domingo, 17 de fevereiro de 2013

A profundidade começa na superfície (II)



(As duas se levantam, vão até a cozinha verificar. Voltam para os mesmos lugares que ocupavam anteriormente.)

Camila ― Que coisa... parecia o som de panelas caindo, será que veio de outro apartamento?

Dara ― Achei até que ouvi passos...


Cena 3

(Interior do apartamento. Noite. Os móveis já não têm lençóis brancos a cobri-los, a mesa apresenta restos de um jantar, há vários guardanapos, talheres, copos e pratos com restos de comida e bebida neles. Uma amiga de Camila ficou conversando até mais tarde; ela se levanta da mesa e dá uma volta pela sala com uma taça de vinho na mão.)

Amiga ― Camila, você é mesmo uma caixinha de surpresas; não é de admirar que as pessoas tivessem tantas perguntas... Também, pudera: você saiu do país há quinze anos, foi estudar fora, a geninha da classe vai pro M.I.T, faz doutorado, vira especialista de satélites da NASA, participa de missões em Marte... é muita informação pra nós, que somos um tantinho menos nerds, não? Acho que a noitada foi um tédio mortal pra Dara, olha só ela quase caindo de sono...

Dara ― Que nada, só não estou acostumada com tanto vinho, só isso.

Camila ― Bom, pelo menos os meus amigos não estranharam o fato de trazer a minha namorada estrangeira pra morar comigo no Brasil. É legal porque a Dara anda noiada com essa história de tratarem ela com diferença. As coisas mudaram muito desde que eu fui pra...

Amiga ― Ei, muita calma nessa hora, também não somos esse atraso todo, meu bem. Hoje em dia tamo chique no úrtimo. Todas as grandes marcas têm loja nos shoppings daqui; Miami, Paris e Nova Iorque estão cada vez mais perto... é o nosso modo de inserção no mundo: compro, logo existo; a classe média tá com a fúria de adquirir. Em resumo: tamo podendo!

Camila ― Sim, mas ainda não desenvolvemos a volúpia de adquirir conhecimento, desenvolver tecnologia; por exemplo, Harvard não abre franquias aqui, já a Columbia University tem uma filial em Buenos Aires...

Amiga ― Ih, lá vem o complexo de vira-lata... Mila, não tem nem comparação: os argentinos ainda acham que o Perón e o Gardel estão vivos, e todos nós sabemos que as únicas coisas que prestam lá são o Messi, o Darín e o bife de chorizo...

Dara ― Reparei uma coisa neste jantar: vocês, que são tão alegres e festeiros, que se agarram e se beijam a toda hora; mesmo assim, ninguém encostou em mim a noite toda. Só você Camila...

Camila ― Não te falei? A Dara encanou com isso: vê discriminação em tudo!

Amiga ― Querida, vou dar uma de Mãe Dinah: aguarde, dentro em breve o povo vai tar numa pegação, num grude, que você vai ter saudade desta fase “nojo de mim”; tá no nosso sangue também: não resistimos a uma novidade. Fica a dica. Só quero ver se a Camila não vai chilicar de ciúme...

Dara ― Taí, você chamou a atenção pra outra coisa que me intriga: a autodepreciação gozadora. Vocês são os primeiros a criticar as próprias mazelas, e os últimos a permitir que os de fora o façam...

Amiga ― Ora, que dúvida querida, trata-se do sacrossanto instituto da falsa modéstia; a religião nacional é o “tudo bem”, a alegria de carnaval, a felicidade de facebook... Quando sou eu a me criticar, estou sinalizando o quanto sou cool; se é você a me criticar, das duas três, ou você é minha inimiga, ou ainda pior: você é uma chata. Guarde-se bem de ser a chata do rolê, não há nada pior do que isso por estas bandas; não há problema algum em matar, roubar, corromper, aleijar, já incomodar... como direi, pega mal, aliás, pega malésimo.

Camila ― É isso mesmo, com o tempo, Dara, você pega o jeitão da coisa e vai deixar de sofrer com a nossa maneira de ser. No fundo, o que todo mundo quer é ser aceito; muito embora isto envolva um certo grau de acomodação a regras não escritas...

Dara ― Certo, é como uma palhaçada em que não se pode nomear os palhaços.

Amiga ― Falando nisso, eu confesso que não entendi nada quando você largou uma carreira promissora na NASA pra arriscar sua reputação de cientista séria nessa aventura de procurar sinais de civilizações alienígenas... mas, no fim, Camilota estava certa, pra variar.

Camila ― Não foi nada fácil, o SETI* enfrenta muita resistência e incompreensão no meio acadêmico... mas é um empreendimento fantástico, junta cientistas e pessoas comuns nessa busca por sinais de rádio vindas do espaço...

Amiga ― Ah, mas vamos combinar, que foi uma péssima idéia trocar os Isteites por Puerto Rico, lá isso foi...

Camila ― Imagina! O telescópio de Arecibo é um os maiores que existem, e depois, trabalhar numa equipe realmente colaborativa é bem melhor do que viver num ambiente hostil de competição por holofotes e verbas. Pensa bem no que isso significa: milhares de pessoas em todo o planeta emprestam a capacidade de processamento dos seus computadores pessoais para analisar os dados que vêm do espaço; uma iniciativa baseada na cooperação e na generosidade... admita que isso está longe de ser comum na espécie humana. Nossa rede tem mais de uma centena de teraFLOPS de capacidade de processamento de informações, é o segundo maior computador do mundo!

Amiga ― Querida, não sei se entendo todos os motivos do seu entusiasmo, esses flics e flocs são grego pra mim, mas o que eu sei é que você arrumou uma namorada de outro planeta. Isso, sim, está bem longe de ser comum na espécie humana!

Dara ―Ela tem razão. Você podia ganhar uma fortuna me exibindo como uma atração de circo freak em vez de me convidar para morar na sua casa...

Amiga ― Claro, pensa só: entrevista para o Fantástico, participação em reality shows, fim de semana na Ilha de Caras...seria um must de verão. Depois, claro, a novidade passa e daí vira carne de vaca. Vocês são o quê, afinal, o primeiro casal trans-racial espacial, ou transhomossexual intergaláctico?

Camila ― Hahaha, boa essa, somos as sapatas intergalácticas, as pioneiras das relações pós-humanas!

Dara ― Vocês beberam demais, as duas, já chega de tanta bobagem.

Camila ― Relaxa, baby. Um pouco de humor não faz mal pro nosso amor...



* SETI, sigla em inglês para o projeto Search for Extraterrestrial Intelligence.

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