sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Volver (parte 1)



Estelamaris foi muito criticada, na família e fora dela, por ter refeito a vida no curto espaço de dois anos. Como se houvesse um secreto, mas conhecido por todos, prazo para essas coisas. “É fácinho dar pitaco na vida alheia: cornetar não custa nada, e, quando vem a zica, o mala que deu conselho de graça não se oferece pra pagar a conta. No dos outros é sempre refresco!”, repetia freqüentemente e, mais freqüentemente ainda, pensava que ninguém conhecia os seus perrengues, o quanto tinha de rebolar para pôr dinheiro em casa, administrar funcionários, dar de comer e vestir para dois filhos adolescentes. Falar até papagaio fala, fazer é que são elas; ou melhor, fazer era com ela mesmo, e só.
            Com Aureliano vivo, não chafurdava nessa bagunça sem margens, sentia-se viva, inteira, protegida; havia um sentido para tudo, a casa andava em trilhos e cada um sabia as tarefas que lhe cabiam no organograma familiar. Cada um no seu quadrado, cada coisa no seu lugar, cada nome com a sua coisa; havia comando, havia ordem e obediência. O duro é que isso hoje pertencia a um passado remoto meio irreal, um pouco como as fotos antigas nos deixam a impressão de que antigamente vivia-se em tons foscos e baixa resolução.
            Parecia a versão 2.0 das provações de Jó: Aureliano morrera num acidente de carro; o filho, dando problema na escola e em casa; a filha, mal chegada aos quatorze, atolada no vício sem fundo do consumismo; um fiscal da prefeitura achacando seu comércio e, fechando a lista com destaque, as dificuldades do seu novo companheiro, o Zé Ascânio. Bom moço, o Ascânio: esforçado, caseiro, sem grandes defeitos ou qualidades; o problema era o trampo, estava sempre entre nada e coisa nenhuma, entre um emprego e outro ― aliás, muito mais entre do que dentro, propriamente trabalhando; cada dia mais entregue, mais passivo e desligado diante da batalha da sobrevivência.
E como bolo que se preza não fica sem a cereja no topo, as irmãs correram com o folgado da casa da mãe; de modo que Ascânio se mudou de mala e cuia para o sobrado da Estelamaris em Sapopemba. Pensando bem, foi a partir dali que os filhos dela começaram a desandar.
― Tetela, se tu quer namorar, namore, mas não ponha homem dentro de casa ― era a mãe dela rezingando pela enésima vez ao quadrado.
― Afe mãe!, credo cruz, você tá querendo dizer o quê, que ele pode... bulir com a menina?
― Não. Desse defeito ele falece, é homem respeitador... o que me preocupa é essa moleza, a falta de atitude. Se pudesse escolher como acabar o mundo, ele escolhia barranco, só pra morrer encostado. Você tem ele como um filho mais velho; olhe que quem tem filho grande é elefante...
A verdade é que, lá no seu de profundis, Estela sabia que o segundo marido fazia parte do problema, não da solução ― mas acontece que se arraigara nela o velho brocardo: tá ruim, mas tá bom; ruim com ele, péssimo sem ele. Paradoxais são as razões com que raciocina o coração; não há de ter sido por outro motivo que foi comparado a uma casa de tolerância: cheio de quartos, e sempre cabe mais um puxadinho. Ainda assim, tomou um susto com a conversa que sapeou entre o filho e o padrasto improvisado.
― Posso usar o computador um minuto? Preciso ver uma coisa, é rapidinho... ― o garoto até que começou bem, no sapatinho, como dizem.
― Espera um pouco. Estou terminando aqui... mas pra quê a pressa? De certeza que não é pra fazer o dever de casa; trabalho de escola não é muito seu forte... ― Ascânio já começou entrando de sola na canela, batendo abaixo da linha de cintura; Estelamaris pensou em intervir, porém, aproveitando que não a tinham visto, resolveu apenas escutar.
― Ah, sei... então vamos ver você, qual será a tarefa importantíssima que não pode ser adiada... Hahaha, olha isso, o cara tá numa página de horóscopo, hahaha, e como é que vai o zoológico, leão tá bombando em touro? Fala sério!
― Ê moleque, vê direito como fala comigo, não sou obrigado a aturar você e ficar quieto, não.
― Aí, na boa, você que começou. Além do mais, quem que tá aturando quem? Esta casa é nossa, meu pai que fez; nós já tava aqui, véi, tu que chegou depois.
― Tu tá é folgado demais rapá, sua mãe ralando que nem louca pra quê? Pro meninão ficar causando na balada, tretando na escola... ― Ascânio tinha se levantado e andava de um lado para o outro no living, um olhar de possesso estampado no rosto como ela nunca vira.
― Se você é tão preocupado com ela, por que não ajuda então? Fica aí o dia inteiro sentado nesse computador lendo horóscopo... aí mano, esse papo de astrologia é do tempo que a Terra era quadrada, deixa eu te contar uma novidade: o mundo mudou um pouquinho! ― o rapaz se afastou, fazendo menção de dirigir-se para a cozinha.
O outro atravessou-lhe o caminho.
― Tá se achando, né? Um moleque que nem barba na cara tem direito, quer tirar onda e não sabe tchongas; é bem do signo de gêmeos, essa sua superficialidade...
― Vê se me entende: o Sol não gira em volta da Terra, as estrelas e os planetas não andam em volta de você. Tudo gira em torno de alguma coisa no universo, tudo se move, inclusive o universo; o único ponto parado nisso tudo é você: parado no tempo e no espaço.
Além da queda, Ascânio não ia suportar o coice. Agarrou o menino pelo braço, torceu-o, e rosnou-lhe entre dentes:
― Aí pirralho, cê tá me gastando. Parou, caralho! Tu fica bem pianinho, senão vai tomar um pé-de-orelha agora mesmo.
Ela viu quando o filho amansou, e também escutou suas últimas palavras ― É só mais um ano, no máximo.
― Só mais um ano o quê, moleque? ― por mais que ele insistisse, agora o enteado se fechara em copas, paus e espadas.
Mas Estelamaris entendeu perfeitamente o recado: dentro de um ano, ambos estariam igualados em força física. Nada como ter problemas pré-agendados.

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