domingo, 9 de setembro de 2012

a casa das mil portas (parte 2)


Aquilo me pegou no meio. Como essa mulher sabe despejar veneno bem em cima do nervo, escolhe vibrar precisamente, dentre as fibras do sensível, a corda que mais dói! Plenamente consciente, enfiava o dardo na chaga aberta, a ferida que não fecha, e o pior, referia-se a um fato inquestionável. Sou maninha feito galho seco, ramo que engruvinha a flor e sonega o fruto — é só o que posso concluir a esta altura: fui para a cama com todos os homens que pude sem tomar nenhum cuidado e nunca engravidei. Agora, que já desisti tanto do sexo como do amor, desconfio se a minha esterilidade não terá sido um contrapeso à indecente arquitetura da casa, uma forma de frear a expansão infinita destas paredes, de impedir que a melancolia entranhada nelas inunde o universo com sua água negra.

Até o nosso nome deixará de se perpetuar: meu irmão optou por usar, nele e nos filhos, o da família da mulher — dizer que a lei passou a permitir tais e tantos absurdos. No dia em que minha mãe soube disso, quebrou um dente de nervoso. Para mim tanto se me dá, mas gente de idade não pensa assim; acho que começam a pensar no futuro, justamente a única coisa que ninguém controla.

Há certas coisas que a gente precisa ganhar o mundão para entender acerca daquele mundinho de onde viemos, por exemplo, certa vez fui parar em Mato Grosso por conta de um companheiro da época e vimos um descampado coberto de cupinzeiros imensos, murundus que pareciam chaminés do inferno brotando da terra gasta.

— Isto aqui é terra perdida, essa bicharada nem adianta combater.

— Mas não dá pra jogar veneno?...

— Não adianta. Tem de matar a fêmea, e achar o lugarzinho que a bicha se acoita não é fácil. Enquanto não pegar a rainha eles reconstroem tudo rapidinho, a diaba fica lá, botando milhões de ovos por dia e os outros roendo tudo que é barro, pau, restolho... uma começão danada!

Entendi de repente que vivia num termiteiro, que aqueles quartos que surgiam atrás das portas de casa, eram as antecâmaras de uma torroada construída de muco e detritos, argamassada com a baba de horrores proveniente daquela mulher magoada e feroz. Minha mãe. No dia do enterro do meu pai, voltamos as duas do cemitério, cansadas e sozinhas. Um chuvisco interrompido castigava a tarde escura; poucos parentes distantes tinham comparecido à cerimônia, mas ninguém se aproximara muito da viúva ou da filha do falecido. Meu irmão, para variar, viajando, enviou uma coroa de flores. Ela foi descansar um pouco no quarto que há muito deixara de ser do casal.

Não era normal o que se passava comigo, sentia-me completamente desperta, febril, com uma espécie perigosa de lucidez nos pensamentos e a energia impaciente de quem tem uma tarefa inadiável para realizar. Sem compreender direito o que fazia, dirigi-me ao quarto que o morto havia ocupado nos últimos anos; o mesmo em que havia sido velado, conforme a vontade da família e contra a vontade da funerária. Abri a gaveta. Procurei o estojo de munição. Carreguei o tambor da arma com as balas. Só lembro nitidamente do êxtase que me preenchia a alma, atravessei o corredor a toda pressa, nem sei se entrei ou não com cautela; era como se o chão ondeasse e eu flutuasse na corrente turbulenta de um rio.

Aproximei-me sem rodeios e sentei numa cadeira ao lado da cama; ela deitara vestida sobre as cobertas, apenas tirando os sapatos, não parecia dormir realmente, a respiração superficial de quem apenas cochila. Inclinei a cabeça, quase encostando meu rosto no dela. Ficamos assim por um longo hiato, podia sentir a aragem leve do seu hálito na minha face. Ali estávamos, cara a cara como sempre estivemos, e ela não queria me ver, como sempre. Engatilhei o revólver e encostei-lhe o cano no centro da testa acima dos olhos. Tive a certeza de que estava acordada.

            Um movimento convulsivo, independente da vontade, sacudiu-a: a boca se contraiu; um sorriso atravessou-lhe brevemente o rosto, mas, rapidamente, a comissura dos lábios tornou a vincar o costumeiro esgar de sarcasmo. Ela sabia de tudo, e esperava, talvez estivesse esperando por isso o tempo todo! O silêncio continuava, passeei o aço frio do cano pelas têmporas até chegar na raiz dos cabelos, como se um momento de ternura não pudesse faltar numa execução digna desse nome. Um torvelinho de ideias e sensações desencontradas varria o meu cérebro, e eu descobria, com toda a força do meu ser, que entre nós duas se travava um duelo de vida ou morte, o qual havia chegado ao capítulo final. Luta tremenda e equivocada que consumira a melhor parte da vida de nós duas.

            A minha mão começou a tremer. A obviedade do desfecho de repente dissolveu as certezas que me inflavam; um assassinato é sempre tão inevitável quanto inútil, tudo está no momento — e o nosso momento havia passado. De que adiantaria, então, puxar o gatilho, lutar, correr, sorrir, chorar, ganhar... ganhar o quê, se tudo o que importa já foi perdido?

            Ambas perdêramos, e agora sabíamos disso.

            Jamais falamos do acontecido; como seria de se esperar, ela reconheceu sem dar o braço a torcer: o trabuco deixou a gaveta e hoje descansa dia e noite sobre a sua mesinha de cabeceira. Carregado.

           

Um comentário:

angela disse...

Como fica feia a vida quando não há lugar para o amor.
Gostei da metáfora.