isso que as mulher não larga do teu pé: é esse seu otimismo que contagia! Não confia no xaveco, mané? Mulher se ganha também de bolso vazio, mano”.
            “Não é isso, porra, é que precisa um pouco de logística, ter um esquema”.
            “Rei, tu é um gênio... ao contrário! O esquema á papo reto, tira o mata-burro dos neurônio: vamo pro Réveillon da Paulista, arrastamo as mina pra cá, e aí meninão, é só correr pro abraço...”, lembrou dos pais que tinham ido mergulhar no Caribe com a irmãzinha cedefe, largando ele aqui sem um puto e a chave do carro cassada. Só porque tinha levado chumbo na escola de novo ― vinte anos e ainda no colegial! ―, tremenda injustiça.
            “Virada na Paulista com Maurício Manieri, É o Tchan! e Os Travessos?, tô fora, irmão”, só então se deu conta da armadilha, os neurônios finalmente se encontraram num baião de dois, “Ei, pera lá, se vamo na moto, trazemo as mina aonde?”
            “Enxergue a beleza na simplicidade: pegamo o carro da sua mãe, arrastamo as marvada pra minha casa, e bola na rede, broder!”, remexia nos frascos da prateleira, até que achou algo que podia dar barato; no rótulo lia-se: Dry Quik. Deu uma cafungada master.
            “Que cê tá fazendo? Ai, não, é o removedor de pintura dos meus aeromodelos... taquiospa Ossada, tu é bem louco mano!”, agora como é que ia pedir o carro emprestado para a mãe?, ele, chapado, o Ossada, pra lá de Marrakesh, fedendo a oficina de sapateiro.
Foda, viu.
            Ossada era assim, ame-o, ou deixe-o. Coração de ouro, mas um baita garoto-enxaqueca. Sempre causando. Antes de se perder completamente numa cambiante névoa púrpura, a mente do tresloucado rodopiou pelo quarto girando pensamentos e emoções num vasto carretel sem eixo nem direção.
Meus pais querem que eu estude pra quê? Pra ficar igual os bostas que moram neste manicômio de bacana? Quando um filha da puta de BMW arrebentou o pai do Reinaldo, o que fizeram? Garantiram o emprego pra mãe dele; pronto, tudo resolvido. Nunca uma pergunta, nunca uma palavra de consolo pra família, zero solidariedade. Então é isso?, virar burguês, andar de camisa limpinha e cueca suja?
            Odiava aquela situação, pagar de babá de chapadão. O pobre menino rico. Apagou o bamba. Ligou um pequeno ventilador para desbaratinar o cheirão de marufo.
Não tinha alternativa, precisava esperar a onda passar antes de poder botar o nariz para fora do quarto. Os convidados da mãe chegavam. Cabeça baixa, escanchado na cadeira como um trapo sujo, o amigo murmurava absurdos; deitou-o na sua cama. Vestiu-se por falta do que fazer.
Era incompreensível. Ossada, filho de milionário, era tão fudido quanto ele, o filho dos proleta nordestino. Olhou para o alemão doidão espremido na cama curta; na teoria, tinha tudo para odiá-lo.
Era o seu melhor, e único, amigo.

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